Drauzio Varella e Miguel Nicolelis lançam livro

Leia na íntegra um capítulo do livro “Prazer em Conhecer – A Aventura da Ciência e da Educação”, por Drauzio Varella e Miguel Nicolelis, com mediação de Gilberto Dimenstein.

Dia 15 de abril houve na Livraria Cultura uma sessão de autógrafos e debate com os autores.

A obra reúne experiências narradas pelos médicos, sobre suas próprias trajetórias. Entre a educação e a ciência, eles não tiveram dúvidas de ir em busca dos maiores desafios, de querer vencer as lutas mais difíceis – desenvolver um mapeamento da rede neuronal, reduzir a transmissão da AIDS, tratar de pacientes com câncer, devolver a mobilidade para deficientes físicos, informar um país sobre os males do tabagismo e assim por diante.

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Capítulo: “Aprender: Caminho para a liberdade”

Gilberto – Sabe, Drauzio, juntando o que você contou há pouco sobre sua experiência na área de comunicação com sua descrição anterior de como amava ser professor de cursinho, acho que, na verdade, o que aconteceu foi que você se tornou um professor de um cursinho maior, um educador da população, de todos que quisessem saber mais sobre saúde, não é verdade!? O que essas vivências lhe ensinaram sobre a
forma como as pessoas apreendem as informações? Como elas recebem e usam tais informações? O que você aprendeu com tudo isso?

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Drauzio Varella
Drauzio Varella

Drauzio – Antes de mais nada, é necessário que as pessoas se interessem pelas informações. Muitas vezes, o indivíduo tem interesse, mas ele nem sabe disso. Por exemplo, o Miguel estava falando sobre o tempo de transmissão de uma ordem do cérebro para um músculo ou para um braço mecânico. Eu nunca tinha ouvido falar especificamente sobre isso, mas sempre tive uma enorme curiosidade em saber como as informações trafegam pelos neurônios, entender por que a velocidade é tão variável – em alguns casos, apenas milissegundos, em outros casos, muito mais. Nossa memória é estranha, às vezes misteriosa. Enquanto ele narrava seus experimentos, fiquei refletindo: “Puxa, como não pensei nisso antes? Nunca imaginei que uma informação pudesse navegar mais rápido fora do corpo do que dentro dele”. Acho que a curiosidade existe dentro de nós, só precisamos usá-la de modo eficiente, produtivo. E penso que é mais fácil fazer isso com o auxílio da emoção do que da razão.

Gilberto – Você considera a curiosidade uma característica inata das pessoas?

Drauzio – Sem dúvida. Veja, Gilberto, por que a criança enfia o dedo na tomada? A curiosidade é inata. Às
vezes, as pessoas estão entorpecidas pela grande quantidade de informação passiva que recebem, pela rotina; elas vão se fechando para o mundo. É preciso um movimento para despertar a curiosidade.

Gilberto – E o que você aprendeu no mundo da comunicação é que existe uma maneira de provocar a
curiosidade?

