Projeto reeduca homens denunciados por violência doméstica
Criado em 2014 pela promotora de Justiça Gabriela Manssur, o Tempo de Despertar diminuiu a taxa de reincidência dos casos, que passou de 65% para 2%
No Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, cinco homens sentados na recepção do local, em silêncio, aguardam serem chamados, por volta das 9h de uma terça-feira de outubro. Ao receberem um aviso do segurança, se dirigem à sala do encontro daquela manhã, dão bom dia a todos e se acomodam nas poltronas das duas primeiras fileiras.
Entre eles, há poucas coisas em comum, aparentemente, além do fato de terem sido denunciados por suas companheiras ou ex-companheiras pela Lei Maria da Penha — que pune a violência doméstica — e, por isso, intimados a comparecer a um projeto do Ministério Público do Estado de São Paulo, Tempo de Despertar, idealizado em 2014 pela promotora de Justiça Gabriela Manssur, que oferece um trabalho socioeducativo a homens acusados desse tipo de crime com o intuito de diminuir a reincidência dos casos e salvar vidas.
Antes da apresentação da iniciativa, os responsáveis aplicam um questionário individual e sem identificação a cada um dos presentes. Embora na lista constavam cerca de 20 pessoas, apenas uma pequena parte havia comparecido. Estado civil, escolaridade, ocupação, renda mensal, número de filhos e enteados, região em que nasceram e religião estão entre as questões abordadas. Em seguida, há perguntas sobre a relação com a mulher e os filhos, tipos de violência que ocorriam na família, data da agressão que culminou com a denúncia e se já conheciam a Lei Maria da Penha.
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Logo depois desse primeiro momento, o coordenador do projeto, o filósofo Sérgio Barbosa, pioneiro no trabalho com homens autores de violência no Brasil, introduz o Tempo de Despertar e cita a questão mais latente na cabeça daqueles homens ao estarem ali: a denúncia de violência doméstica. Este foi o primeiro de oito encontros daquele grupo que se iniciava.
“O que aconteceu para trás na vida de vocês eu não posso mudar. Eu vou trabalhar daqui pra frente. Não quero saber o que vocês fizeram nem leio o boletim de ocorrência. Vocês vão sair daqui diferentes, ou pelo menos se questionando”, afirma o especialista.
“O que você sentiu ao receber o indiciamento?”, pergunta Barbosa aos homens sentados logo a sua frente, que reagem com um misto de vergonha e timidez. “Senti que não deveria ter causado isso, que não deveria ter tido aquela briga”, responde um rapaz. “Vergonha. Porque sempre repudiei esse tipo de coisa”, afirma outro. “Vergonha, pois me remeteu ao meu pai. Se ele fosse vivo, teria vergonha de mim”, completa um senhor. Um último homem afirma que, na sua opinião, a Justiça ouve mais a versão da mulher nesses casos, mostrando não concordar com o indiciamento.
O coordenador apresenta toda a equipe da iniciativa, composta por ele, o psicólogo Gilsom Maia, e as duas técnicas, a advogada Najara dos Santos e a engenheira civil e futura advogada Samara Moura. A breve apresentação é seguida da exibição de um filme, que conta a história de um casal tradicional, mas que tem os papéis de gênero invertidos. O homem se torna a pessoa que cuida da casa e dos filhos, e, a mulher, quem trabalha fora e ainda trata o companheiro com um ar de superioridade, chegando a ser violenta.
O vídeo provoca uma reflexão inicial nos homens, em seu primeiro encontro no grupo, para que eles passem a entender um pouco sobre a masculinidade e o machismo. Depois de um café da manhã servido ao lado, os participantes assistem a uma palestra do juiz de direito Mário Rubens Assumpção Filho, titular da Vara da Região Leste 3 de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e parceiro do projeto.
“Quem é machista aqui?”, indaga o magistrado, que recebe poucas respostas.
A discussão inicial sobre machismo, que, para muitos ali, é a primeira vez que têm a liberdade e o direcionamento para falar do tema, termina com um “dever de casa”: Sérgio pede para que eles definam o que é felicidade. A ideia, segundo o filósofo, é que eles comecem a se sentir à vontade para falar uns com os outros, processo que avança no decorrer dos encontros e dos debates entre os participantes.
