‘Vivemos entre muitos achismos e senso comum’: o relato de um pai atípico após o diagnóstico de autismo

Thiago Almeida conta a trajetória da família após o diagnóstico de autismo do seu filho do meio; psicóloga comenta os impactos emocionais desse processo

Por Wallace Leray em parceria com Anna Luísa Barbosa (Médica - CRMGO 33271)
09/04/2025 17:44 / Atualizado em 25/04/2025 09:32

Thiago Almeida, 38 anos, é educador social. Nasceu em Santo André e vive em Mauá, ambas na Grande São Paulo. Casado com Regiane, é pai de três crianças: Gabriel, Mariano e Elis.

No centro dessa família, está Mariano, seu filho do meio. Com 7 anos, ele é uma criança autista com nível de suporte dois. Seu jeito de estar no mundo e de se comunicar transformou para sempre o modo como Thiago enxerga a paternidade.

A história que une Thiago e Mariano é daquelas que não seguem roteiro. É vida real, com pausas longas, silêncios que falam, e um amor que reaprende a se expressar todos os dias.

‘Vivemos entre muitos achismos e senso comum’: o relato de um pai atípico após o diagnóstico de autismo
‘Vivemos entre muitos achismos e senso comum’: o relato de um pai atípico após o diagnóstico de autismo - Arquivo pessoal

Os primeiros sinais: quando o espelho fala mais que as palavras

Mariano chegou ao mundo como o segundo filho. Desde cedo, Thiago e Regiane, sua companheira de caminhada, perceberam que algo seguia por uma trilha diferente. Mariano andou sem engatinhar. Encantava-se por seu próprio reflexo no espelho. Suas mãos giravam no ar, e o corpo balançava como se embalasse uma música só dele. A fala vinha com dificuldades, e comportamentos autolesivos preocupavam.

A comparação com o irmão mais velho, Gabriel, trouxe luz a esses sinais. E logo veio a busca por respostas. Com o apoio de uma equipe multiprofissional, o diagnóstico chegou: Transtorno do Espectro Autista (TEA). Foi pelo SUS que a família encontrou as primeiras respostas — e também os primeiros desafios.

O peso do diagnóstico: a ausência de respostas

“O primeiro sentimento que vem pra gente é sobre o desconhecido”, lembra Thiago, durante entrevista exclusiva à Catraca Livre para o especial Abril Azul, campanha em conscientização do autismo. “Como e por quê? O que faremos agora?”, indagou.

A chegada do diagnóstico não trouxe alívio imediato — trouxe medo, confusão e um cansaço que não se explica. Ainda mais diante de falas carregadas de capacitismo: que o filho sempre dependeria dos pais, que talvez nunca estudasse, não tivesse carreira, não amasse.

Ouvir isso, lembra Thiago, “é como viver um luto, na necessidade de se reinventar no exercício da paternidade e maternidade”.

A família se fortalece na união e nas trocas com outras famílias atípicas.
A família se fortalece na união e nas trocas com outras famílias atípicas. - Arquivo pessoal

Tensão cotidiana: viver em modo alerta

A sobrecarga não foi pontual — é constante. “A gente como família atípica vive em um sentimento de tensão, uma espécie de alerta”, descreve. Isso porque qualquer gatilho pode acionar uma crise. E somado a isso, está o desafio diário de incluir Mariano em um mundo que ainda é feito para pessoas típicas.

Há poucas opções de lazer adaptado, pouca acessibilidade nas escolas, e quase nenhuma compreensão social. Até um simples passeio no shopping exige planejamento.

Entre filas e renúncias: o longo caminho do SUS

O diagnóstico de Mariano veio pelo Sistema Único de Saúde (SUS) — uma conquista, mas também uma batalha. “As filas para atendimentos médicos especializados na rede pública são gigantes pela alta demanda”, diz Thiago.

Por isso, mesmo com dificuldades, a família precisou buscar alternativas particulares. “Fazemos um grande esforço e até privação de algumas coisas em nosso cotidiano, pra ofertar possibilidades e oportunidades de cuidado particular ao nosso filho.”

Casa nova em sentimentos antigos

A rotina da casa também mudou. Mas não o amor. Foi preciso adaptar o ambiente para reduzir estímulos, repensar a alimentação, ajustar a rotina escolar, adotar comunicação assistiva — tudo para acolher Mariano em suas necessidades.

Como ele é não verbal, cada gesto passou a ser uma forma de diálogo. E com o tempo, a família encontrou na rede de outras famílias atípicas um porto de trocas e apoio.