Drauzio – Sim, há várias. Difícil é descobrir quais serão efetivas. Aprendi muito com meu trabalho na Casa de Detenção, no cursinho… Para que se tenha uma idéia, no Objetivo, houve uma época em que eu dava a mesma aula 20 vezes por semana! Os professores usavam microfone porque as salas tinham 300, às vezes até 400 alunos. Em cada uma delas, havia um grande quadro-negro, que eu usava de modo bem ordenado, assim, quando a aula acabava, toda a matéria estava ali. Conforme ia me aproximando do final da lousa, eu já sabia que ia bater o sinal. Se não batia, era o sinal que estava atrasado, porque eu repetia a aula provavelmente até com as mesmas palavras – qualquer um acabaria decorando uma matéria que repetisse 20 vezes na semana. Assim, a partir da quarta ou da quinta vez que eu dava determinada aula, já sabia o que funcionava e o que não funcionava. Talvez essa seja uma das dificuldades do professor universitário: ele dá apenas uma aula daquele assunto no ano; só voltará a fazê-lo no ano seguinte. Penso que para ser professor é necessário dar muitas vezes a mesma aula, para que o educador tenha condições de desenvolver uma didática apropriada tanto para aquele conteúdo, quanto para aquele público. O trabalho na Detenção foi um grande desafio. Fazíamos projeções de filmes lá, numa grande sala de cinema improvisada, onde conseguíamos reunir mais de 300 presos. Chegamos a colocar 1.000 presos de uma vez quando a Rita
Cadillac fez um show. Quando cheguei ali, em 1989, a realidade era dura – presos com os braços furados; cocaína injetável era a droga da moda. Fizemos um estudo de prevalência com todos que recebiam visitas íntimas. Colhi 1.482 amostras de sangue e testei todas. Resultado: 17,3% resultaram ser HIV-positivos. Imagine, quase 20% da população carcerária! Fiquei estarrecido com a irresponsabilidade de nossa sociedade: as mulheres visitavam esses presos e tinham relações com eles, e entre os 7.500 homens ali
confinados, quase 1.500 estavam infectados! Não era oferecida para as mulheres nenhuma proteção, nenhum esclarecimento, nada. Eu acreditava que conseguiria mudar aquela situação. Talvez tenha sido ingenuidade minha – é muito difícil mexer com a administração pública. Decidi adotar a seguinte estratégia de trabalho: se eles parassem de injetar drogas na veia, já seria possível reduzir os riscos, porque restaria apenas a transmissão sexual. Mas primeiro eu precisava entender como eles as injetavam. Fiz reuniões com alguns deles e fui conversando, obtendo informações aos poucos. Era óbvio que, se havia ações do setor
público para evitar o contágio, se havia algum tipo de instrução que houvesse sido dada a eles, nada disso estava funcionando. Os vírus não são como as bactérias. A transmissão é muito mais fácil e rápida (dizemos que um vírus é capaz de passar de um tubo de ensaio fechado para outrotambém fechado). Depois de ter uma idéia de como eles se infectavam uns aos outros apesar de não partilharem as seringas, eu precisava
motivá-los a assistir a aulas sobre o assunto. Além disso, era necessário ter algum tipo de controle do comparecimento, o que não seria possível quando todas as celas estivessem abertas – alguns poderiam ir várias vezes e outros, nenhuma. Combinei então com um funcionário, o Valdemar Gonçalves, meu grande amigo até hoje: “Vamos abrir primeiro só os andares dos detentos que vão para o Pavilhão 6”, onde estava

situada a antiga sala de cinema. Assim, abriam-se as portas do Pavilhão 8, por exemplo, e os presos do terceiro e do quarto andar desciam todos para o cinema. O início foi confuso, com o diretor dizendo: “Pelo amor de deus, vai ter morte aqui”. Era compreensível: o preso estava seguro no pavilhão dele, mas podia morrer quando mudava de pavilhão. Contudo, fizemos isso por mais de dez anos e nunca houve nenhuma morte, nenhum incidente. As dificuldades e os problemas iam surgindo conforme o projeto avançava. A seguir, a questão era: como tirá-los da cama às oito horas da manhã para assistir a uma palestra sobre Aids? A maioria acordava às onze horas da manhã, quando não ao meio-dia. Conversei com o Valdemar: “Posso trazer um equipamento de som e a gente consegue algum show para eles ou passa um filme”. Ele foi elaborando melhor a idéia: “Olhe, não sei se o senhor vai topar, mas acho que se for um filme forte, eles vão”. Eu ainda tinha dúvidas: “É, mas corremos o risco de muitos irem apenas para assistir ao filme”. Ele nem titubeou: “Não. É um pacote. Eles têm que ver a programação inteira!”. E assim fizemos. Colocávamos música, alguns cantores populares ou filmes e, a seguir, eu fazia uma palestra. Era incrível ver 300, 400 homens sentados no chão, num silêncio total, prestando atenção. Eu imaginava que seria uma bagunça, mas nada disso. Eu subia no palco com o microfone e dizia: “Olhem, primeiro vocês vão assistir a um vídeo e depois vou responder a perguntas. A Aids é uma doença provocada por um vírus transmitido sexualmente ou por contato com sangue contaminado…”. Dava uma breve explicação, eles assistiam ao vídeo e então vinham as perguntas. Descobri que era melhor descer do palco e ficar no meio deles com o microfone, porque assim conseguia criar maior empatia. As perguntas eram de ótimo nível. Quando terminava, era preciso alertar que eles não podiam usar drogas injetáveis, mas como fazer isso? Simplesmente afirmar “não pode injetar na veia” ou “diga não às drogas”? Percebi que eu apenas tinha de evitar que eles as injetassem, não tinha que entrar no mérito. Sou médico, nãosou religioso. Por isso optei por argumentos que os fizessem pensar nos outros, na família, nas pessoas que eles amavam: “Vocês poderiam me dizer ‘eu injeto sim, o problema é meu, a veia é minha, ninguém tem nada a ver com isso’, mas não é bem assim. Aquele que diz isso pode acabar transmitindo o vírus para alguém da família de vocês, da rua em que vivem”. No final declarava: “Sou contra as drogas, mas aquele que usa, pode engolir, beber, fumar, mas não pode injetar na veia de jeito nenhum”. Mal terminava de falar, havia uma ovação, uma gritaria. Era o crack que começava a entrar na cadeia.  Enfim, acabamos com o uso de drogas injetáveis na Casa de Detenção. A última seringa foi apreendida em 1995 e daí até a demolição da cadeia, em 2002, nunca mais foi encontrada nenhuma seringa com os presos.

