Sonia Guajajara: ‘Não é uma luta de índio, mas pelo planeta’
No Dia Mundial do Meio Ambiente, a Catraca Livre e a Change.org conversaram com a líder indígena para entender os impactos do governo Bolsonaro aos povos
“Não é uma ‘luta de índio’, mas uma luta pelo planeta. É bem importante as pessoas saberem que nós, indígenas, somos 5% da população mundial e conseguimos proteger, com o nosso modo de vida próprio, 82% da biodiversidade que existe ainda viva no planeta. Por isso a luta tem que ser compreendida e abraçada por todo mundo”, afirma Sonia Guajajara. Nascida na terra indígena Arariboia, no Maranhão, a principal liderança feminina indígena no Brasil foi a convidada da live realizada pela Catraca Livre, em parceria com a Change.org, nesta sexta-feira, 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente.
Em entrevista aos jornalistas Allan Hipólito e Mainary Nascimento, a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ex-candidata à Vice-Presidência da República, falou sobre o atual momento político do país, o avanço do desmatamento na Amazônia e a crise ambiental durante o governo Bolsonaro.
Para Guajajara, se o presidente Jair Bolsonaro ficar quatro anos no poder, a tragédia para o meio ambiente será grande. A líder também comentou sobre as declarações e medidas antiambientais do ministro Ricardo Salles. “Se fosse um governo sério, hoje mesmo [Dia Mundial do Meio Ambiente] sairia a exoneração do ministro Salles”, afirma.
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Sobre a data, a coordenadora da Apib reflete que, assim como o Dia do Índio e o Dia da Mulher, é um momento de luta e de mobilização para que a sociedade se engaje. “O que comemorar, de fato, não existe. O que há é esse chamado geral para que as pessoas se envolvam. Que a sociedade entenda essa luta em defesa do meio ambiente como uma questão coletiva, uma causa que tem que ser compartilhada e de forma urgente. Não temos mais muito tempo a esperar. O momento de lutar e se envolver é agora”, ressalta.
Confira a entrevista na íntegra:
Amazônia
Catraca Livre – Há uma crise ambiental na região da Amazônia Legal, com recorde de desmatamento mesmo durante uma pandemia. O presidente e o ministro do Meio Ambiente são parte do problema, em vez de resolvê-lo. Que tipo de resposta a sociedade pode dar a isso?
Sonia Guajajara: É fato que a gente está vivendo uma das piores crises da nossa história: sanitária, econômica, ética e ambiental. Infelizmente, quando a gente fala da crise ambiental, não é um problema que afeta somente o meio ambiente, não afeta somente a natureza. Quando se trata da legalização da destruição do meio ambiente, nesse caso especificamente da Amazônia, estamos falando de um lugar que tem muita gente também, que tem pessoas, cultura e diversidade.
Muitas das vezes, para a maioria das pessoas, se fala de meio ambiente parece que é uma coisa dissociada da vida humana. Infelizmente, ainda é assim que muita gente pensa: que a luta ambiental é uma luta isolada. Até mesmo muitos ambientalistas, que fazem uma luta ótima para defender o meio ambiente, também não conseguem perceber essa relação entre o meio ambiente e as pessoas.
A primeira coisa que as pessoas têm que entender é que não dá para fazer lutas dissociadas: meio ambiente e lutas sociais. Por exemplo, os territórios indígenas, que são comprovadamente os territórios mais preservados, mesmo sem política ambiental efetiva. Quem protege é exatamente o modo de vida dos povos indígenas, é a forma como a gente se relaciona com o meio ambiente e como as comunidades tradicionais o protegem. Lembrando que não é “meio”, é um todo. É exatamente essa relação harmoniosa dos povos que garante a preservação e a proteção. Quando a gente fala da demarcação de terras indígenas, as pessoas não entendem o quanto é urgente lutar por isso. O quanto é importante apoiar a causa indígena nesta luta pela demarcação.
O recado que fica para as pessoas é que a luta pelos territórios indígenas, esse embate no Congresso que a gente faz diariamente para demarcar territórios, não é uma luta que beneficia só os povos indígenas, mas que beneficia todo mundo. É exatamente nesses territórios que estão a maioria das florestas em pé, que regulam as chuvas. As chuvas, inclusive, que abastecem as grandes lavouras das monoculturas.
