Desejo, prazer e autonomia: por que ainda é tabu falar sobre sexualidade de pessoas autistas?

Especialista explica por que falar sobre prazer, afeto e autonomia no espectro autista é urgente e uma questão de dignidade

Por Wallace Leray em parceria com Anna Luísa Barbosa (Médica - CRMGO 33271)
18/06/2025 18:36 / Atualizado em 21/06/2025 01:12

Apesar dos avanços no entendimento sobre o autismo nos últimos anos, a sexualidade de pessoas no espectro ainda é envolta em mitos, desinformação e invisibilidade. Em pleno 2025, o tema continua sendo um tabu, tanto nos lares quanto nos consultórios, nas escolas e nas políticas públicas.

No Dia Mundial do Orgulho Autista, celebrado em 18 de junho, esse debate se torna ainda mais urgente. A data, criada para promover a autoestima e a aceitação da neurodiversidade, também é um lembrete de que pessoas autistas existem em todas as dimensões da vida, inclusive na afetiva e sexual.

Para a especialista em sexualidade, Vania Galha, 45 anos, que recebeu o diagnóstico de autismo na vida adulta, o orgulho vem da sobrevivência. “Se estamos vivos, temos o direito de viver em plenitude, com todos os aspectos essenciais para a qualidade de vida humana”, afirma a jornalista, em entrevista à Catraca Livre.

Desejo, prazer e autonomia: por que ainda é tabu falar sobre sexualidade de pessoas autistas? (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional)
Desejo, prazer e autonomia: por que ainda é tabu falar sobre sexualidade de pessoas autistas? (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional) - iSTock/jessicaphoto

Mitos e estigmas: o peso do capacitismo

A ideia de que pessoas autistas são assexuadas ou infantis tem raízes históricas. Segundo Vania, durante muito tempo o diagnóstico era feito apenas em crianças – geralmente meninos – e muitas dessas pessoas cresciam isoladas, sem acesso a políticas públicas ou apoio social. Isso consolidou a imagem do autista como alguém com deficiência intelectual e comportamentos inadequados, tornando difícil imaginar que essas pessoas pudessem ter uma vida afetiva ou sexual.

A virada veio em 2013, com a atualização do DSM-5, que passou a incluir a antiga Síndrome de Asperger e eliminou a exigência de deficiência intelectual para o diagnóstico de TEA. Isso permitiu que mais adultos – especialmente mulheres – fossem diagnosticados. Ainda assim, o olhar social continua preso a estereótipos, como o do “anjo azul”, que representa o autista como puro, dócil e sem desejos.

Para Vania, o capacitismo colabora diretamente com essa exclusão. Ela afirma que a sociedade costuma focar apenas nas limitações das pessoas com deficiência, ignorando seu potencial – o que cria barreiras significativas em todos os aspectos da vida, principalmente nos relacionamentos afetivos e sexuais. Isso leva tanto à negação do desejo quanto, em outros casos, à hiperssexualização do autista. Em ambos os extremos, afirma, essas pessoas são retiradas do contexto humano.

A sexualidade de pessoas autistas ainda é cercada de tabus e silenciamentos — visibilidade é também uma forma de proteção. (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional)
A sexualidade de pessoas autistas ainda é cercada de tabus e silenciamentos — visibilidade é também uma forma de proteção. (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional) - iSTock/kali9

Invisibilizar a sexualidade é aumentar a vulnerabilidade

A especialista alerta que negar a sexualidade de pessoas autistas tem consequências profundas. Isso impede que elas desenvolvam ferramentas fundamentais para estabelecer limites, expressar preferências e exercer autonomia. A falta dessa base aumenta a vulnerabilidade a abusos, isolamento e sofrimento emocional.

Ela lembra que a própria OMS considera a sexualidade um aspecto central da experiência humana, e sua invisibilização compromete a saúde mental. Dificuldades de relacionamento, transtornos emocionais e sensação de exclusão podem levar a quadros de ansiedade, depressão e até mesmo ao agravamento de pensamentos suicidas.