Gilberto – E, na sua opinião, qual é a principal lição dessa experiência?

Drauzio – A de que todo mundo quer viver. Quando comecei esse trabalho voluntário na cadeia, muitos me diziam:  “Ah, doutor, isso é bobagem, deixe disso. O senhor é um idealista. Quando alguém está na sarjeta, usando drogas dessa maneira, não tem o que perder”. Eu respondia: “Tem sim. Tem a vida para perder”.

Gilberto – Mas acho que não ficou claro como você os convenceu a abandonar aquele comportamento de risco. Como a seringa injetável se transformou num objeto do interesse deles?

Drauzio – Na verdade, já era, só foi preciso encontrar qual aspecto daquele tema os tocava. No caso, o que
despertava o interesse deles eram os companheiros morrendo de Aids. As perguntas que eles faziam eram mais profundas que as formuladas nas conferências médicas. Eles estavam vivendo aquela situação, não era uma teoria. A doença estava ali e ninguém queria morrer. Então, como transmitir as informações necessárias para evitar o contágio? Considero fundamental que seja de um modo totalmente desprovido de qualquer julgamento de valor.

Gilberto – E como foi possível que eles entendessem a importância de parar de injetar drogas? Por que o
ovacionariam? O que você imagina que os fez aprender isso?

Drauzio – Isso eu também não sei. Mas posso lhe dizer que foi sempre assim, 100% das vezes. Acho que, quando aprendemos alguma coisa, seja lá o que for, ficamos felizes e agradecidos à pessoa que nos ensinou. Educação é uma área muito gratificante do relacionamento humano. Por que há professores que continuam a ensinar, apesar do baixo salário, em condições totalmente adversas? Porque se sentem recompensados. Veja como o Miguel fala do professor dele. Eu adoraria que um aluno falasse assim de mim. Quem não gostaria de ter contribuído para a vida de outra pessoa a ponto de ter esse reconhecimento todo?

Gilberto – Fazendo a conexão dessas questões, está claro que o conhecer é um prazer, e pode significar viver melhor quando os novos conhecimentos passam a fazer parte do cotidiano daquela criança, daquela pessoa – o que chamamos de aprendizagem significativa. O Miguel, por exemplo, só aprendeu inglês quando achou que aquilo lhe permitiria viver melhor, não é? Agora, Miguel, antes de falarmos sobre a experiência que você está desenvolvendo no Rio Grande do Norte, queria lhe fazer uma pergunta relacionada à neurociência: a curiosidade também é um processo bioquímico?

Miguel – Sem dúvida. A criatividade é um subproduto do nosso genoma e gerada pela atividade dos nossos

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Miguel Nicolelis
Miguel Nicolelis

circuitos neurais.

Gilberto – E você diria que todos têm criatividade, embora talvez com diferentes tendências?

Miguel – Acredito que sim. Aliás, não só os humanos, mas todos os animais. O mesmo se pode dizer da consciência, que evoluiu e atingiu um desempenho mais elaborado no caso do cérebro humano, mas ela também está presente no cérebro de outros animais da escala filogenética.

Drauzio – É incrível como se negava isso até outro dia.

Miguel – É verdade. O cachorro é um bom exemplo disso. Sempre gostei de cachorros, mas fiquei anos sem
conviver com esses animais. Tenho um agora e me parece evidente que ele sabe o que está acontecendo à sua volta, está ligado no que faço, aonde vou. Ele tem um universo consciente muito claro. Talvez só não tenha uma noção clara do futuro a longo prazo.