O Tempo de Despertar é composto por oito encontros em cada grupo, sempre realizados às terças e quintas-feiras, no mesmo local, nos quais são abordados temas como a violência de gênero, Lei Maria da Penha, medida protetiva, sexualidade, formação das masculinidades, paternidade, álcool e drogas, entre outros, escolhidos de acordo com a necessidade durante o trabalho executado pelos técnicos.
Além do primeiro contato citado acima, a Catraca Livre esteve presente no quarto encontro de outro grupo.
Nele, 12 homens recebem a seguinte proposta inicial: colocar em um papel o primeiro nome, o time de futebol, o ano em que nasceram, o prato de comida preferido, uma música, a cor predileta e uma praia de sua preferência. Depois, formam duplas com quem estava mais próximo e a ideia é que analisem se tinham mais coisas diferentes ou similares entre eles. Como a grande parte é distinta, eles têm que definir, entre cada dupla, qual era a melhor entre as duas opções.
O objetivo da primeira dinâmica é evidenciar as diferenças e a possibilidade de entrar em um acordo sem conflitos maiores. Além disso, são estimulados a pensar por que, no dia a dia, o homem não costuma mudar de opinião e, geralmente, não abre mão de algo em seus relacionamentos.
“Em que momento nós, homens, achamos que estamos perdendo?”, pergunta Sérgio aos participantes. “Quando a nossa companheira tem uma situação econômica melhor do que a nossa”, reflete um deles.
Mas como trabalhar as emoções, considerando que os homens têm dificuldade para falar sobre os próprios sentimentos?
A conversa segue com a exibição de um filme de ficção baseado em fatos reais, em que alunos de uma escola são desafiados a fazer um trabalho sobre violência. No entanto, ao refletir sobre o assunto, uma das estudantes identifica que essa violência está mais perto do que imagina: dentro de sua própria casa, na maneira como o pai trata a mãe. O tema principal do vídeo, a violência, serve de base para o debate que segue entre os indiciados pela Lei Maria da Penha, divididos em três grupos.
Nas conversas, os homens listam os tipos de violência que aparecem no filme e se abrem sobre situações que já viveram com suas ex ou atuais companheiras. “Eu me separei porque já estava com outra mulher. Aí ela agrediu minha atual e eu reagi com violência, por isso estou aqui”, relata um rapaz. “O que eu fiz, acho que minha esposa nunca vai me perdoar”, diz um senhor, no mesmo grupo. Em outra roda, os quatro participantes debatem sobre o que é um relacionamento abusivo, a partir do que viram no vídeo. “Para mim, a possessividade é o maior indício”, declara um deles.
Entre os dois grupos, é perceptível o quanto já há certa proximidade entre quem está no quarto encontro para falar sobre temas sensíveis, como machismo e a própria violência pela qual foram denunciados. Ao final, o coordenador do projeto pede aos 12 participantes para que definam, em uma palavra, o encontro daquele dia. “Bom”, “gratidão”, “aprendizagem” são alguns dos termos usados.
O projeto
O Tempo de Despertar teve início na cidade de Taboão da Serra, em 2013, a partir da iniciativa da promotora de Justiça Gabriela Manssur. De lá para cá, o projeto de ressocialização do autor de violência contra a mulher cresceu e chegou a outras cidades e estados, se tornando Lei Municipal na cidade-piloto da iniciativa, além de Lei Municipal e Estadual em São Paulo. No total, 272 homens já passaram pelos encontros.
Segundo Sérgio Barbosa, coordenador do Tempo de Despertar, o projeto de reeducação desses homens existe há muitos anos, desde antes da Lei Maria da Penha (criada em 2006). “Era necessária uma intervenção maior do que pagar cesta básica, multa, que de nada adiantava. Então, no ABC Paulista, eu comecei, em 2000, a trabalhar com esses homens indicados pelo Ministério Público. A reincidência dos crimes logo passou a diminuir”, diz o filósofo, um dos responsáveis por fundar os trabalhos com grupos de autores de violência no Brasil.
Atualmente, no caso da capital paulista, todos os homens indiciados pelo boletim de ocorrência Maria da Penha são intimados a comparecer aos encontros do Tempo de Despertar.