Vania destaca ainda que mulheres autistas estão entre as mais vulneráveis. Elas têm de três a quatro vezes mais chance de se envolverem em relacionamentos abusivos. Segundo ela, mais de 90% das mulheres autistas relatam ter sofrido alguma forma de assédio, abuso ou violência sexual. Fatores como a dificuldade em perceber nuances sociais, o masking constante para tentar se encaixar e o desejo de pertencimento tornam esse grupo ainda mais exposto a situações de risco.

Autistas também amam, desejam e têm o direito de viver relações com respeito, prazer e autonomia. (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional)
Autistas também amam, desejam e têm o direito de viver relações com respeito, prazer e autonomia. (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional) - iStock/mediaphotos

Relacionamentos reais

A vivência de relacionamentos por pessoas autistas varia bastante, mas certos padrões são recorrentes. Vania explica que, em geral, há tendência à repetição de comportamentos e interesses restritos, o que se reflete também nas relações afetivas. Valores como pontualidade, previsibilidade, senso de justiça e respeito costumam ter grande peso nesses vínculos.

As hipersensibilidades sensoriais também têm um papel relevante. Há autistas que sentem desconforto com toques físicos, cheiros, sons, texturas ou certos ambientes. Isso exige um nível maior de adaptação e compreensão no relacionamento — mas, como ela lembra, “qual relacionamento não é desafiador?”

Sobre identidade de gênero e orientação sexual, Vania observa que muitas pessoas autistas não se identificam com padrões convencionais. Ela aponta que há um número crescente de autistas que se definem como demissexuais – ou seja, sentem atração apenas após desenvolver conexão emocional – ou sapiossexuais, que sentem atração a partir da inteligência e da conexão mental. Para ela, essas identificações fazem sentido, especialmente considerando que o toque físico pode ser desconfortável para muitos, se não houver um vínculo emocional seguro.

Educação sexual desde cedo para todos

Um dos caminhos para mudar esse cenário é a educação sexual desde a infância. Vania defende que o tema seja tratado sem tabus e longe do estigma de que se trata apenas de ensinar sobre sexo. Segundo ela, é urgente ensinar crianças – típicas e neurodivergentes – a reconhecer o que é intimidade, aprender sobre consentimento, nomear seus órgãos sexuais e identificar pessoas de confiança.

Ela destaca que esse é um dever da sociedade como um todo, especialmente em um país com altos índices de abuso infantil. Mesmo crianças autistas com maior necessidade de suporte podem – e devem – ter acesso a essas informações, com acompanhamento de profissionais preparados e atualizados.

Falar de sexualidade no espectro é romper estigmas e garantir dignidade a quem por muito tempo foi invisibilizado.
Falar de sexualidade no espectro é romper estigmas e garantir dignidade a quem por muito tempo foi invisibilizado. - iStock/VladOrlov

Sexualidade como caminho de autonomia

Hoje, Vania une sua vivência pessoal ao trabalho profissional na Mentoria Kintsugi – um programa individual voltado a mulheres autistas, que une autoconhecimento, empoderamento e consciência corporal. “Como digo, para ter bons relacionamentos é importante colocar primeiro a própria máscara de oxigênio, para só depois transbordar em relacionamentos saudáveis e relações íntimas prazerosas.”

Ela também é autora do livro “Desvendando a Sexualidade Autista: Autoconhecimento, liberdade e prazer”, disponível na Amazon, e acredita que a literatura pode ser um primeiro passo para explorar o tema de forma autônoma.

Discutir sexualidade no contexto do autismo é muito mais do que romper tabus. É garantir dignidade, saúde mental, proteção e qualidade de vida a milhares de pessoas que, durante muito tempo, foram silenciadas. Afinal, como diz Vania, “é sobre nos reconhecermos indivíduos e, com isso, trabalharmos a nossa sexualidade para uma vida mais saudável e prazerosa, apesar de tudo.”