Morar no exterior: Saí do Brasil. E morri
Estou morando no Canadá há quase um mês. Minha esposa foi aprovada em uma seleção para fazer seu doutorado na cidade de Calgary, a terceira maior do país, e resolvemos vir assim, de mala e cuia.
Calgary é um lugar curioso. É chamada pelos íntimos de Cowtown, cidade das vacas em uma tradução literal, termo usado para um lugar com fazendas em seus arredores, com um clima mais interiorano, talvez. Só para ter ideia, o maior rodeio do mundo acontece aqui, então realmente é um lugar de cowboys e cowgirls. Mas pretendo contar mais da cidade e da vida aqui depois. Quero focar agora na experiência de se fazer as malas e sair do seu país, seja ele qual for.
Apesar de ser pouco tempo de experiência, já pude comprovar algumas impressões que tinha sobre a mudança para o exterior. O que acontece quando você faz as malas e embarca no avião com destino a um lugar completamente diferente do seu? Você morre. Isso mesmo, você morre. Eu morri quando vim.
Começa pelo fato de normalmente, nesse tipo de situação, você preparar uma festa de despedida com os amigos e parentes, o famoso “bota-fora”. Seria o equivalente ao velório. Um pouco mais alegre, concordo. Acredito que possa ser comparado com um velório no México. Dizem que lá a morte é vista como algo natural e bom, então as despedidas são muito mais festivas do que no Brasil.
Durante esse momento, costuma acontecer um fenômeno semelhante ao de uma despedida por conta da morte. As pessoas fazem declarações sobre você que nunca fariam em situações normais, de rotina. Colegas de trabalho dizem o quanto admiravam a sua dedicação à empresa e o quanto se espelhavam em você, parentes e amigos choram e dizem o quanto vão sentir sua falta pelo quanto que gostam de sua companhia, que você é um exemplo de ser-humano, isso e aquilo, coisas assim. Aí eu penso, por que as pessoas não falam isso em situações normais, de dia a dia mesmo? Esperam você morrer ou partir para bem longe para dizer o que realmente sentem. Mas isso é assunto pra outro texto.
Depois do “bota-fora”, vem à partida de fato, ou seja, o embarque no aeroporto. Normalmente só os mais próximos participam desse momento, às vezes ficando restrito aos familiares. Comparo esse instante ao enterro. É o pior momento, o mais dolorido. Poucos seguram o choro e alguns que se mostravam equilibrados até então, se deixam envolver pela tristeza do adeus. Alguns preferem nem ir até o aeroporto para não ter que assistir a partida. Além disso, realmente é um pouco como morrer, pois você não sabe quando reencontrará essas pessoas que até então faziam parte de sua rotina. A diferença é que hoje temos o Skype, ou seja, podemos manter um contato do além.
Claro que estou fazendo aqui um paralelo e uma comparação absurdos, apenas para simbolizar um pouco o que representa uma despedida como essa. Tenho consciência de que nada pode se comparar a morte de um ente querido, por exemplo. É bom explicar.
Depois da despedida, chegando ao país estrangeiro, você morre mesmo. Pois o teu antigo “eu” deixa de existir. Falando por mim, o Felipe que deixei no Brasil morreu para todo o sempre. Por quê? É simples. Ao vir pra cá, senti que mudei e que estou mudando a cada dia. Não que eu tenha, repentinamente, me tornado alguém melhor ou superior. Nada disso. Vou tentar listar abaixo alguns processos já comprovados por mim que explicam melhor:
1 -Perda das referências
Ao mudar para o exterior, você perde todas as suas referências. No Brasil, eu era filho do Givaldo e da Maria, enteado da Carla, trabalhava na empresa tal, no cargo tal, nascido na maior cidade do país, com familiares espalhados pelo Brasil inteiro, era amigo de siclano e beltrano e etc. No Canadá, ninguém me conhece ou conhece alguém da minha família ou amigo, eu não conheço ninguém, ninguém fala minha língua, eu não falo direito a língua daqui, ninguém conhece a empresa ou o segmento em que eu atuava no Brasil, pouquíssimos sequer conhecem o lugar de onde vim, ou seja, não tenho referência nenhuma aqui. Nenhum lugar em que me apoiar, vamos dizer. Você não perde só o chão, você perde as paredes, o teto, tudo.