O que a gente faz beneficia todas as pessoas. Não é uma “luta de índio”, mas uma luta pelo planeta. É bem importante as pessoas saberem que nós, indígenas, somos 5% da população mundial e conseguimos proteger com o nosso modo de vida próprio 82% da biodiversidade que existe ainda viva no planeta. Por isso a luta tem que ser compreendida e abraçada por todo mundo, pois, se não há biodiversidade, não há vida no planeta. A luta que a gente faz para prevenção e controle de queimadas, neste ano, inclusive, as estimativas não são nada animadoras… Todas essas situações têm impacto na vida de cada um, não só aos indígenas, embora para a gente o impacto seja maior porque ele é direto.
Change.org – Diante de tantos problemas, é possível notar um maior engajamento da sociedade nas pautas ambientais. A gente vê aqui na Change.org, por exemplo, que o meio ambiente é um dos temas que mais engajam os usuários, tanto em quantidade de petições criadas quanto em assinaturas feitas. Inclusive, a segunda maior petição da história da Change.org no mundo é uma contra o desmatamento na Amazônia, que está perto de 6 milhões de apoiadores. Você concorda que, de maneira geral, o brasileiro está mais ligado nessa causa?
Sonia Guajajara: Acho que aumentou, sim. Sobretudo por vivermos uma conjuntura política complexa. Hoje enfrentamos um projeto do Palácio do Planalto que incentiva explorações e invasões. Por isso as pessoas entenderam a gravidade que vivemos. E que essa luta não é só de ambientalista, indígena ou quem vive na floresta. Mas uma luta coletiva. É bem notório o aumento da preocupação, do engajamento.
É importante ressaltar que existe um contexto de ameaças ao meio ambiente, não mais só dos invasores, de quem extrai madeira ilegal ou do garimpo. Hoje se tornou uma luta contra o próprio Estado, que tenta legalizar a grilagem. Existe um projeto que tenta legalizar a invasão de nossas terras. Um dos momentos mais graves de toda a nossa história, mas que percebemos maior adesão e vontade das pessoas de se envolver.
Change.org – No ano passado, o recorde de queimadas na Amazônia provocou um boom em nossa plataforma. A gente viu uma petição contra as queimadas, por exemplo, alcançar 5 milhões de apoiadores em poucos dias. Essas assinaturas, inclusive, foram entregues ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que recebeu o abaixo-assinado e, no mesmo dia, instalou uma comissão externa para integração do meio ambiente e economia. Como você enxerga esse tipo de mobilização e articulação da sociedade como meio de pressão na política?
Sonia Guajajara: Sim, faz a diferença. Queria complementar também sobre a questão do engajamento. No ano passado, a Apib realizou uma jornada pela Europa. Levamos a campanha “Sangue indígena: nenhuma gota a mais”, que percorreu 12 países, em 20 cidades, em 35 dias. Nessa jornada, a gente conversou com representantes de empresas, que têm negócios aqui no Brasil, que compram produtos aqui ou que financiam. Conversamos com parlamentares, ambientalistas, com representantes do Executivo e também com a sociedade civil.
Ali a gente já trazia essa preocupação com o acordo do Mercosul, porque iria pressionar mais ainda a demanda por territórios, por terra, para esses setores empresariais, para que pudesse produzir mais, já que o acordo ia liberar mais ainda a exportação de produtos brasileiros com taxas de isenção de impostos. A gente fez uma conversa direta trazendo essa preocupação, de que o acordo impactaria diretamente o meio ambiente, e também a nossa vida e o nosso povo, que hoje clama por demarcação dos territórios indígenas.
Com o Mercosul, a gente não só não teria os territórios demarcados, como também teria pessoas expulsas diárias já com processos concluídos. Esta é exatamente a decisão política do governo federal hoje de não demarcar terra indígena e de rever territórios demarcados. A gente levou essa conversa para a Europa, e, agora, com essa tramitação de um projeto de lei na Câmara, retomamos essa conversa no Brasil com setores empresariais e parlamentares. Vieram da Europa posicionamentos diretamente ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de que se não houver comprometimento no Brasil em respeitar o meio ambiente, então vão enfraquecer essas relações internacionais. A mobilização permanente é fundamental.
Política ambiental
Catraca Livre – Sobre Ricardo Salles, há quem o chame de “antiministro” do Meio Ambiente. São muitas as razões para isso, como a frase de “passar a boiada” na regulamentação ambiental enquanto a imprensa se preocupa com a pandemia. Até o agronegócio tem se manifestado contrário a algumas decisões da pasta, a imagem do país está derretendo no exterior. Vai ser possível recuperar toda essa destruição depois deste governo?
