“Girl from Rio” e o fim do monopólio opressor de corpos irretocáveis
Diversificação de formas físicas no clipe da Anitta representa um toque de subversão, ainda que haja contradições
Se você teve acesso à internet nessa última semana, com certeza viu algum meme com o ônibus e a cadeirinha azul de plástico fazendo referência ao novo videoclipe da música “Girl from Rio”, da cantora Anitta.
No clipe, que se passa no famoso piscinão de Ramos, vários corpos desfilam com uma carioquice exagerada em meio a muito óleo bronzeador e marcas de biquíni e sungas. Embora a cantora possa estar embebida em contradições em relação à sua própria forma corporal – vale lembrar que Anitta é uma adepta de dietas restritivas e tem histórico de brigas com a balança –, no videoclipe o corpo da mulher real está presente a cada segundo. Logo, o saldo é positivo em termos da desnaturalização do corpo magro e musculoso, comumente retratado, em especial em videoclipes pops, como o único possível.
O filme começa fazendo uma alusão caricata da famosa canção de Tom e Vinícius, “Garota de Ipanema”, que, aliás, embala a própria melodia da música de Anitta.
De uma mulher magra, bem arrumada e recatada, rodeada por moços belos e contidos, encontramo-nos, de repente, em um cenário diametralmente oposto: uma multiplicidade de corpos, em meio a cadeiras e ambulantes, transitam e interagem, de modo quase selvagem, frente à uma naturalização incrível da exposição da seminudez.
Exibem-se barrigas, bumbuns e peitos em um mar sem fim. Mas há uma diferença importante – crucial, eu diria: os corpos não são iguais. Muito pelo contrário, ali estão corpos de todas as formas, mas não de todas as cores – são predominantemente corpos negros –, e que ganham vida em meio à multidão.
Corpos gordos, flácidos, rígidos, magros, grandes e pequenos. Corpos reais, bem diferente do mundo idealizado, homogêneo e claramente artificial do mundo da “Garota de Ipanema”.
Esse rompimento com a ideia de que só há um corpo possível – magro e escultural – não ocorre apenas no videoclipe. Em uma parte da música, Anitta subverte o estereótipo da mulher idealizada por turistas, principalmente, cantando que no Rio de Janeiro as garotas não seriam modelos, mas reais.
Diz a canção: “Garotas gostosas de onde eu venho/ Nós não parecemos modelos/ Linhas bronzeadas, grandes curvas/ E a energia brilha/ Você vai se apaixonar/ Com a garota do Rio”.
Claro que todos somos passíveis de contradições, e a cantora não está imune a elas. No clipe, por mais que existam corpos múltiplos e reais, Anitta diverge dessa heterogeneidade, apresentando, ela própria, um corpo magro, musculoso e idealizado.
Não à toa, exatamente por isso, Anitta consegue contracenar os dois papeis: o da Garota de Ipanema e o da Garota do Rio, sendo que, no segundo caso, os corpos reais aparecem apenas como figurinos, como cenário – no fundo da história –, mas não como protagonistas.
Chama atenção também o fato de Anitta se relacionar no clipe amorosamente apenas com um rapaz, que, coincidentemente, também está em conformidade com o padrão de beleza masculino – forte (mas magro), com abdome extremamente definido e torneado.
O casal do Rio – Anitta e seu par amoroso – não tem nada de subversivo corporalmente; é a conformidade visual ao padrão de beleza socialmente aceito e socialmente bombardeado em todas nós faça chuva, faça sol, dia sim e dia também.
Isso não significa, como disse, que o clipe não saia com saldo positivo. Entre prós e contras, só o fato de termos a celebração das formas naturais, acabando com o monopólio opressor de corpos irretocáveis – que, aliás, é a regra nos clipes de grandes nomes da música pop mundial –, já representa, em si mesmo, um toque de subversão. E que, com ele, abram-se mais portas para outras artistas celebrarem não só a garota real do Rio, mas a garota real de Recife, de Fortaleza, de São Paulo, de Tocantins – enfim, de todos os rincões desse Brasil.
Texto escrito pela nutricionista Marcela Kotait.