Chocolate frito: a pior sobremesa da Escócia

Por oviajante
11/04/2017 12:29 / Atualizado em 31/08/2017 01:24

Ah, as excentricidades escocesas… Zanzava tranquilo pelas ruazinhas estreitas de Edimburgo (Escócia). Eis que, em contraste àquele típico espírito medieval, dou de cara com uma placa infame: um restaurantezinho de meia tigela ofertava, em vantagem promocional, uma sobremesa conhecida como Deep fried Mars bar.

“Que diabos é isso?”, penso com meus botões. “Não pode ser o que estou imaginando.” Mas era: a peripécia era simplesmente uma barra de chocolate Mars frita. Em tempo: se você não sabe o que é uma barra de Mars, pense naquele bombom azulzinho, o Charge –só que sem o amendoim. O Mars é um chocolate que, embora de má qualidade, é deveras famoso por essas bandas do Reino Unido.

A controversa “Deep-friend Mars bar”, típico da Escócia
A controversa “Deep-friend Mars bar”, típico da Escócia

E meus temores se confirmavam: o esquema era mesmo chocolate frito. Frito, frito mesmo –exatamente como se frita uma coxinha ou um pastel.

Chocólatras mais argutos, porém, hão de indagar: como é possível fritar uma barra de chocolate sem que ela se derreta na elevada temperatura? É simples. Basta congelar o produto. Uma vez congelada, a gordurosa barra de chocolate resiste valentemente às radicais condições térmicas do ainda mais gorduroso óleo de fritura. Lição: nunca subestime a libertária inventividade escocesa.

Iguaria lembra um churros de quinta categoria

Paguei pouco mais de três libras por essa façanha gastronômica. O sabor? É claro que um negócio desses não pode ser bom. Mas acho que o psicológico pesa muito na fatídica hora de provar uma heresia sobremesística desse naipe. Não tem santo que me convença de que essa invenção está acima da linha do razoável. Meu diagnóstico, portanto, é severo: chocolate frito é uma porcaria. E ponto final. Assemelha-se talvez a um churros de quinta categoria –misturado com brigadeiro à milanesa e jiló caramelizado.

Outras opiniões

Após alguns anos na estrada do jornalismo, porém, você não pode deixar de lado o sagrado ‘princípio do contradito’. Que diriam outros paladares? Perguntei a uns amigos que, comigo, provavam pela primeira vez esse polêmico quitute. Gil, meu camarada portuga, é pragmático: “Ora, pois, até que não é mau”. Já Ning, nossa colega chinesa, discorda com elegância: “It tastes like shit”.

Palitinhos podem ajudar a saborear essa iguaria
Palitinhos podem ajudar a saborear essa iguaria

Mas, não satisfeito com a opinião de principiantes, resolvi perguntar a quem realmente entende do assunto. Ninguém melhor que meu vizinho Harris –americano– para um veredito mais embasado quando o assunto é comida-lixo. “Olha, não é tão ruim, não”, avalia. Harris é mui bem versado acerca das últimas tendências no sempre surpreendente universo do fast food de araque. Ele comenta que, nos Estados Unidos, é comum essa mania estranha de querer fritar tudo: pizza, cachorro quente, bolinho de baunilha, sorvete… E até pickles! “Sei que, em matéria de comida-lixo, ninguém nos supera”, garante convicto. “Mas a barra de Mars frita, mesmo pra mim, é uma novidade bem pouco ortodoxa”.

História

Reza a lenda que essa iguaria surgiu na década de 1990, nalgum restaurante de Aberdeen. Detalhes são mencionados na Wikipédia anglófona, que, como não poderia deixar de ser, dedica um verbete à surreal sobremesa. Não descobri, uma pena, quem foi o gênio por trás da obra. Uma barbaridade. Seja quem for esse criativo artífice, que Deus o tenha.

Placas não tão incomuns pelas ruas da Escócia
Placas não tão incomuns pelas ruas da Escócia

“Muita gente pede a Deep fried Mars bar depois de uma boa noitada”, contextualiza a atendente do Clam Shell, o tal restaurantezinho. “É um snack típico para os clientes apreciarem no caminho de volta pra casa, já meio bêbados.” Faz sentido. Após a manguaça, afinal, o paladar já não é mais o mesmo O que impressiona, mesmo, é saber que há quem goste dessa coisa horrorosa mesmo em estado sóbrio.

É nessas horas que você passa a refletir sobre os rumos da civilização. Na cultura americana, vá lá, uma sandice culinária dessa magnitude não seria de todo estranho. Mas… Na Escócia? Tudo bem que a culinária britânica é, reconhecidamente, uma das piores do mundo. “E quanto mais você vai para o norte do Reino Unido, mais insalubres e gordurosos são os pratos”, comenta Fiona, uma colega inglesa. Os cabras capitanearam o Iluminismo, protagonizaram revoluções científicas, chegaram a níveis invejáveis de esplendor cultural. E, no cardápio do século 21, a contribuição escocesa é uma esdrúxula Deep fried Mars bar. É mesmo imprevisível, essa montanha-russa da história.

Curiosidade 1

Falando em comida insalubre, não podemos deixar de lembrar do já lendário Irn-Bru –é o refrigerante mais famoso da Escócia. Eles têm até um slogan: é “a segunda bebida nacional escocesa, depois do whisky”. O negócio é doce pacas e, de tão alaranjado, parece até radioativo. Visitar a Escócia e não tomar Irn-Bru é como visitar o Rio Grande do Sul e não tomar chimarrão. Aliás, o Irn-Bru é famoso por seus infames comerciais de TV. Essas propagandas já viraram até sensação no YouTube. Graças, provavelmente, ao mui refinado ‘humor escocês’. Meu preferido é o Jumper, New IRN-BRU, que rodou no Natal passado.

A famosa (e extremamente doce) Irn-Bru
A famosa (e extremamente doce) Irn-Bru

Curiosidade 2

Inaceitável redigir um texto sobre comida escocesa sem ao menos uma singela menção ao prato mais emblemático desse país tão idiossincrático. Falo do famoso haggis! Trata-se de uma espécie de buchada de ovelha – o estômago do pobre animal é recheado com tripas sortidas e aveia. O mais estranho não é exatamente a receita, mas sim o ritual que precede o rango. Em ocasiões especiais, o haggis deve ser cortado com uma espada, enquanto alguém, preferencialmente trajando um bom kilt, declama os versos imortais de Robert Burns, o bardo nacional da Escócia. É claro que toda essa ritualística deve acontecer ao som da gaita de foles – que a propósito, por mera coincidência, também é feita com estômago de ovelha. Pobres ovelhas.

Relato por Henrique Kugler, para O Viajante