Gilberto – Miguel, sei que você está desenvolvendo um pólo de neurociência no Rio Grande do Norte, a fim de incluir o Brasil na rota dos altos estudos na área, mas nos interessa mais particularmente aqui seu projeto de ensinar crianças a pensar como cientistas, dando-lhes condições para se encantarem com a ciência. O que você aprendeu que está sendo aplicado nesse projeto em Natal? Conte-nos um pouco
desse empreendimento. É uma escola?

Miguel – Na realidade, nossa idéia não era exatamente criar um Instituto de Neurociência. Isso era quase um pretexto. Nossa idéia era criar um projeto de nação, no qual a ciência pudesse ser um agente de transformação social. Acredito firmemente nisso há muito tempo. Concordo com o que o Drauzio falou a respeito da importância de que as informações sejam desprovidas de julgamento moral, desprovidas de qualquer viés religioso, racial, étnico etc. A informação, o conhecimento é libertador e é um agente de
formação e transformação. Parece-me que já não há dúvida de que o conhecimento científico e a prática do método científico podem se tornar grandes agentes de transformação socioeconômica do Brasil. Foi com esse objetivo que, no projeto de Natal, criamos uma nova forma de ensinar ciência. Primeiro, fizemos uma pesquisa sobre o mapa educacional brasileiro e descobrimos que um dos distritos de pior desempenho do país em matéria de educação estava localizado no Rio Grande do Norte.

Gilberto – Em qual cidade? É na periferia de Natal?

Miguel – Sim, estamos próximos da capital. Temos unidades do projeto na saída da cidade de Natal e um
pouquinho depois, na cidade de Macaíba, que já é na Grande Natal. Mas não pensem que Macaíba é uma cidade subdesenvolvida. Nada disso. É uma cidade com muitas coisas interessantes, com muitas experiências de vida fenomenais,  como em qualquer lugar do Brasil. Mas, por uma série de fatores, algumas escolas de lá e algumas de Natal foram classificadas como as de pior desempenho estudantil. Nosso primeiro passo foi visitar as escolas públicas e anunciar que estávamos criando uma escola diferente, aonde
as crianças poderiam ir no período complementar ao das aulas regulares. Montamos um espaço para exploração científica bem diferente do que já existe: é uma escola empírica; abolimos as aulas teóricas. As crianças vão para o laboratório para descobrir, por meio da interação delas com a ciência, as respostas aos grandes questionamentos científicos do momento: de onde vem o universo, de onde vem nosso planeta, de onde nós viemos, qual a história da vida, qual a unidade de transmissão da vida – o DNA –, qual a grande
teoria da evolução que nos fez ser o que somos, para onde estamos indo, e assim por diante. Chamo a isso de “Doutrina do Ovo”, porque na extremidade do ovo está a origem do universo. À medida que se percorre o ovo, depara-se com a origem da Terra, a teoria da evolução e, de repente, o cérebro humano é gerado. Pelo que sabemos até hoje, o cérebro humano é a primeira manifestação no universo que permite a formulação da questão: de onde viemos?, quando, então, se completa o ciclo (o ovo foi todo percorrido). Olhamos para

o céu, tentando descobrir de onde viemos. Brinco com as crianças do projeto, dizendo que somos resultantes da poeira de estrelas, o único produto dessa poeira que busca descobrir onde está a estrela-mãe, que tenta entender de onde veio o universo. Em 2003, quando eu e nossa diretora de projetos e ações sociais, Dora Montenegro, fizemos a primeira apresentação desse projeto aqui em São Paulo, fomos recebidos com descrédito. Diziam que era perda de tempo ir a escolas públicas nordestinas oferecendo ensino de ciência para as crianças. Nunca vou me esquecer da frase que ouvi de um grande professor de uma universidade paulistana: “Não há massa crítica”. Por isso, era jogar dinheiro fora. Quer dizer, não houve nenhum tipo de respaldo daqueles que seriam os representantes da inteligência do país na área educacional. Como dizia Mark Twain (acho que essa é a melhor frase que já ouvi sobre o assunto): “Educação é uma coisa muito séria para se deixar na mão de educadores”. Assim, nós fomos lá e criamos um espaço de descoberta em ciências. Hoje temos dois locais: um com 600 e outro com 400 crianças. Montamos laboratórios que algumas faculdades de medicina não têm, seja em termos de equipamento, seja de recursos, e começamos a recrutar professores jovens, que tinham se graduado em universidades nordestinas, a maior parte de Natal, mas também do Recife e da Paraíba. Criamos um programa de formação de professores, mas não só voltado ao conteúdo.