Sonia Guajajara: A tragédia vai ser grande, viu? O rastro de prejuízo deixado não está escrito. Se Bolsonaro ficar quatro anos, o resultado vai ser trágico, seja para o meio ambiente e também para as pessoas. Diante disso, vamos precisar de um engajamento ambiental ainda muito maior para reconstruir o país. O prejuízo dessa política é trágico.
Change.org – A gente atravessa uma fase de muitos ataques. E ataques vindos de diversas frentes. Por outro lado, a gente percebe uma reação da sociedade. Somente nessa última semana, depois que vieram a público as declarações feitas pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, 35 mil pessoas se juntaram a uma campanha que pede a exoneração imediata dele do cargo. Hoje, o autor dessa petição, que já passa de 160 mil assinaturas no total, deve protocolar as assinaturas no Ministério Público Federal de Santa Catarina, aproveitando o Dia Mundial do Meio Ambiente. O que você espera para essa data de hoje? Que tipo de ações, reivindicações, comemorações…?
Sonia Guajajara: Se a gente tivesse um presidente no Brasil, porque no momento nós não temos, estamos num barco à deriva. Se fosse um governo sério, hoje mesmo sairia a exoneração do ministro Salles, que é o ministro antiambiental, como a gente diz. O que ele falou ali não é só um desrespeito, mas é muito criminoso. É criminosa a expressão tanto dele quanto do ministro da Educação e da Damares [Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos]. Parecia mais uma reunião de organização criminosa do que de governo.
Lamentavelmente, assim como o Dia do Índio e o Dia da Mulher, é um dia de luta para a gente, de mobilização, de sensibilização, para que as pessoas se engajem. O que comemorar, de fato, não existe. O que há é esse chamado geral para que as pessoas se envolvam. Eu acho sempre importante existir esses dias para a gente fazer os alertas necessários, trazer a convocatória para o engajamento da sociedade. Que a sociedade entenda essa luta em defesa do meio ambiente como uma questão coletiva, uma causa que tem que ser compartilhada e de forma urgente. Não temos mais muito tempo a esperar. O momento de lutar e se envolver é agora.
Catraca Livre – Em tempos de pandemia, o mundo se vê obrigado a pensar soluções para questões sanitárias. No Brasil, 45% das pessoas não têm nenhum tipo de tratamento do esgoto produzido diariamente. Assim, quase metade do resíduo gerado volta à natureza com todos os poluentes. Qual o papel das autoridades para evitar tragédias no futuro por não cuidar devidamente de questões básicas como saneamento?
Sonia Guajajara: Eu sempre trago essa preocupação em relação à falta de saneamento geral. Mas procuro também trazer reflexão sobre a forma como a própria sociedade lida com isso. Porque a gente sabe que não é normal faltar saneamento e a forma como os esgotos são descartados no rios, nas praias.
O que me preocupa bastante também é como a sociedade não reage a isso. Por exemplo, a gente conseguiu fazer as pessoas olharem com mais preocupação para o veneno na comida, sobre o uso do agrotóxico. Fizemos elas entenderem que isso é grave. Por outro lado, não conseguimos fazer a sociedade compreender a importância da luta por saneamento.
E isso também precisa ser um papel da sociedade: exigir e cobrar os governos. Com o engajamento, as pessoas assumirão um comportamento de respeito ao meio ambiente. Por que não adianta cobrar do governo se continuar jogando lixo nos rios. Hoje há uma quantidade enorme de lixo jogado nos rios pelas pessoas. É necessário uma mudança de comportamento que seja assumida por todo mundo. Então é necessário cobrar os governos por saneamento, sim. E as pessoas assumirem sua parte.
Indígenas e coronavírus
Catraca Livre – Quais os impactos da negligência do governo em promover medidas para combater o impacto da covid-19 entre os povos indígenas?
Sonia Guajajara: Eu começo trazendo essa reflexão sobre o impacto da covid-19 entre os povos indígenas e também para o meio ambiente. A covid-19, como já comprovado, atinge todo mundo, todas as gerações, mas a letalidade é maior entre os idosos, os anciãos. Para nós, os nossos anciãos são a nossa biblioteca, a nossa fonte de sabedoria, os nossos tesouros vivos, que têm consigo todo um conhecimento ancestral e todo esse legado da nossa história. Quando esses anciãos morrem, levam todo esse conhecimento, que é a garantia da continuidade da nossa identidade. É o que garante a nossa cultura, nosso modo de vida e também, consequentemente, o meio ambiente.
Essa ausência do poder público, essa negligência do governo federal, por meio da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], está permitindo que a mortalidade entre os indígenas aumente de forma muito acelerada. A falta de estrutura, de comprometimento, está fazendo com que esse vírus entre nos territórios e se propague de maneira muito rápida.
