Eutanásia: qual o limite das decisões que podemos tomar sobre nosso corpo?
A morte assistida provoca um intenso debate que coloca em choque diferentes visões de mundo sobre a vida humana
No mês de março deste ano, o ator francês Alain Delon, de 86 anos, divulgou que deu início ao processo de eutanásia por meio de suas redes sociais. O anúncio reacendeu os debates a respeito da morte assistida. Afinal, qual é o limite das decisões que podemos tomar sobre o nosso próprio corpo?
Em seu sentido literal, eutanásia significa “boa morte” (em grego, “eu” significa boa, e “tanathos”, morte). A ideia central é a de que a pessoa, acometida de um mal sem cura e que cause dor desnecessária, possa escolher terminar a vida com auxílio médico.
O debate sobre essa questão envolve considerações religiosas, científicas, éticas e legais. Os favoráveis à eutanásia argumentam que as pessoas têm o direito sobre o próprio corpo e, portanto, podem escolher por fim à vida com dignidade, considerando a morte assistida como um ato de misericórdia.
Os argumentos contra abreviar a vida estão fundamentados na ideia de que a ciência pode descobrir a cura ou que apenas o divino deve definir quando uma existência biológica acaba.
Ainda em âmbito religioso, há os que creem que Deus ou alguma força divina possa realizar milagres e curar completamente uma moléstia.
A morte assistida é uma questão mais complexa do que pode parecer em um primeiro momento e deve fazer parte do debate público deste século.
Além da eutanásia
Hoje, pacientes com doenças terminais ou com quadros irreversíveis podem ser submetidos a procedimentos médicos que atenuam o sofrimento.
Além da eutanásia, existe o suicídio assistido, a ortotanásia e os cuidados paliativos.
Suicídio assistido
Enquanto na eutanásia um profissional de saúde realiza os procedimentos a pedido do paciente, no suicídio assistido a própria pessoa ingere ou autoaplica a substância que provocará a morte.
Neste último caso, ainda que autoinfringido, o paciente é acompanhado por terceiros, que podem ser médicos e enfermeiros. Eles permanecem presentes apenas para evitar sofrimento desnecessário.
Ortotanásia
A ortotanásia, que pode ser traduzida como “morte correta” e também chamada de “eutanásia passiva”, é o não prolongamento artificial da vida. Neste caso, o médico não provoca a morte do paciente, mas suspende os tratamentos que não surtiram melhora e prolongam o sofrimento.
Seria, portanto, o ato de não intervir na morte natural de um paciente.
Em oposição, a distanásia, que significa algo como “distanciamento da morte”, é o procedimento médico que prolonga a vida de um paciente por meio de medicamentos e outros tratamentos, sem que a moléstia seja efetivamente curada.
Costuma-se dizer que essa prática traz apenas sofrimento físico e psicológico ao doente.
Cuidados paliativos
Quando um quadro clínico não pode ser revertido, os cuidados paliativos são usados para aliviar o sofrimento do paciente. O objetivo é dar descanso e dignidade na hora da morte.
A pessoa recebe esse tipo de tratamento em casa, hospital ou clínica de repouso. Isso inclui medicamentos para reduzir os sintomas de uma doença. Médicos e enfermeiros dão o suporte necessário para que não haja dor desnecessária.
A mistanásia é a morte miserável, o avesso do conceito de eutanásia e dos cuidados paliativos. Isso se caracteriza quando, seja por omissão, negligência ou incompetência, uma pessoa próxima da morte sofre mais do que o necessário ou é submetida a tratamento desumano.
Usou-se muito o termo mistanásia em 2021, quando a CPI da Covid-19 expôs denúncias sobre ações da Prevent Senior durante a pandemia.
Eutanásia: onde é permitido
Há mais de 20 anos, no dia 1º de abril de 2002, a Holanda foi o primeiro país do mundo a autorizar legalmente a eutanásia voluntária e o suicídio assistido. Em 2021, segundo dados oficiais, 7.666 pessoas entraram com pedido para eutanásia no país.
Além da Holanda, a morte assistida está legalizada ou despenalizada – ou seja, não pode ser punível pela lei – na Bélgica, em Luxemburgo, na Colômbia, no Canadá, na Espanha, na Suíça, na Alemanha, na África do Sul, no Uruguai e nos seguintes estados norte-americanos: Oregon, Vermont, Califórnia, Washington, Colorado, Havaí, Nova Jersey e Montana.