Gilberto – Em ciências.

Miguel – Sim, incluindo biologia, física, química, robótica, informática. Temos uma oficina de história e
geografia, para que as crianças aprendam a se situar no tempo e no espaço. Elas não sabiam apontar no mapa a localização de Natal, do Brasil ou de outros países. Começamos então um trabalho para situá-las geográfica e historicamente. Contamos a história dos índios do Rio Grande do Norte para mostrar que elas estão num lugar rico de tradição cultural, genética, histórica, de uma nação – uma das poucas nações indígenas que sobreviveram à colonização, que resistiram e jamais foram assimiladas. Isso foi criando nelas amor-próprio, um senso de identidade. Quando se desejava fazer um experimento de biologia, era usada a terra da região, a fruta nativa.

Gilberto – No total, então, vocês estão desenvolvendo esse trabalho com mil estudantes? São todos da mesma escola?

Miguel – São de oito escolas públicas de Natal e de Macaíba.

Gilberto – Quando eles saem das respectivas escolas, vão para esses espaços que vocês criaram?

Miguel – Exato. Quando termina a aula da manhã, eles vão para a nossa escola, onde almoçam e passam o resto do dia. Mas essas mil crianças são uma fração do total de alunos das escolas públicas que fazem parte do programa, não são todos que participam.

Gilberto – E que mudanças vocês já puderam observar nas atitudes dos participantes?

Miguel – Até o momento, temos um ano e meio de experiência intensa com os primeiros 600. Os outros 400 ingressaram no projeto no início de 2008. Mas o que se observa é que a ciência está servindo principalmente como agente de inclusão e de cidadania. Nosso espaço está em uma região da periferia de Natal, um bairro pobre, humilde – tudo está pichado, quebrado. O nosso prédio é branco, as janelas estão todas íntegras, não há atos de vandalismo contra ele, que foi adotado pela comunidade. Gosto de aparecer na saída das crianças. Fico na porta com as mães e às vezes pergunto para alguma delas: “Por que a senhora acha que o prédio está tão bonito?”. Ouço frases como: “Ah, porque isto aqui é uma porta de esperança para os nossos filhos terem uma vida melhor. Aqui é o lugar aonde eles vêm para sonhar”.

Gilberto – No que, concretamente, você considera que a atitude delas diante da vida mudou?

Miguel – Dou um exemplo. Quando o presidente da república foi visitar nossa escola, uma das crianças entregou a ele nossa camiseta – na qual consta o logotipo criado por elas: um menino de short, sandália e camiseta andando pelo globo. O presidente perguntou: “O que você acha desta escola?”. A resposta foi: “Que escola? Isto aqui não é uma escola; é um parque de diversões”. É isso. Nosso lema número um, que está escrito no topo de nosso projeto pedagógico é: “Esta é uma escola cujo objetivo principal é fazer as crianças serem felizes”. Porque sem felicidade, sem se sentir aceito e amado, não se aprende nada.

Gilberto – Com base em seu conhecimento em neurociência, e considerando o que o Drauzio contou sobre
a experiência dele, pergunto: qual a relação entre a emoção e a informação, no cérebro? Por que retemos melhor uma informação que vem acompanhada por uma emoção?

Miguel – Para responder a essa questão tenho de fazer um breve retrospecto da tradição frenológica da
neurociência, que começou com Franz-Joseph Gall, um dos pioneiros a pensar o cérebro de forma holística. Ele acreditava que era possível saber a personalidade das pessoas, suas principais tendências, mediante uma “inspeção visual do crânio”, isto é, pela análise das reentrâncias e saliências da cabeça delas – coisas como dizer quem era mais emocional ou mais analítico. De certa maneira, em pouco mais de 150 anos desde seus “estudos”, não avançamos muito, porque boa parte das teorias dominantes até recentemente na
neurociência defendia que regiões específicas do cérebro determinariam se um indivíduo é feliz, artístico ou analítico. E isso não é verdade. Essa corrente equivocada de pensamento acabou levando a uma visão dicotômica dos circuitos, que entendia separadamente o sistema límbico (teoricamente gerador do conteúdo emocional) e o neocórtex (fonte da capacidade analítica), ligado aos sentidos do tato, da audição, da visão etc. Nas últimas duas décadas, tornouse preponderante a tendência a considerar que essa separação só existe no nosso modo de olhar para o cérebro.