“Uma saída simples se torna algo diferente, pois devemos planejar, tornar previsível e pensar nas demandas dele, antes de qualquer coisa.”

Entre terapias, escola e lazer adaptado, a família encontrou formas de tornar o dia a dia mais previsível e acolhedor para Mariano.
Entre terapias, escola e lazer adaptado, a família encontrou formas de tornar o dia a dia mais previsível e acolhedor para Mariano. - Arquivo pessoal

Entre terapias e obstáculos: o que o cuidado exige

A busca por tratamento, terapias e apoio profissional também foi (e ainda é) um caminho cheio de obstáculos.

As terapias na rede pública são difíceis, e há constante troca de profissionais. Já na rede privada, os convênios impõem barreiras e limites.

“Infelizmente, hoje se apresenta uma série de ofertas de cuidado, como se após o diagnóstico, tivéssemos a obrigação de seguir uma ‘cartilha do autismo’”, desabafa. Mas nem tudo é aplicável, nem tudo é acessível.

A música e os pequenos dedos

Nem só de luta se constrói essa história. Há também beleza. Um dia, enquanto Thiago tocava violão, Mariano observava. E como quem aprende sem palavras, começou a imitar com delicadeza os acordes. Posicionou os dedos pequenos, tentando copiar o que via.

“Eu me emocionei muito com essa cena”, conta o pai. Desde então, a música se tornou mais um elo entre eles — respeitando o tempo e o jeito de Mariano de se expressar.

O preconceito que ninguém vê

O autismo, por ser uma deficiência invisível, muitas vezes vem acompanhado de julgamentos silenciosos — ou barulhentos. “Há grande enfrentamento e julgamento pelas pessoas”, conta Thiago.

Já lidaram com olhares em filas preferenciais, questionamentos por usar vagas especiais, e até pessoas achando que uma crise era “falta de educação”. “Vivemos entre muitos achismos e senso comum, infelizmente”, diz, reforçando a importância da conscientização.

A presença que é amor

Há uma característica em Mariano que emociona Thiago profundamente: sua necessidade de estar junto.

“Ele faz questão que estejamos todos juntos. Se um não está presente ele sente, questiona, se inquieta…”

Mesmo sem falar, Mariano tem sua forma de dizer que ama. O silêncio também é linguagem. E no seu silêncio, há afeto puro.

Juntos na criação dos três filhos, Thiago e Regiane dividem desafios e descobertas na jornada com Mariano.
Juntos na criação dos três filhos, Thiago e Regiane dividem desafios e descobertas na jornada com Mariano. - Arquivo pessoal

Para os que estão começando: acolha o processo

Para os pais que acabam de receber um diagnóstico e se sentem perdidos, Thiago tem um conselho: “Viva o processo! Se precisar chorar, chore. Se por algum instante se achar incapaz, se capacite.”

Mais do que tudo, ele pede: não criem expectativas baseadas apenas em seus desejos. “Sejam pacientes com vocês também. Se cuidem. Nosso amor é incondicional. Nossa luta necessita de união com demais famílias atípicas, de conhecimento e de participação efetiva nas tomadas de decisões.”

Porque no fim, ninguém caminha sozinho. E como ele diz: “Nada sobre nós sem nós.”

Psicóloga comenta sobre o impacto emocional do autismo nas famílias

A psicóloga Franciele Dense Vicenitni, 37 anos, especialista em neuropsicologia em autismo, vive o assunto tanto na prática clínica quanto na vida pessoal: é mãe de um menino autista de 9 anos e também recebeu um diagnóstico tardio de autismo. Em entrevista exclusiva à Catraca Livre, ela compartilha sua experiência e orientações para ajudar famílias a compreenderem e enfrentarem os desafios emocionais que surgem com a descoberta do transtorno.

Os primeiros sinais de alerta

Segundo ela, os primeiros sinais que costumam levar os pais a suspeitarem de autismo geralmente aparecem ainda nos primeiros anos de vida. “Entre eles, estão a pouca resposta quando a criança é chamada pelo nome, menor interesse em interações sociais (como brincar com outras crianças ou manter contato visual), dificuldades na comunicação (como atraso na fala ou repetição de palavras/frases), além de comportamentos repetitivos e interesse intenso por objetos ou temas específicos”, explica Franciele.

Ela também aponta que reações diferentes a estímulos sensoriais — como barulhos, texturas ou luzes — e dificuldade com mudanças na rotina são indícios comuns.

