100 anos de Modernismo ou há caminhos que só a arte pode abrir
Em 2017 comemora-se o centenário da arte moderna no Brasil, movimento que teve como pontapé a exposição individual de Anita Malfatti; saiba mais
Seja qual for o contexto, não é preciso ir muito além do dicionário para compreender que a palavra movimento pressupõe uma ação: é sempre a ruptura do estado atual e a busca pelo novo. Busca esta que geralmente é pautada pela curiosidade, pela vontade de explorar o desconhecido e pela sensibilidade e inquietude latentes, os quais fazem artistas atravessarem os tempos.
É o caso da pintora Anita Malfatti (1889-1964), que há cem anos dava o pontapé necessário para que o movimento modernista começasse no Brasil com a Exposição de Pintura Moderna. Em cartaz durante um mês (entre 12 de dezembro de 1917 e 11 de janeiro de 1918), a mostra apresentava o resultado de suas viagens dos últimos anos para a Alemanha e para os Estados Unidos, onde flertou fortemente com o expressionismo alemão e com um estilo de pintar desprendido dos padrões acadêmicos.
A elite cafeeira paulistana da época não recebeu bem este novo olhar, já que detinha uma sensibilidade artística restrita à fiel representação da realidade, não reconhecendo nos traços grossos e cores vibrantes de Anita uma expressão digna de levar o título de arte.
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Também pudera, São Paulo vivia um momento muito diferente das capitais europeias: a independência de Portugal havia acontecido há apenas cem anos, período curto historicamente falando. De acordo com Maria Inês Santos Duarte, professora de história da arte na PUC-SP, não se conhecia muito sobre arte porque não havia onde expor as obras. “Não havia nada muito organizado no sentido de poder conhecer uma coisa diferente. Não tinha infraestrutura. E por isso a exposição da Anita foi interessante, porque apresentou um conjunto de obras que foram muito radicais do ponto de vista da linguagem que se estava acostumado aqui, de uma maneira muito intensa”.
Ao mesmo tempo que este estranhamento pairava no ar, culminando em telas vendidas sendo devolvidas e a famosa crítica negativa de Monteiro Lobato (1882-1948) – o artigo “Paranoia ou mistificação?” escrito para O Estado de São Paulo, foi como se os artistas inquietos levassem um chacoalhão e passassem a se articular para deixar florescer a arte moderna no Brasil.
A exemplo de Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), que frequentaram a exposição diversas vezes e foram firmes no contraponto às duras críticas de Lobato. Segundo Maria Inês, tal embate foi significativo para que artistas que não tinham oportunidade de mostrar seus trabalhos dialogassem, se organizassem e, cinco anos depois, realizassem a icônica Semana de Arte Moderna de 22.
A Semana explorou as mais diversas linguagens artísticas e lançou expoentes como Di Cavalcanti (1897-1976), Menotti del Picchia (1892-1988), Manuel Bandeira (1886-1968) e Villa-Lobos (1887-1959), entre outros. Inicialmente marcado para acontecer entre 11 e 18 de fevereiro, o evento ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo apenas nos dias 13, 15 e 17 do mês, explorando, em cada um deles, uma vertente: pintura e escultura, literatura, e música, respectivamente.
Homenagem a Anita
Merecidamente, em 2017 a pintora é tema da exposição Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna no Museu de Arte Moderna, localizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. A mostra é dividida em três etapas de sua produção com cerca de 70 obras que apresentam a versatilidade de seus traços, referências, momentos e suportes – da aquarela ao óleo sobre tela, passando pelos esboços de corpos nus em carvão.
Segundo Regina Teixeira de Barros, curadora da mostra, “quando a exposição de 1917 foi criticada negativamente por Lobato, outros pontos também estavam em jogo: o fato de ela ser mulher [se hoje em dia é difícil ter espaço e reconhecimento, imagine à época], de não pertencer a uma classe econômica privilegiada, e por conta de ser destra e possuir uma atrofia na mão direita. Ela foi tida como coitadinha, vítima. Mas como pensar que uma mulher nas décadas de 10 e 20, que viaja, fala várias línguas e não se acomoda é frágil?”.
A ideia desta exposição comemorativa, de acordo com Barros, é trocar em miúdos; longe de criar um discurso erudito e inacessível, o objetivo é explicar o que a artista fez e como o fez, para que as pessoas possam se interessar e criar o hábito de se aproximar das artes. “É outra sensação ver uma tela. Mas não é complicado, é só uma questão de ter disposição”, diz. “A tese é que não se tenha o mesmo olhar que os contemporâneos dela tiveram”.
Além da linha do tempo da artista, a mostra apresenta, na primeira parte, a Anita inovadora que pintou as vibrantes “A Estudante” e “O Farol”, ambas telas datadas de 1915-16 e concebidas em terras gringas, e também “Tropical”, que constava na individual de 1917.
