No Pelourinho de 2021, negros ainda choram pelo racismo

Local mais conhecido de Salvador é quase fake, mas o que tem por trás desse aparato turístico?

Em parceria com Guia Negro
10/03/2021 12:15

Quem hoje percorre as ruas de pedra ladeadas por casas antigas coloridas, onde pessoas negras escravizadas eram castigadas em poste, chamado de Pelourinho e que hoje dá nome ao bairro mais conhecido de Salvador, talvez não perceba, mas a dor do povo negro ainda grita em suas ladeiras.

Crianças circulam pelo Pelourinho, em Salvador
Crianças circulam pelo Pelourinho, em Salvador - Heitor Salatiel

O Pelô é lugar de visita obrigatória pelos turistas que passam pela cidade. É preciso desvendar a história por trás das casas, pois o que se vê é um local turístico, com venda de lembrancinhas, artefatos de couro; mulheres se vestindo de baiana para tirar fotos; homens jogando capoeira; vendedores de fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim na rua; guias contando histórias; pessoas com roupas de candomblé e ervas benzendo os turistas; mulheres trançando cabelos ou vendendo acarajés.

O Pelourinho de 2021 é quase fake, daqueles lugares para turista ver, fotografar e ir embora quando cansar. Mas o que tem por trás desse aparato turístico? “Pelourinho uma pequena comunidade”, canta o bloco afro Olodum na sua música mais conhecida: “Faraó divindade do Egito”. E é isso que o Pelô é: uma comunidade com ocupações, personagens e histórias. A reforma de 1992 que moveu ocupantes do centro histórico para o longínquo bairro de Fazenda Coutos, não impediu que o Pelourinho tivesse seus moradores.

É verdade que a maior parte dos donos de lojas e de casarões tombados pelo Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia) sejam brancos. Mas há pessoas negras que vivem e sofrem as dores do racismo na capital com maior percentual de negros do Brasil. Andar pelas ruas do Pelourinho com atenção e assiduidade faz ter uma certeza: não há um dia que o racismo não castigue uma pessoa negra que vive ali.

“Preta da cor do carvão”, ouve a dona de uma loja todas as vezes que vai chegar em casa. Os xingamentos se alternam para “preta safada” vez ou outra. Quem brada é a dona de um pequeno restaurante vizinho de ladeira. A complexidade é que ela também é negra, mas de pele mais clara. A empresária de cor retinta não sabe por que a rixa começou e diz que não vai brigar na mão como a outra gostaria. Ela fez denúncia na delegacia e seu sorriso contagiante, que é marca registrada, ficou apagado por uns dias.

Pedro é bonito, tem cabelo black com um pente garfo fincado, panos amarrados na cintura e peitoral a mostra. Ele é belo mesmo embaixo da sujeira que carrega. Dá pra ver as marcas da rua no seu ser. Ele cata coisas do lixo e pede grana para quem passa. Mas não de um jeito qualquer. Ele abaixa, pede licença ao seu pai Oxalá e faz sua narrativa. Pedro mora e circula pelas mesmas ruas de segunda a segunda. Todo mundo o conhece.

No dia 1 de janeiro, logo após os fogos que marcaram meia noite, um homem branco não gostou da abordagem e tentou bater nele. Só não prosseguiu porque foi impedido pelos vizinhos. Outro dia, eu disse a Pedro algo que ele deve ouvir pouco: “Você é bonito”. Ele ficou um misto de lisonjeado e envergonhado. Sorria de um jeito diferente toda vez que me via.

Duas amigas paulistas “bem-sucedidas”, que decidiram morar em Salvador, foram ver o pôr do sol e colocar o papo em dia. Na volta, tentaram entrar num bar mais chique. O segurança não permitiu que adentrassem alegando falta de espaço, mas outras pessoas brancas conseguiram. Caso clássico de racismo, que, apesar dos pesares, elas nunca tinham vivido na pele. Decidiram naquele dia não militar. Recuaram pela saúde mental delas.

A mulher conta que o menino “escurinho” foi enquadrado pela polícia porque estava com um celular caro na mão. Ela interveio dizendo que ele era filho de alguém importante. A polícia deu de ombros e continuou os questionamentos de forma agressiva. A mulher que contava a história horas depois numa ladeira se indignava: “só porque é escurinho”.

Seu Clarindo é uma espécie de rei do Pelô. Está há 49 anos no Terreiro de Jesus. Começou como funcionário e foi ganhando espaço até assumir o posto de dono. Magro, ele foi Rei Momo no carnaval, causando polêmica e eternizando o título. Veste branco e roupas sociais todo dia, sempre elegante. “Onde o senhor mora, seu Clarindo?”. “Aqui, onde passo 18 horas todos os dias, mas durmo em Pernambués, onde fica minha casa”. A frequência, importância ou idade não o impedem de ver ou viver o racismo. “Nem sempre me respeitam como dono”, reclama.

Caliente vende café em um carrinho que imita um pequeno caminhão. Está sempre ouvindo música, quase sempre reggae. A qualquer hora do dia e da noite parece animado. “Vendo desde menino”, diz ele que vive e trabalha no Pelô, mas circula também pela Avenida Sete (de Setembro) e pela Barra. “Nem todos me recebem bem”. Mas ele segue, com sua música e trabalho. De pessoas em situação de rua a policial têm clientes de todas as classes que consomem seu produto diariamente. “Também me divirto”, afirma ele, enquanto olha o movimento de uma encruzilhada de seis pontas.

No mesmo encontro de ruas, uma mulher negra e gorda sentada na sarjeta reclama que estavam chamando-a de Karol Conka. “Eu fiquei muito brava. Você viu o que ela fez com o menino lá no BBB?”, questiona ela, enquanto seu interlocutor tentava mudar de assunto.

César é um homem negro, bem magro, pequeno e de meia idade que desfila pelas do Pelourinho sempre sem camisa e segurando as calças. Vez ou outra com um pano que imita uma saia. Ele dorme na calçada da Fundação Jorge Amado. Fala pouco, mas já arranquei comprimentos de “bom dia” dele. Um dia perguntei para um amigo dono de loja de roupas afros porque não fazia uma calça sobre medida para César para que não tivesse mais que segurá-las. “César? Você não o conhece. Ele é superviolento, principalmente, com mulheres negras retintas”. Pensei ser algum trauma com a mãe ou alguma mulher que o magoou…

Esse texto não é sobre pretos contra pretos ou sobre pessoas negras serem racistas. O racismo sistêmico e estrutural pode até ser reproduzido por negros, mas quem ganha e quem nos oprime é a branquitude. Quando à dona da loja que é xingada pela vizinha do restaurante contou que desde a escola era hostilizada por conta de sua cor, chorei pensando no quão cotidiano e impregnado é esse mal. Lembrei de uma amiga branca que me perguntou se já sofri racismo. A resposta é todo dia, quase o tempo todo. E não é sobre mim ou sobre lugares brancos. É assim com a maior parte dos pretos e também no Pelourinho, onde os negros ainda choram de dor em 2021.

“Força e pudor
Liberdade ao povo do Pelô”

(Por Guilherme Soares Dias)