Doença de Crohn: quando o intestino também adoece a mente

Psicóloga explica como sintomas como dor crônica, estigma social e medo constante contribuem para ansiedade, depressão e isolamento

Por Wallace Leray em parceria com Anna Luísa Barbosa (Médica - CRMGO 33271)
20/05/2025 16:46

Por trás dos sintomas gastrointestinais que caracterizam a Doença de Crohn — como dor abdominal, diarreia crônica e fadiga intensa — esconde-se uma realidade frequentemente ignorada: o impacto emocional devastador que a condição pode provocar. Para além do corpo, a doença inflamatória intestinal também atinge em cheio a saúde mental dos pacientes, que lidam diariamente com inseguranças, estigmas e um futuro incerto.

Nos últimos anos, o Brasil registrou um crescimento expressivo no número de casos de doenças inflamatórias intestinais (DIIs), grupo do qual a Doença de Crohn faz parte. Entre 2012 e 2020, a taxa de diagnósticos praticamente triplicou, passando de 30 para mais de 100 casos a cada 100 mil habitantes. Os dados, divulgados por um estudo publicado na revista The Lancet Regional Health – Americas, basearam-se em informações de mais de 212 mil pacientes atendidos pelo SUS, o que faz da pesquisa uma das mais abrangentes sobre o tema no país.

As DIIs, que incluem ainda a retocolite ulcerativa, afetam cerca de 5 milhões de pessoas em todo o mundo e são caracterizadas por processos inflamatórios crônicos no sistema digestivo. Apesar do avanço no diagnóstico e nos tratamentos, os impactos emocionais da condição ainda recebem pouca atenção — tanto na mídia quanto no consultório médico.

“A confirmação de uma condição crônica e incurável pode gerar uma variedade de reações emocionais intensas”, afirma a psicóloga Luciana Spanholi, especialista em doenças crônicas, em entrevista exclusiva à Catraca Livre, para a série de conteúdos especiais do Maio Roxo, campanha que visa conscientizar sobre as Doenças Inflamatórias Intestinais (DIIs).

Doença de Crohn: quando o intestino também adoece a mente (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional)
Doença de Crohn: quando o intestino também adoece a mente (Foto usada apenas para fins ilustrativos. Posada por profissional) - iStock/Povozniuk

Diagnóstico que abala estruturas

O impacto emocional do diagnóstico costuma ser imediato. Luciana relata que sentimentos como choque, negação e raiva são comuns nos primeiros momentos após a confirmação médica. A convivência com a Doença de Crohn exige mudanças radicais no estilo de vida e, sobretudo, o enfrentamento da imprevisibilidade.

“A constante batalha contra os sintomas pode minar a energia física e mental, dificultando a realização de atividades cotidianas e a manutenção de uma vida social ativa”, afirma. O medo constante de crises intestinais intensifica o estado de alerta e a exaustão emocional, criando um terreno fértil para o surgimento de transtornos mentais.

Ansiedade e depressão

Diversos estudos científicos têm apontado a alta prevalência de transtornos psicológicos em pacientes com Doença de Crohn. Uma meta-análise publicada no Journal of Psychosomatic Research indicou que mais de 30% desses pacientes apresentam sintomas de depressão e até 40% lidam com quadros de ansiedade.

Essa realidade é confirmada pela psicóloga Luciana Spanholi em seu atendimento clínico: “Os transtornos mais comuns que vejo associados ao Crohn são, sem dúvida, a ansiedade e a depressão”. Segundo ela, essa frequência elevada se deve a uma complexa interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais.

No campo biológico, a especialista destaca a atuação do eixo intestino-cérebro — uma via bidirecional de comunicação entre o sistema nervoso central e o trato gastrointestinal. A inflamação intestinal pode interferir na produção de neurotransmissores como a serotonina, essencial para o equilíbrio do humor. Ao mesmo tempo, a dor crônica e a fadiga aumentam o risco de colapsos emocionais.

Psicologicamente, a sensação de não ter controle sobre o próprio corpo leva a quadros de ansiedade, enquanto a dificuldade de manter uma rotina ativa, com perdas funcionais e sociais, colabora para o desenvolvimento da depressão. No campo social, o isolamento e o medo de julgamento acentuam ainda mais esse quadro.

Imprevisibilidade que paralisa

A insegurança gerada por sintomas imprevisíveis tem um impacto profundo na autoestima dos pacientes. “O medo constante de uma crise repentina pode levar os pacientes a evitar situações sociais, viagens e até mesmo atividades cotidianas simples”, relata Luciana.

Esse comportamento de evitação acaba alimentando um ciclo de isolamento social, solidão e sentimentos de inadequação. Para muitos, o corpo se torna um inimigo, especialmente em situações públicas. Além disso, alterações físicas como perda de peso, inchaço abdominal ou o uso de dispositivos médicos reforçam a baixa autoestima e a autocrítica.

Segundo um relatório da Crohn’s & Colitis Foundation dos EUA, cerca de 50% dos pacientes relatam impactos negativos na vida social e profissional, além de dificuldades em manter relacionamentos íntimos. No Brasil, apesar da ausência de estudos abrangentes, os relatos clínicos seguem a mesma linha.

