Uma caminhada pela São Petersburgo de Dostoiévski

Do apartamento de Raskolnikov aos prédios em que Dostoiévski viveu, cidade tem um roteiro literário inteiro dedicado ao escritor

28/08/2018 23:22 / Atualizado em 05/05/2020 11:47

Para muitos russos, São Petersburgo, na Rússia, é um lugar sinônimo de Fiódor Dostoiévski, um dos escritores mais conhecidos e importantes da literatura mundial, autor de clássicos como “Crime e Castigo” (1866), “Memórias do Subsolo” (1864) e “Os Demônios” (1872). O próprio Dostoiévski chamou Petersburgo de “a cidade mais intensa e abstrata”.

Vista do Canal Griboyedov, em São Petersburgo
Vista do Canal Griboyedov, em São Petersburgo - suprunvitaly/iStock

Não é para menos: foi lá que o escritor viveu a maior parte da vida, morando em mais de 20 endereços diferentes, e onde escreveu seus livros mais famosos. Foi em São Petersburgo também que Dostoiévski morreu e foi enterrado, em 1881. Durante a Copa do Mundo, a cidade registrou um salto no volume de passagens aéreas por turistas interessados nos jogos e na cidade em si.

A cidade também é cenário da maioria das suas obras, e, mais do que isso, não é um ambiente passivo, mas uma parte essencial das características dos seus personagens e dos eventos narrados.

No entanto, suas próprias descrições sobre a hoje metrópole russa não são românticas ou glamourosas. Em alguns casos, ele parece mesmo não gostar do lugar. Um dos seus personagens, por exemplo, afirma que “é um azar particular viver em São Petersburgo”. Outro diz que “essa é a cidade em que metade das pessoas são loucas” e, enfim, um terceiro afirma que “raramente alguém encontra um lugar com influências tão sombrias, estranhas e intensas sobre a alma humana como São Petersburgo”.

Palácio de Catarina, em Tsarskoe Selo. Um dos melhores passeios de São Petersburgo
Palácio de Catarina, em Tsarskoe Selo. Um dos melhores passeios de São Petersburgo - Frank Leung/iStock

Em “O Adolescente” (1875), ele pinta novamente a imagem de uma cidade fantasmagórica repleta de lunáticos e vagabundos. “E se, quando a névoa se dissipasse e subisse, essa decaída e pecadora cidade subisse junto, crescendo com a névoa e desaparecendo como fumaça, e o que permanecesse fosse apenas um pântano anterior, e na metade dela, ao nível de decoração, o cavaleiro de bronze sobre seu exausto cavalo?”, diz se referindo ao monumento de Pedro, o Grande, fundador da cidade, na região central.

E, mesmo assim, essa cidade bizarra e lúgubre de caminhos escuros, apartamentos desconfortavelmente sufocantes, pecados e pessoas loucas foi o palco da vida e da obra de Dostoiévski. Em um texto, ele afirma que São Petersburgo é “tão vulgar e ordinária que é quase as bordas para o fantástico”.

O charme das sombras da cidade é paradoxalmente hipnotizante para o escritor, o que o induz com um desejo apaixonante de iluminar as vidas dos pobres habitantes. Nos livros, a maioria deles vive próxima à Praça Sennaya, onde funcionava um tumultuado mercado, o Hay, que também é um espaço público de crimes, pobreza e prostituição, como Dostoiévski escreve em “Crime e Castigo”.

A Igreja do Salvador do Sangue Derramado
A Igreja do Salvador do Sangue Derramado - ZX-6R/iStock

“Devido à proximidade com o mercado de Hay, o número de estabelecimentos de mau caráter, a preponderância do comércio e da multidão de pessoas da classe trabalhadora nessas ruas e caminhos no coração de São Petersburgo, tipos tão variados serem vistos nas ruas que ninguém ficaria surpreso”, diz em um trecho da obra. “As tavernas nos pisos inferiores, os quintais sujos e pútridos das casas da Praça Sennaya, especialmente os estabelecimentos vendendo álcool na calçada, em que todos os tipos de mercantes e vagabundos frequentavam”, completa.

O personagem mais famoso de Dostoiévski, Rodion Raskolnikov, de “Crime e Castigo”, vivia perto da praça. Apesar do escritor evitar dar localizações exatas e usar abreviações (“Passagem S-y”, “Ponte K.”), não é difícil decodificá-los, porque já se sabe que ele costumava situar seus personagens perto das casas onde ele próprio vivia.

Hoje, a maioria dos leitores da obra sabem também que Raskolnikov morava na rua Stolyarny Pereulok, número 5, esquina entre as ruas Stolyarny e Grazhdanskaya. Os viajantes na cidade se deparam ali com uma escultura e uma placa que diz: “Casa de Raskolnikov”. O interior do apartamento e mesmo suas adjacências internas não são abertas ao público. Aparentemente, os moradores, eram perturbados por peregrinos literários que queriam conhecer a casa de um dos personagens mais famosos da literatura.

Museu Hermitage em São Petersburgo
Museu Hermitage em São Petersburgo - ArtMarie/iStock

Outra personagem de “Crime e Castigo” com um endereço real em São Petersburgo é Sonya Marmeladova, a namorada e salvadora de Raskolnikov: ela vivia no terceiro andar de uma casa, em um quarto que “parecia um celeiro”, na altura do número 73 do canal Griboyedov.

A experiência “dostoievskiana” em São Petersburgo, no entanto, é impensável sem uma visita ao último apartamento do escritor, hoje um museu, localizado na esquina da rua Dostoiévski e da avenida Kuznechny. Ele viveu ali com sua esposa, Anna, e seus dois filhos de 1878 até sua morte. O relógio em seu escritório está parado exatamente na data e horário de seu falecimento: Quarta-feira, 28 de janeiro de 1881, às 8h36.

Foi no apartamento da avenida Kuznechny que o autor escreveu seu último livro, “Os irmãos Karamazov”, outro clássico da literatura mundial publicado em 1880. O prédio é o mesmo, mas o interior do apartamento não preservou seu formato original: foi restaurado posteriormente baseado em notas, desenhos, fotografias e projetos feitos por Dostoiévski e Anna. Alguns itens pessoais permanecem ali, como um chapéu e uma caixa de tabacos.

A cidade ainda conserva outra casa de Dostoiévski, hoje um pequeno hotel com cerca de dez quartos chamado “Dom Dostoevskogo”, onde ele viveu de 1861 a 1863. Ali ele escreveu “Humilhados e ofendidos” (1861) e “Recordações da Casa dos Mortos” (1863). O prédio fica próximo da maioria dos cartões-postais da cidade e ao lado do canal Griboedov, um dos guias naturais da cidade aos primeiros visitantes — isso, claro, se o desejo não for exatamente se perder em São Petersburgo assim como os personagens clássicos das obras de Dostoiévski.