Drauzio – Ela é apenas didática.

Miguel – Precisamente. Do ponto de vista do funcionamento cerebral, o que se sabe hoje é que a ativação tátilvisual, por exemplo, está sempre associada com o recrutamento do sistema límbico. Ou seja, as suas impressões perceptivas do mundo são sempre acompanhadas de uma interpretação emocional.

Gilberto – Então, o que aconteceu, do ponto de vista da neurociência, quando o Drauzio conseguiu convencer os detentos a não usar mais a seringa? Havia uma emoção associada àquele aprendizado?

Miguel – Bem, acho que ele tocou no ponto principal, na essência do que a vida de cada uma daquelas pessoas representava. O que sobrou para elas, uma vez que o direito de ir e vir lhes havia sido cerceado? Restava-lhes apenas a própria vida e a vida das pessoas que lhes davam suporte: mãe, pai, filho, prima. Penso que o Drauzio conseguiu tocar num circuito neural de todos, coletivamente – e aí está o grande mérito, que é o da sinergia. É muito difícil a sinergia entre dois seres humanos em qualquer coisa, pois somos muito semelhantes, mas muito diferentes ao mesmo tempo. Com suas mensagens, ele conseguiu tocar as pessoas nas únicas coisas que as uniam: o sentido de autopreservação e de preservação daqueles que as apoiavam. Afinal, ninguém é santo. Já foi claramente demonstrado que o altruísmo tem vantagens evolutivas.

Gilberto – Porque, do contrário, destruiríamos uns aos outros.

Miguel – Exato. O seu altruísmo neste instante originase da esperança calculada (pela dopamina que é liberada no cérebro) que, em outro instante, alguém será altruísta com você. É uma demonstração do que você precisa para sobreviver. No nosso caso, o que oferecemos para as crianças – e foi isso que tornou desnecessário um detector de metal em nossa escola – é o amor incondicional e a liberdade de explorar sem medo. Meus filhos freqüentam uma escola que tem detector de metal, na qual professor tem spray de pimenta e vêem-se policiais andando armados. A nossa escola não tem nada disso. Ela é um laboratório de oportunidades, onde as crianças têm a possibilidade de fazer tudo que não podem fazer na escola pública regular.

Gilberto – Em poucas palavras, você levou para o Rio Grande do Norte o laboratório de microbiologia da USP.

Miguel – De certa maneira, tanto é assim que o prédio central de nosso instituto chama-se César Timo-Iaria. Nada é forçado na escola: não fazemos chamada, não atribuímos notas, não há provas nem diplomas. Os únicos princípios ali são aqueles três de que eu estava falando: primeiro, felicidade – acima de tudo, procuramos que os alunos sejam felizes ali. É claro que o conteúdo também é importante, mas eu quero entrar nessa escola e ver as crianças felizes. Segundo, que eles sintam que podem falar o que quiserem – fazer qualquer pergunta, apresentar qualquer dúvida, qualquer medo tem um lugar… Medo de morrer? As crianças falam da morte quando desejam, há crianças que manifestam uma preocupação muito grande com o que é a morte. E, por fim, que nessa escola as crianças possam sonhar seus sonhos impossíveis e aprender o caminho para realizá-los, contribuindo para a construção de um novo país.

Gilberto – Estava ouvindo sua narração dessa aventura educacional fascinante e fiquei com curiosidade de saber como foi o treinamento dos professores que educam essas crianças?

Miguel – Da mesma maneira que o Drauzio fez com os presos da Detenção: libertando-os de tudo o que tinham visto antes e mostrando o que eles têm pela frente. Qual é a motivação para alguém continuar ensinando? A motivação é multiplicar essa paixão por aprender e esperar que, um dia, alguns desses alunos a continuem multiplicando. É como a ciência. Ciência é isso. Você passa o bastão, vem uma pessoa de outra geração, corre a corrida e o passa para a seguinte… e assim por diante.