“Eles estão todos em processo, pois, se a gente esperar essa fase acontecer e ocorrer a condenação, se estabelece um espaço de muito risco para a mulher, já que ele pode cometer uma violência pior ainda e até mesmo o feminicídio”, afirma o coordenador.
“Como não é uma terapia, mas um trabalho socioeducativo com efeitos terapêuticos, as atividades são direcionadas para que eles possam mudar o comportamento, mudar a sua forma de pensar sobre a mulher na sociedade e também mudar a sua forma de ser homem. Esse tipo de homem não pode mais existir na sociedade”, completa.
O trabalho é padronizado e tem uma metodologia aplicada a todos os grupos, com uma série de atividades, mas isso pode variar de acordo com a necessidade que surgir nas rodas de conversas. Desde sua criação, o projeto passou a ser mais educativo, tendo como eixo principal que os homens se tornem protagonistas de suas vida e melhorem por si próprios e pelas mulheres.
Os resultados são bastante positivos: a taxa de reincidência dos casos de violência doméstica, entre os participantes do projeto, passou de 65% para 2%, sendo que, nos últimos dois anos, essa porcentagem chegou a 0%.
Caso algum deles volte a cometer o crime, será condenado e não terá outra chance de participar do Tempo de Despertar. Os dados são baseados no boletim de ocorrência, mas, como isso não mostra necessariamente que o agressor não voltou a cometer o crime, a ideia é que no futuro exista um acompanhamento mensal, por pelo menos dois anos, dos homens que participaram do Tempo de Despertar.
De acordo com Barbosa, a efetividade do trabalho se dá pela possibilidade de criar um grupo reflexivo, um espaço onde os homens vão falar com outros e minimamente entender a violência que cometeram para buscar sair dessa situação.
“Um homem apoia outro a romper o ciclo da violência e não ser mais omisso diante de uma agressão praticada de um homem contra uma mulher.”
Os participantes dos encontros não têm um perfil social definido: são de diversas classes sociais, idade, etnias e com diferentes graus de escolaridade. O que há em comum entre eles é o machismo arraigado, em que a mulher ainda é considerada uma posse, principalmente no fim desses relacionamentos. “O perfil é de alguém controlador e dominador. Quando não conseguem dominar essa mulher ocorrem as violências”, explica.
O coordenador do Tempo de Despertar conta que, no geral, os homens chegam aos primeiros encontros de uma forma bem resistente, raivosos, culpando todas as mulheres e sem entender o que estão fazendo lá. “A partir do momento em que muda o discurso, a gente percebe que eles começam a se tornar responsáveis pela situação de violência. Isso não quer dizer que se tornam culpados, mas, sim, responsáveis por mudar a situação. Um dos sinais é quando eles começam a falar mais deles e de seus sentimentos, do que sobre as mulheres que os denunciaram.”
A grande maioria dos homens tem dificuldade para falar sobre sentimentos porque não foram criados dessa forma.
“Muitos dos nossos comportamentos são estimulados para sermos fortes, viris, nunca aceitar a negativa de uma mulher ou de um homem, e sempre ter iniciativa. Muitas vezes, a violência é desencadeada quando o agressor encontra uma mulher forte, que demonstra sonhos e desejos. Ele acha que ela é posse”, reitera Sérgio.
O filósofo enfatiza a principal urgência de um projeto como o Tempo de Despertar: salvar a vida das mulheres e também dos homens. Identificar os primeiros sinais e ameaças, como um puxão de cabelo ou a perseguição da vítima, pode ser crucial para a vítima se proteger.
Já os homens, ao conversarem em rodas de discussão sobre masculinidades, podem perceber que o que fazem no dia a dia é violência, e, assim, não cometerem outras agressões e até mesmo um feminicídio.
“Uma tragédia nunca acontece de forma instantânea. São pequenos sinais e comportamentos que esses homens vão realizando diante da mulher, como vigiar o celular dela, persegui-la no trabalho, maltratá-la ou diminuí-la. São esses indícios que geralmente a sociedade não identifica como violência doméstica e que podem culminar num feminicídio”, finaliza Barbosa.
Campanha #ElaNãoPediu
Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas. Conheça a nossa plataforma exclusiva.