Nós temos, até o dia de ontem, um número de 211 indígenas mortos pela covid-19. 2.178 infectados. Isso já atinge 83 povos indígenas, espalhados pelas cinco regiões. Só no estado do Amazonas já foram 129 mortes. É muito grave para a população indígena. Enquanto a letalidade entre a população brasileira como um todo está em 5,6%, entre os povos indígenas já chega a 9,6%.
O que comprova essa negligência da Sesai é que, enquanto temos 211 mortos registrados pelo Comitê pela Vida e Memória Indígena, criado pela Apib, que está fazendo esse levantamento, a Sesai registrou apenas 60 mortes. Então, você percebe não só uma negligência, mas um genocídio institucionalizado. No momento em que a Sesai nega o registro desses números, ela está tentando esconder uma situação totalmente grave. Enquanto o comitê registrou 2.178 indígenas contaminados, a Sesai registrou apenas 1.620.
Nesses últimos dois dias de junho, a gente teve um número de mortes igual a todo o mês de abril. Se continuar nesse aceleramento, é, sim, um genocídio. Estamos no risco de outro genocídio dos povos indígenas, como ocorreu na ditadura, na colonização… Em abril todo, tivemos 26 mortes. Agora, somente em 1 e 2 de junho, tivemos 28 mortes. Isso representa mais de 550% de aumento das mortes de indígenas em dois dias. Se não houver medidas estratégicas de barreiras sanitárias e preventivas agora, nós, indígenas, estamos em risco.
Catraca Livre – De que forma os próprios povos indígenas estão se articulando para conter a disseminação do vírus? Quais os maiores desafios nesta luta?
Sonia Guajajara: O desafio é gigante porque é uma responsabilidade do Estado. Garantir estrutura de saúde e oferecer condições para que os indígenas permaneçam em seus territórios durante o isolamento.
Cada povo está se organizando de acordo com as medidas necessárias e buscando suas formas de se proteger. Por meio de barreiras sanitárias, evitando a entrada de pessoas, parcerias com organizações não governamentais, que ajudam a arrecadar equipamentos de proteção, criando vaquinhas online e divulgando na internet.
Semana que vem, a Apib vai apresentar um plano com propostas de medidas emergenciais, com estrutura e ações urgentes. O aspecto das medidas legislativas e judiciais que precisam ser tomadas neste momento. Fortalecer a rede internacional de apoiadores aos povos indígenas e nossa rede de comunicação: como fortalecer uma linguagem que fale com as aldeias nas áreas mais remotas, articular a presença dos povos indígenas nas redes, cobrando o Congresso Nacional e o Poder Executivo. Pensar uma linguagem para dentro das aldeias, pela divulgação de vídeos, podcasts e radiofonia nos casos de quem não tem como chegar a informação. Mas sobretudo ocupar as redes sociais, como temos feito durante o período de isolamento.
Change.org – Vou anunciar aqui, em primeira mão, que lideranças indígenas acabaram de lançar um abaixo-assinado cobrando a realização de testes do coronavírus nas aldeias do Mato Grosso. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, mais de 140 indígenas já morreram por coronavírus no país. Na petição, as lideranças do povo chiquitano e do Xingu dizem temer que um novo genocídio esteja em curso. O quão importante você acha que é esse pedido – que elas fazem na petição – para a proteção dos indígenas nessa pandemia?
Sonia Guajajara: Esse pedido dos testes já foi feito desde o primeiro dia que se declarou a pandemia. Quando vimos o risco da pandemia se alastrar. A Apib fez uma carta para o governo federal, exigindo um plano de contingenciamento emergencial aos povos indígenas.
Em seguida, uma carta para todos os governadores, apresentando 10 medidas de comprometimento desses governos com ações concretas e intergovernamentais, com o governo federal, municípios e também os movimentos indígenas.
Realizamos o acampamento Terra Livre Online, onde trouxemos este assunto para o debate; uma assembleia da resistência indígena para elaborar um plano emergencial da Apib e, nesse plano, trazer a urgência sobre a testagem. E é claro que essa iniciativa de Mato Grosso é fundamental e tem que ser ampliada para todos os estados. A situação de emergência está em todos os territórios indígenas.
Essa falta de testagem é o que faz aumentar a proliferação. Se o indígena não sabe o que está acontecendo, não vai tomar os devidos cuidados. É preciso garantir a testagem, assim como a estrutura para casos de isolamento e tratamento entre os indígenas. Porque a estrutura que a Sesai tem hoje não é suficiente nem para a demanda que já tinha. Não dá conta.