‘Sem esse sangue eu jamais estaria viva’: pedagoga convive com doença grave e depende de transfusões desde os três meses de vida
Diagnosticada ainda bebê, Roberta enfrenta crises de dor, longas internações e dificuldades para encontrar sangue compatível
Diagnosticada com doença falciforme aos três meses de idade, Roberta Chagas, 41, convive com uma condição crônica que exige cuidados constantes desde o início da vida. Nascida no Rio de Janeiro e atualmente morando em Recife, ela cresceu acompanhando os desafios da doença não apenas na própria pele, mas também na de uma irmã, que também foi diagnosticada ainda bebê.
“Para os meus pais, era tudo muito novo e desafiador”, relembra Roberta. Apesar de precoce, o diagnóstico não impediu que o cotidiano fosse marcado por internações, crises de dor e, principalmente, a dependência de transfusões de sangue. “As transfusões sempre foram constantes e frequentes, para manter a hemoglobina estável e evitar crises vaso-oclusivas ou até problemas mais graves como AVC”, explica a pedagoga, em entrevista à Catraca Livre, para o especial de Junho Vermelho, campanha em conscientização de doação de sangue.
A doença falciforme é uma enfermidade hereditária que afeta os glóbulos vermelhos do sangue, tornando-os em forma de foice, o que dificulta a circulação e pode causar dor intensa, anemia grave e até falência de órgãos. De acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil nascem cerca de 3.500 crianças com a forma grave da doença todos os anos, e cerca de 200 mil pessoas são portadoras do traço falciforme.

Sobrevivência que depende da solidariedade
O impacto da doença não diminui com o tempo — pelo contrário. “Hoje em dia noto que é muito mais desgastante”, desabafa Roberta. As complicações aumentaram com os anos, e em 2023 ela passou por um dos períodos mais difíceis da vida. “Fiquei nove meses internada. Dei entrada em novembro com pneumonia e só tive alta em 20 de julho de 2024.”
Durante essa internação prolongada, ela precisou de mais de 15 bolsas de sangue para enfrentar sepse (duas vezes), uma cirurgia de emergência para retirada da vesícula e diversas crises de dor. “Sem esse sangue eu jamais estaria viva”, afirma.
As transfusões não são apenas paliativas — elas são uma questão de sobrevivência para quem tem doença falciforme. E ainda assim, a doação de sangue no Brasil está aquém do ideal. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 3% e 5% da população deveria doar sangue regularmente. No Brasil, apenas 1,6% da população doa com frequência, conforme dados do Ministério da Saúde.

A espera por sangue compatível
O uso constante de transfusões ao longo da vida traz um desafio adicional: a dificuldade em encontrar sangue compatível. “Por causa de inúmeras transfusões, tem sido extremamente difícil encontrar bolsas compatíveis, por causa dos fenótipos que vão surgindo”, conta Roberta. Isso ocorre porque o organismo pode desenvolver anticorpos contra determinados tipos de sangue, dificultando transfusões futuras.
Ela relata que, em algumas ocasiões, a espera por uma bolsa de sangue ultrapassou 15 dias — uma eternidade para quem vive com hemoglobina entre 5 e 6 (o ideal é acima de 12). “Viver com essa taxa é viver em sofrimento constante”, resume.
Hospitalização contínua e invisibilidade médica
Roberta também aponta o cansaço físico e emocional de viver praticamente em hospitais. “A rotina hospitalar é extremamente cansativa. Muitas vezes, pela dificuldade de transfusões, precisamos fazer inúmeras medicações para manter uma vida com menos dor e sofrimento”, explica.
Além das complicações médicas, ela denuncia a falta de preparo dos profissionais de saúde para lidar com a doença falciforme. “Sofremos muito preconceito em hospitais. A maioria dos médicos desconhece a doença, por isso invalidam nossas dores e não nos dão escuta. Isso é extremamente desgastante.”
Segundo a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), a falta de informação entre os profissionais de saúde é um dos principais entraves para o diagnóstico e o tratamento adequados da doença falciforme. Em muitos casos, o paciente é estigmatizado como hipocondríaco ou exagerado.