Sintomas imprevisíveis como diarreia e dor abdominal impactam não apenas o corpo, mas também a saúde emocional dos pacientes com Crohn.
Sintomas imprevisíveis como diarreia e dor abdominal impactam não apenas o corpo, mas também a saúde emocional dos pacientes com Crohn. - iStock/m-gucci

O estigma das doenças invisíveis

Luciana também chama atenção para um fator cultural relevante: o tabu em torno das doenças intestinais. Mesmo sendo condições médicas legítimas, são frequentemente cercadas por vergonha, piadas e desinformação. “O estigma agrava significativamente o sofrimento psicológico dos pacientes com Doença de Crohn”, afirma.

Essa vergonha impede muitos de falarem sobre a doença ou de buscarem ajuda. “O medo do julgamento pode levar ao isolamento social, intensificando sentimentos de solidão, ansiedade e depressão”, acrescenta.

O preconceito e o desconhecimento também afetam a adesão ao tratamento. A falta de empatia por parte de colegas de trabalho, amigos ou até familiares pode fazer com que o paciente omita sintomas e negligencie o autocuidado.

A conexão entre mente e intestino

A ciência tem confirmado, com cada vez mais evidências, que o sistema digestivo e o cérebro estão profundamente conectados. O chamado eixo intestino-cérebro é uma via de mão dupla: assim como a inflamação intestinal afeta o humor, estados emocionais como estresse e ansiedade podem piorar os sintomas físicos.

Luciana relata esse fenômeno com clareza no consultório: “O estresse, a ansiedade e a depressão podem influenciar a atividade do sistema nervoso autônomo e do sistema imunológico”, explica. “Essa interação bidirecional cria um ciclo vicioso onde o sofrimento físico e o sofrimento emocional se retroalimentam.”

Essa compreensão é fundamental para um tratamento mais eficaz. Pacientes que recebem suporte psicológico demonstram não apenas melhora emocional, mas também maior estabilidade nos sintomas gastrointestinais, conforme aponta estudo da American Gastroenterological Association.

Psicoterapia: mais que apoio, parte do tratamento

Nesse cenário, a psicoterapia não deve ser encarada como coadjuvante, mas como parte integrante do plano terapêutico. “No consultório, a gente trabalha em várias frentes”, relata Luciana, citando o gerenciamento emocional, o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento, a reestruturação de pensamentos disfuncionais e a promoção da aceitação.

Ela destaca dois métodos que têm se mostrado eficazes: a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), que ajuda na modificação de pensamentos negativos e na criação de hábitos mais saudáveis; e a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), que incentiva o paciente a aceitar suas limitações e focar em ações que deem sentido à vida.

Além disso, o fortalecimento da autoestima e das habilidades sociais é essencial. Aprender a falar sobre a doença com clareza e segurança, comunicar-se com familiares e buscar apoio são passos importantes para uma convivência mais saudável com o Crohn.

Isolamento: o sintoma invisível

O isolamento social é um dos efeitos colaterais mais silenciosos da doença. “Muitos pacientes relatam que se isolam, evitam sair, têm dificuldade em falar sobre a doença com amigos e familiares”, diz Luciana. Para ela, romper esse ciclo é uma das metas da psicoterapia.

A vergonha dos sintomas, o medo de ser um fardo ou de não ser compreendido contribuem para esse afastamento. “A sensação de ser ‘diferente’ ou ‘menos capaz’ também pode levar ao afastamento social”, completa.

Para lidar com isso, a psicóloga propõe o fortalecimento da autocompaixão e o engajamento em grupos de apoio, onde a troca de experiências promove identificação e acolhimento.

Pacientes com Doença de Crohn enfrentam não só a inflamação intestinal, mas também o estigma social e o isolamento emocional.
Pacientes com Doença de Crohn enfrentam não só a inflamação intestinal, mas também o estigma social e o isolamento emocional. - iStock/Jacob Wackerhausen

Estratégias para enfrentar os desafios emocionais

Luciana recomenda uma série de estratégias para os pacientes enfrentarem os desafios emocionais impostos pela doença. Entre elas estão:

  • Mindfulness e técnicas de relaxamento para reduzir o estresse;
  • Reestruturação de pensamentos negativos, transformando padrões autodestrutivos;
  • Aceitação das emoções e foco no presente;
  • Metas realistas e significativas, que tragam propósito à vida;
  • Autocompaixão e autocuidado, reconhecendo as próprias limitações sem culpa;
  • Hábitos saudáveis, como boa alimentação, sono de qualidade e atividade física adequada.

A importância de um cuidado integral

Para além do consultório psicológico, Luciana defende uma mudança de paradigma no atendimento a pessoas com doenças crônicas. “É essencial que os profissionais de saúde adotem uma abordagem biopsicossocial”, afirma.

Ela ressalta a importância de incluir a avaliação da saúde mental nas consultas, oferecer acompanhamento psicológico e construir uma rede de cuidado interdisciplinar com nutricionistas, gastroenterologistas e psicólogos. “É preciso olhar para o paciente como um todo”, finaliza.