No segundo recorte, o destaque de Malfatti, já de volta a São Paulo, vai para “A Chinesa”, exposta na Semana de 22 e feita sob encomenda pelo senador José de Freitas Valle, responsável por conceder bolsas de estudo para artistas estudarem no exterior. A chinesa em questão seria uma sobrinha de Freitas e o resultado foi satisfatório a ponto de fazer com que a pintora ganhasse a bolsa e fosse a Paris, onde colheu referências para realizar as obras que pautam a terceira parte da mostra. Festas e cenas populares, paisagens ao redor de São Paulo e temas mais brasileiros pontuam este momento, no qual ela retoma o diálogo com uma arte mais próxima dos padrões e assume uma “simplicidade” intencional.
O modernismo nos anos seguintes e a Galeria Domus
A mesma elite que financiou a Semana de 22, muito no intuito de fazer com que a cidade fosse o polo criativo do país e desbancasse o Rio de Janeiro, ainda tinha uma sensibilidade voltada para os modelos clássicos. Nos trinta anos que se seguiram, de 1917 a 1947, os modernistas permaneceram preteridos; a própria Anita ficou vinte anos sem fazer uma exposição individual.
É neste cenário que surge a Galeria Domus, fundada pelo casal italiano Anna Maria e Pasquale Fiocca, que haviam mudado para o Brasil para recomeçar a vida depois da 2ª Guerra Mundial. De curta duração e grande importância, o espaço funcionou apenas de 1947 a 1951 e foi pioneiro em abrir portas para expor artistas do calibre de Tarsila do Amaral (1888-1973), Alfredo Volpi (1896-1988) e Victor Brecheret (1894-1955).
Sabendo disso, José Armando Pereira da Silva, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte, escreveu o livro “Artistas na Metrópole”, no qual levanta como a crítica brasileira recebeu esses artistas na época, além de pontuar a relevância da galeria. Tal publicação gerou, como consequência, a exposição O mercado de arte moderna em São Paulo: 1947-51, da qual é curador, e que comemora os 70 anos de abertura da Galeria Domus levando obras de artistas modernos à Sala Paulo Figueiredo, também no Museu de Arte Moderna.
Ele conta que as duas mostras (esta e a de Anita) dialogam entre si, já que a Galeria Domus foi a primeira que deu cobertura e mercado para aqueles que estavam em atuação na época. “Coincide que no final de vida da galeria foi justamente quando aconteceu a primeira Bienal de São Paulo, marco de um novo período na arte. E a grande maioria dos artistas que expuseram na Domus estavam presentes na Bienal, o que significou um reconhecimento oficial como artistas modernos”, diz.
A arte nos dias de hoje
Quando o Brasil completou seu centenário de independência de Portugal, muitos eventos que comemoravam a data eram realizados – a exemplo da Semana de 22, que tinha ares de “segunda independência, só que desta vez artística”.
Questionada sobre a relação da arte contemporânea com uma possível terceira independência, Regina Teixeira de Barros diz acreditar que esta ideia é uma utopia. “Isso ficou pra trás. Essa ideia do novo e da independência são conceitos muito modernos, não contemporâneos”, pontua. Para ela, a percepção do tempo também mudou; a modernidade acreditava em uma história escrita em linha reta e, atualmente, a vemos como uma espiral, uma linha que retorna para pontos pelos quais já passou – por isso, falar em ruptura hoje já não faz sentido.
“A arte não parte mais do principio de se renovar. Enquanto a modernidade questionava a própria arte, a arte contemporânea é um meio de expressar e flagrar questões que são externas à arte, como a situação das pessoas, o dia a dia, questões econômicas e sociais”, diz.
José Armando também concorda que a arte contemporânea é muito mais conceitual e que “é um pensamento sobre uma realidade; é uma arte de representação”. Para ele esta questão é bem ilustrada pela previsão do pintor Aldo Bonadei (1906-1974): “a arte contemporânea será filosófica”.
De qualquer maneira, o que é certo é que o distanciamento temporal é imprescindível para o entendimento de quaisquer movimentos que sejam. Para a professora Maria Inês, prova disso é que só hoje é possível compreender que na pintura, por exemplo, talvez o momento mais radical tenha sido o Concretismo na década de 1950, a partir da primeira Bienal, e o Neoconcretismo – evoluções da arte abstrata. “Se você analisar do ponto de vista da linguagem da arte, as obras modernistas ficam no meio do caminho do que a arte veio a se tornar depois; não rompem efetivamente com os padrões. Mas é inegável o quanto o Modernismo abriu caminhos”, completa.
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Serviço
Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna | O mercado da arte moderna em São Paulo: 1947-51
Museu de Arte Moderna – MAM – Parque do Ibirapuera
Em cartaz até 2 de abril – de terça a domingo, das 10h às 17h
Entrada Catraca Livre aos sábados; nos demais dias, R$ 6 e R$ 3 (meia)