‘É uma perda para todos’: os desafios da inclusão de adultos autistas nos espaços sociais
Diagnóstico tardio, masking e inclusão: por que adultos autistas precisam ser vistos, compreendidos e apoiados
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é frequentemente associado à infância, mas o autismo não desaparece com o passar dos anos. Muitos adultos convivem com o autismo sem sequer saber, já que os sinais podem ser confundidos com traços de personalidade ou hábitos. Segundo a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cerca de 3 milhões de brasileiros podem estar em algum ponto do espectro.
Receber um diagnóstico tardio pode trazer alívio, mas também desencadear um turbilhão emocional. Neste Abril Azul, em conscientização ao autismo, a psicoterapeuta Tatiana Perecin concedeu entrevista exclusiva à Catraca Livre para explicar os impactos e as necessidades desse grupo muitas vezes invisível.

Diagnóstico tardio: o peso do sofrimento silencioso
Segundo a Tatiana, muitos adultos chegam à vida adulta já acumulando anos de sofrimento mental. “Por não terem sido identificados na infância, eles não aprenderam a lidar com suas características, nem receberam estímulos suplementares para desenvolver habilidades atrasadas”, explica.
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Ela acrescenta que, ao tentarem se adaptar, muitos recorrem ao chamado masking — a imitação de comportamentos neurotípicos — que, longe de aliviar o sofrimento, agrava a situação. “Isso acarreta que os autistas diagnosticados na vida adulta cheguem com índices muito maiores do que os neurotípicos de transtornos de ansiedade, transtornos depressivos e risco muito aumentado pra tentativas de suicídio”, alerta.
Maturidade e os desafios de um mundo mal adaptado
Quando questionada sobre a influência da maturidade, a psicóloga é categórica: “O simples passar do tempo não ensina nada. O que ensina são as experiências e o que a gente consegue aprender com elas.” Para os autistas, o aprendizado é dificultado por mensagens sociais incompatíveis com sua forma de funcionamento.
“Normalmente, eles recebem orientações inadequadas para o seu tipo de cérebro, o que gera um quadro de sofrimento mental constante e quadros de desesperança, aumentando o risco de pensamentos suicidas”, diz.

Máscaras sociais: uma armadilha perigosa
A pressão para se adequar leva muitos autistas a desenvolverem máscaras sociais. “É comum que pessoas autistas aprendam a agir de maneiras que não são espontâneas pra elas como uma tentativa de escapar de sofrimento”, conta Tatiana.
Ela ressalta que essa tentativa de adaptação tem custo elevado. “Mesmo que os neurotípicos à volta dele estejam confortáveis, ele não está. E é por isso que o masking é muito danoso pra saúde mental.” Para o autista, agir de forma diferente de seu funcionamento natural significa viver uma vida com menos prazer, mais sofrimento e solidão.
O que é masking?
No campo do autismo, masking (ou “mascaramento”, em português) é o termo usado para descrever o esforço consciente ou inconsciente que pessoas autistas fazem para esconder ou disfarçar suas características autísticas, tentando se adaptar às expectativas sociais neurotípicas.
Em outras palavras, é quando a pessoa autista tenta agir, falar, reagir e interagir como as pessoas neurotípicas esperam, mesmo que isso vá contra sua forma natural de ser. Isso pode incluir, por exemplo:
- Forçar contato visual mesmo se isso for desconfortável.
- Imitar expressões faciais ou tons de voz de outras pessoas.
- Ensaiar conversas ou falas para soar “adequado”.
- Reprimir comportamentos autênticos como movimentos repetitivos (os chamados “stims”) que ajudariam a se autorregular.
- Ocultar interesses intensos considerados “incomuns”.
- Tentar parecer mais “sociável” do que realmente se sente confortável.
O problema é que o masking consome uma enorme quantidade de energia emocional e mental. A longo prazo, ele está associado a altos índices de ansiedade, depressão, esgotamento e, em casos mais graves, pensamentos suicidas.
Ambiente de trabalho: ajustes são necessários
No mercado de trabalho, as dificuldades vão além do senso comum. A psicoterapeuta detalha quatro categorias principais de desafios: sensoriais, de comunicação, de organização de tarefas e sociais.
Ela explica que ajustes simples — como permitir o uso de fones de ouvido, luzes adequadas e divisão clara de tarefas — podem fazer toda a diferença. No entanto, alerta para a maior barreira: o preconceito social. “O autista acaba sendo socialmente punido quando utiliza maneiras diferentes pra chegar no mesmo tipo de conforto. E isso é o principal desafio que temos que superar”, afirma.
Relações sociais e afetivas: linguagens diferentes
No campo social e afetivo, a teoria do “problema duplo da empatia”, proposta por Damian Milton, ajuda a entender o fenômeno. Tatiana explica com uma metáfora: “Autistas e neurotípicos vêm, de fábrica, com softwares de sociabilidade diferentes instalados.”
Assim, enquanto entre autistas as relações fluem naturalmente, com neurotípicos é necessária uma espécie de tradução. “Nunca vamos conseguir uma sociedade realmente igualitária se só ensinarmos autistas a interpretar a linguagem neurotípica. Também precisamos ensinar os neurotípicos a interpretar a linguagem dos autistas”, defende.

O papel da psicoterapia: conhecer e respeitar o próprio funcionamento
A psicoterapia adequada é essencial para adultos autistas, especialmente os diagnosticados tardiamente. “É como se a gente estivesse finalmente estudando o manual do proprietário desse cérebro”, brinca Tatiana.
Ela alerta, no entanto, que essa terapia precisa ser feita por profissionais preparados para uma abordagem neuroafirmativa. “Se o profissional tentar ensinar o autista a agir como um neurotípico, só estará reforçando o masking e agravando o quadro de saúde mental do paciente.”
Um caminho a ser construído: inclusão e informação
Para a sociedade e os serviços de saúde, ainda há um longo caminho. “Nós estamos começando a abrir o caminho agora, está tudo por fazer”, avalia Tatiana.
Ela destaca que a falta de formação de profissionais da saúde sobre o autismo, mesmo 30 anos após a inclusão da síndrome de Asperger no DSM, é alarmante. “Precisamos urgentemente de atualização e formação sobre esse tema”, afirma.
No aspecto social, a especialista aponta que a inclusão de autistas não é apenas uma questão de justiça individual, mas um ganho para toda a sociedade. “A incapacidade de inclusão da pessoa autista é uma perda para todos. Uma sala de aula, uma empresa que não consegue incluir perde força, perde capacidade de inovação e adaptação.”
Reconhecer as particularidades do autismo na vida adulta é essencial para construir ambientes mais acolhedores e justos. Mais que empatia, é preciso ação concreta para derrubar preconceitos, ajustar espaços e abrir caminho para uma convivência em que todos possam florescer com autenticidade.