Como é feito o diagnóstico

O diagnóstico, como lembra a psicóloga, é clínico e envolve uma avaliação detalhada. “Não existe um exame único que confirme o diagnóstico — por isso, a experiência do profissional faz toda diferença.” Para as famílias, o processo pode ser desafiador. “Os maiores desafios costumam ser o medo do rótulo, a dificuldade de acesso a profissionais qualificados e o impacto emocional do processo.”

Reações emocionais ao receber o diagnóstico

A notícia do diagnóstico costuma gerar reações emocionais intensas. “Muitos pais sentem um misto de alívio e dor. Alívio por entender melhor o filho, mas também medo, culpa ou tristeza — especialmente por não saberem o que esperar do futuro”, diz Franciele. “É comum viver um luto simbólico, repensar expectativas e precisar de um tempo para elaborar tudo isso.”

No caso dos adultos que recebem um diagnóstico tardio, como a própria psicóloga, o sentimento é semelhante. “Muitos relatam um sentimento de libertação por finalmente se reconhecerem, mas também tristeza por tudo que passaram sem entender o porquê.”

Para lidar com esse impacto emocional, Franciele aconselha que os pais saibam que “não estão sozinhos”. Ela recomenda buscar informações de fontes confiáveis, conversar com profissionais acolhedores e procurar grupos de apoio. “Também é fundamental respeitar o próprio tempo. Cada família tem seu ritmo para entender e se adaptar à nova realidade.”

Franciele Dense Vicenitni: psicóloga, mãe de autista e também autista — fala com lugar de escuta e vivência.
Franciele Dense Vicenitni: psicóloga, mãe de autista e também autista — fala com lugar de escuta e vivência. - iSTock/KatarzynaBialasiewicz

Primeiros passos após o diagnóstico

Após o diagnóstico, as primeiras atitudes práticas também fazem diferença. “É importante que a família busque orientação profissional e siga as indicações de intervenções como fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional, de acordo com as necessidades da criança.” Ela reforça que adaptar a rotina com carinho e respeito ao jeito único da criança é essencial.

Como comunicar o diagnóstico à rede de apoio

Uma dúvida comum é como comunicar o diagnóstico a familiares e à rede de apoio. Franciele orienta: “O ideal é escolher pessoas de confiança e explicar de forma simples o que é o autismo e como ele se manifesta no seu filho.” Segundo ela, nem todos entenderão de imediato, e tudo bem. “O mais importante é que os pais saibam que não precisam enfrentar julgamentos ou dar satisfações.”

A importância do acompanhamento psicológico

O acompanhamento psicológico também é um recurso valioso para os pais nesse processo. “Ajuda a elaborar as emoções envolvidas, reduzir a culpa, lidar com o medo do futuro e fortalecer os vínculos familiares.” É também um espaço onde os pais podem reconhecer seus limites e cuidar de si. “Apoiar a família emocionalmente é também cuidar do desenvolvimento da criança.”

Armadilhas emocionais no processo

Mas é comum cair em armadilhas emocionais, especialmente no início. “Um erro frequente é buscar soluções imediatas ou seguir orientações sem considerar as necessidades reais da criança”, diz Franciele. E alerta: “Comparar o filho com outras crianças ou se culpar por não ter percebido os sinais antes só gera mais sofrimento — e não ajuda em nada no processo.”

Com experiência profissional e pessoal com o autismo, Franciele defende que acolher os sentimentos das famílias é parte essencial do cuidado.
Com experiência profissional e pessoal com o autismo, Franciele defende que acolher os sentimentos das famílias é parte essencial do cuidado. - iStock/KatarzynaBialasiewicz

Cuidar dos filhos sem esquecer de si mesmo

Equilibrar o cuidado com a criança e o bem-estar emocional dos pais é um ponto central. “É impossível sustentar esse cuidado de forma saudável sem preservar o próprio bem-estar.” Para isso, ela defende que se cuidar “não é egoísmo — é necessidade.”

Uma mensagem para quem está começando a jornada

Ao final, Franciele deixa uma mensagem às famílias que estão vivendo esse momento: “Se você acabou de receber o diagnóstico do seu filho e sente que o chão saiu dos pés, respira. Não precisa saber tudo agora.”

E completa: “O diagnóstico não muda quem seu filho é — ele continua sendo a mesma criança, com o mesmo sorriso, o mesmo jeito único de enxergar o mundo. O que muda é que agora vocês têm uma chave para compreendê-lo melhor.”