2 – Processo de ‘desipnose’
Dia desses assisti a uma entrevista do compositor Rodrigo Amarante, pelo qual tenho grande admiração. Atualmente, Rodrigo vive em Los Angeles, nos Estados Unidos. Falando sobre como é viver em um país estrangeiro, ele se refere ao processo de adaptação como uma “desipnose”. Mudando para o Canadá, entendi o que ele quis dizer. No Brasil, eu tinha uma rotina que, para mim, definia quem eu era. Acordava todo dia no mesmo horário para fazer todo dia o mesmo trabalho e nos tempos de folga, também fazia basicamente os mesmos programas. Ao sair completamente dessa rotina e perder totalmente as referências que mencionei no item anterior, só me restou… eu mesmo. Ou seja, o meu corpo é o mesmo, o sangue que corre nas minhas veias é o mesmo, meu cérebro é o mesmo, meu jeito de pensar é o mesmo, porém, agora eu tenho quase nada em que me apoiar, nas coisas que antes eu acreditava que definiam quem eu era. Assim, descubro que eu não sou o meu trabalho, nem a minha rotina, nem as pessoas com as quais convivo. Eu sou eu e nada, além disso. Seja no Brasil, aqui ou na China. Com isso, você é obrigado a se conhecer melhor e a perceber que você é muito menos do que imaginava. Menos não no sentido de importância e sim de simplicidade. A forma como os estrangeiros te enxergam também é diferente de como te viam no Brasil e de como você mesmo se via e, na verdade, você aprende que ninguém está certo.
3 – Exercício da humildade
Ao viver em um país que não é o seu, você é obrigado a ser mais humilde. Começando pela dificuldade da língua. Se você for como eu, que não tenho o domínio pleno do inglês, certamente terá dificuldade no dia a dia. Em algumas situações eu apanho para pedir o prato que quero no restaurante, então como não vou ter dificuldade em conversar com um nativo? Ou seja, as tarefas simples da rotina se tornam grandes missões. É como voltar a ser criança e reprender a falar, ler e escrever. Além disso, tem a questão de você não ter mais nenhuma referência no novo lugar. No Brasil você era diretor de uma empresa, com um currículo de dar inveja, morava no lugar tal, frequentava lugares assim e assado. E agora? E no novo país? Independente de qual seja a sua situação, de uma coisa você pode ter certeza, você vai ser obrigado a RE-CO-ME-ÇAR. E para isso, sem a menor dúvida, precisará ser muito mais humilde.
Acredito que tenham outros pontos que façam você enxergar que o seu antigo eu deixou de existir ao se despedir de seu habitat natural. Aprender a andar na cidade, se acostumar com a cultura e os costumes locais, com o clima, a lidar com a distância da família e a dor de ficar ausente. Afinal, você é obrigado a acompanhar de longe os aniversários, as formaturas, os almoços de domingo, as festas, doenças, crescimento das crianças, eventos nos quais você sempre estava presente. Como não se tornar mais forte com isso? Como não aprender a lidar melhor com as despedidas? Ou você aprende ou coloca o orgulho de volta na mala e leva ele de volta com você ao seu país.
Com certeza, eu já morri um pouco com essa mudança. Sinto que já estou diferente, apesar do pouco tempo aqui. E vou morrer muito mais vezes, tenho certeza. Ao mesmo tempo, tendo a convicção de poder renascer no instante seguinte, em uma versão melhor do que a anterior. Sem dúvida, viver no exterior é uma experiência que indico a todo mundo. O mundo externo passará a ser visto de outra forma por você, e o teu infinito particular, como diz a Marisa Monte, também.
Morar longe é saber morrer muitas vezes para viver mais.
Relato por Felipe Pacheco