Todos eles contam com regras específicas locais, mas, em comum, considera-se a eutanásia e o suicídio assistido um ato consciente, voluntário.
No mundo, a “eutanásia involuntária”, ou seja, sem o consentimento consciente do paciente, como em casos “vegetativos”, é ilegal e considerada homicídio por não se poder afirmar que a morte é o desejo daquela pessoa.
Em solo brasileiro, apenas a ortotanásia é permitida. A eutanásia e o suicídio assistido são procedimentos inexistentes no Código Penal e, portanto, considerados homicídio doloso, com pena de até 20 anos.
Famosos que recorreram à eutanásia
Antes de Alain Delon, a esposa do ícone do cinema europeu, a atriz Nathalie Delon, também pediu a eutanásia. No entanto, ela acabou morrendo de câncer no pâncreas, aos 79 anos, antes do procedimento, em janeiro de 2021.
A cantora e compositora francesa Françoise Hardy, com um grave câncer aos 78 anos, requisitou a morte medicamente assistida, mas não é legalizada na França.
Ela contou, em uma entrevista à revista “Femme Actuelle”, que a mãe, vítima de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), foi extraoficialmente eutanasiada por um médico.
Com Alzheimer, o romancista, poeta, dramaturgo e cineasta belga Hugo Claus pediu por eutanásia nos estágios iniciais da doença. Ele morreu em 2008, aos 78 anos, e provocou comoção na Bélgica.
Herbert Fux, ator austríaco que trabalhou com Ingmar Bergman, Volker Schlöndorff e Werner Herzog, recorreu ao serviço de eutanásia na Suíça. Morreu em 13 de março de 2007, aos 79 anos.
Em 2018, o cientista australiano David Goodall, com 104 anos, viajou para a Suíça para recorrer ao suicídio assistido. Sem doença grave, ele considerou que sua qualidade de vida piorou nos últimos anos.
O que ler sobre a morte assistida
O direito de viver e de morrer deve estar no centro do debate público e existe uma grande produção intelectual sobre o tema. Para quem se interessa pelo assunto, selecionamos algumas leituras para aprofundar o conhecimento na questão da morte assistida. Acompanhe.
Em “Eutanásia: Humanizando a Visão Jurídica”, a juíza Mônica Silveira Vieira, mestra e doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta um panorama essencial sobre as questões legais e éticas e comenta sobre os limites da liberdade individual e a proteção do cidadão.
Escrito por Rodrigo Siqueira-Batista, do Núcleo de Estudos em Filosofia e Saúde da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (Nefisa-Feso), e Fermin Roland Schramm, do Departamento de Ciências Sociais da ENSP/Fiocruz, o artigo acadêmico “Eutanásia: Pelas Veredas da Morte e da Autonomia” está disponível gratuitamente para a leitura.
Siqueira-Batista e Schramm aprofundam questões filosóficas e sociológicas sobre o tema e apresentam um referencial para o debate público dessa questão que é fundamental para a bioética. Clique aqui para ler.
“Eutanásia: A Dignidade em Questão” interroga os procedimentos médicos para prolongar a vida e a ideia de “boa morte”, mostrando como esse tema paradoxal deverá estar presente no debate do início do terceiro milênio.
O livro é assinado por Pascal Hintermeyer, um dos grandes especialistas da França da aproximação sociológica das questões que dizem respeito à morte e membro do Instituto de Sociologia da Universidade Marc-Bloch de Strasbourg.
“Eutanásia e a Prevalência do Princípio da Dignidade Humana na Vida e na Morte”, do desembargador federal Reis Friede, reúne pareceres jurídicos, citações filosóficas, opiniões de médicos e impressões do campo religioso para defender a vida.
Obra multidisciplinar, “Eutanásia, Ortotanásia e Distanásia Aspectos Médicos e Jurídicos” esmiúça o assunto em diversas áreas do conhecimento, como medicina, direito, psicologia e religião.
O título foi escrito por Antonio Carlos Lopes, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), Carolina Alves de Souza Lima, professora de direitos humanos da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), e Luciano de Freitas Santoro, especialista em direito penal.