Sintomas que vão além da dor
A doença falciforme é uma condição genética que afeta os glóbulos vermelhos, fazendo com que eles assumam uma forma semelhante à de uma foice. Essa alteração compromete a capacidade do sangue de transportar oxigênio de maneira eficiente, o que gera diversos sintomas que impactam diretamente a qualidade de vida dos pacientes.
As manifestações mais comuns da doença incluem crises de dor intensa, chamadas crises vaso-oclusivas, que ocorrem quando os glóbulos deformados bloqueiam a circulação sanguínea em pequenos vasos. Essas dores podem durar horas ou dias, e geralmente acometem ossos, articulações, peito e abdômen.
Outros sintomas frequentes incluem fadiga crônica, icterícia (pele e olhos amarelados), infecções recorrentes, inchaço nas mãos e pés e atraso no crescimento. Além disso, a doença pode causar complicações graves ao longo do tempo, como acidentes vasculares cerebrais (AVCs), lesões nos rins, fígado e pulmões, além de úlceras nas pernas.
Em bebês, os primeiros sinais geralmente surgem entre os quatro e seis meses de idade, com episódios de febre, irritabilidade, inchaço nas extremidades e anemia. Por isso, o teste do pezinho é essencial para o diagnóstico precoce. Segundo o Ministério da Saúde, a triagem neonatal da doença falciforme é obrigatória em todo o Brasil desde 2001, e permite iniciar o acompanhamento clínico desde os primeiros meses de vida.
Tratamento que exige acompanhamento contínuo
Não existe cura definitiva para a doença falciforme — com exceção do transplante de medula óssea, indicado apenas em casos muito específicos e com risco elevado. Por isso, o tratamento é voltado para o controle dos sintomas, a prevenção de complicações e a melhoria da qualidade de vida do paciente.
O plano terapêutico envolve uma série de medidas integradas. A base do tratamento inclui o uso de medicamentos como o sulfato de hidroxureia, que ajuda a reduzir a frequência e intensidade das crises de dor, além de antibióticos profiláticos, suplementação de ácido fólico e vacinas para prevenir infecções.
As transfusões de sangue são um dos pilares do tratamento, principalmente em casos de anemia grave, crises severas ou antes de cirurgias. Como mostrado no relato de Roberta Chagas, elas são frequentemente a única forma de estabilizar o quadro clínico de forma emergencial.
No entanto, o uso contínuo de transfusões pode levar a complicações, como a sobrecarga de ferro no organismo (hemossiderose), que exige tratamento com medicamentos quelantes para remover o excesso. Além disso, como o corpo pode desenvolver anticorpos contra o sangue recebido, a compatibilidade se torna mais difícil com o passar dos anos.
É de extrema importância o acompanhamento especializado por equipes multiprofissionais, incluindo hematologistas, clínicos, psicólogos e assistentes sociais. Também é fundamental o apoio de centros de referência, que garantem acesso aos medicamentos, exames e atendimento regular.
Segundo a diretriz do Ministério da Saúde, pessoas com doença falciforme devem ter um plano individualizado de cuidado, com consultas regulares, suporte psicossocial e orientação sobre hábitos de vida saudáveis. O acesso à informação e a uma rede de apoio eficiente pode fazer a diferença entre viver com dor constante e conseguir manter uma rotina mais digna e funcional.

A urgência da doação
Durante a conversa, Roberta é enfática sobre a importância da doação de sangue. “É de total importância na vida de quem tem doença falciforme, porque muitas vezes só o sangue é capaz de nos salvar de fato”, diz. Para ela, doar sangue é um ato que ultrapassa o altruísmo: “Doe, você não faz ideia do quão valioso para nós falciformes é o seu sangue, o quanto nos traz vida.”
Essa urgência é refletida também em campanhas como o Junho Vermelho, que busca sensibilizar a população sobre a necessidade de manter os estoques dos hemocentros em níveis seguros. Durante o inverno, os estoques costumam cair, agravando ainda mais a situação de pacientes como Roberta.
Viver com falciforme
No fim da entrevista, Roberta faz um desabafo. “Viver com essa doença é viver de incertezas, medos, sofrimentos, dores, negligência. É já nascer com coragem para não desistir, porque sempre tem aquele dia que a gente pensa em desistir, mas a coragem sempre nos levanta.”