“Ler para uma criança é dizer ‘eu te amo’: diz pediatra
“As crianças não são, como se diz normalmente, um copo que precisa ser preenchido, mas sim um fogo que precisa ser atiçado”, a frase é da pesquisadora e escritora espanhola Ana Garralón, no livro “Ler e saber”, e faz pensar: como despertar na criança o interesse por determinadas preferências?
Nesse contexto, surgiu em 2015 a campanha “Receite um Livro”, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que também é incentivada pelo clube de assinatura de livros infantis Leiturinha, responsável por enviar, mensalmente, kits de livros para quase 20.000 pequenos leitores de todo o Brasil e implantar cantinhos de leitura nas salas de espera dos consultórios médicos, o ‘Espaço Leiturinha’.
A proposta é orientar pediatras de todo o país e receitarem livros para crianças de zero a seis anos, incluindo aquelas com deficiência, prematuras ou com problemas cognitivos. O objetivo? Investir no potencial da literatura como mediadora de questões ‘difíceis’ de tratar com as crianças.
Segundo os médicos, crianças leitoras têm mais desenvoltura para resolver demandas emocionais e mais desenvoltura para se relacionar. Para os especialistas, a leitura oferece um resultado ainda melhor em pequenos com alguma deficiência ou déficit de aprendizado, uma vez que a partir das histórias eles podem descobrir habilidades desconhecidas e se reconectar com suas capacidades cognitivas.
Para entender melhor essa história, o Catraquinha foi conversar com médicos e profissionais do meio. Afinal, o que motivou a decisão de transformar o livro em uma receita médica?
Por que ler?
Entender o papel dos livros no universo infantil pode ser uma questão controversa. Atualmente ensinada nas escolas no âmbito da língua portuguesa, a literatura dificilmente é associada à forma de arte que é, estimulando a leitura apenas dos textos e deixando de lado o potencial de leitura de imagens, muito rica para desenvolver conexões e abrir possibilidades de significação. Seja como for, ninguém duvida do potencial dos livros para estimular a curiosidade dos pequenos e ampliar o seu repertório de mundo.
Para Fernanda Veiga, pedagoga responsável pela seleção dos livros enviados pela Leiturinha, “oferecer livros que acompanhem a etapa de desenvolvimento de cada criança é fundamental. A escolha dos livros adequados à idade didática dos pequenos exige um cuidado minucioso sempre atento ao que é ideal explorar naquele momento.”
Por isso, é importante ampliar o espectro do que se entende por ‘leitura’. Contar histórias oralmente, cantar narrativas, contar histórias para o bebê ainda na barriga, ler em voz alta, fazer leitura compartilhada: tudo isso configura o ato de ‘ler’ e tem um papel importante no estabelecimento dos vínculos afetivos entre a criança e a família, e também de uma criança com outra criança.
O médico e filósofo Antônio Pessanha Henriques Júnior, de Cajuru (SP), destaca que a explicação médica para o benefício da leitura envolve o sistema límbido, uma espécie de ‘gaveta’ onde o ser humano armazena os sentimentos. “O universo da leitura, e principalmente da contação de histórias conduzida por alguém apaixonado por leitura, tem um envolvimento na formação de caráter de cada criança. É provável que esta “gaveta” vire um “container”, que servirá como um banco de dados para toda uma vida. E é bem provável também que todos aqueles tidos como “hiperativos” ou sem atenção tenham seus diagnósticos mudados depois de uma boa leitura”, explica.
O psicolinguista colombiano Evelio Cabrejo Parra, vice-presidente da organização Ações Culturais Contra as Exclusões e Segregações (ACCES), defende a leitura desde a primeira infância, a explica que ler é adquirir a capacidade da linguagem. “O bebê, ao nascer, já vem com a capacidade de escutar. Quando se lê para ele em voz alta ou se canta uma canção de ninar, ele se põe em posição de escuta. Isso quer dizer que está tratando de construir significado à sua maneira. Por isso, é necessário alimentar essas potencialidades desde o princípio da vida”, ressalta.
O depoimento de Evelio está presente na cartilha desenvolvida pela SBP, que oferece uma série de subsídios à questão do incentivo à leitura, desde testemunhos práticos de profissionais do meio quanto uma seção de perguntas e respostas recorrentes sobre a maneira correta de prescrever um livro.
Como fazer isso?
Se o livro infantil se transformou em ‘receita’ indispensável até nos consultórios médicos, por que não começar em casa? Há diversas formas de incentivar a leitura – em casa ou na escola. As plataformas de assinatura de livros são vias interessantes de iniciação à leitura, pois contam com uma curadoria de especialistas na área.. A Leiturinha seleciona livros infantis especialmente para a etapa de desenvolvimento de cada pequeno, considerando as especificidades de cada faixa etária. Para o bebês, livros de texturas, cores e formas são os mais recomendados.
Além disso, a equipe pedagógica do clube desenvolve um kit especial para consultórios médicos, com o objetivo de transformar a sala de espera em um momento de conexão afetiva entre pais e filhos. O ‘Espaço Leiturinha’ já ganhou a adesão de profissionais pelo Brasil todo. O neuropediatra Marcone Oliveira, de Minas Gerais, é um deles.
Confira a entrevista completa e tire suas dúvidas sobre o assunto:
Catraquinha – O que motivou a recomendação de prescrever livros em consultórios e qual sua opinião sobre ela?
Dr. Marcone – Essa recomendação foi motivada principalmente por dois fatores: O primeiro são as pesquisas com crianças que são submetidas à leitura desde o ventre materno, que mostram melhor desempenho cognitivo, comportamental e emocional. Os primeiros anos de vida da criança são fundamentais para o seu desenvolvimento, e a formação de novas conexões cerebrais são mais propícias quando estes estímulos são feitos até os cinco anos, quando o cérebro está em plena atividade na formação de novas sinapses.
Outro fator importante é que há cada vez mais evidências de que a arquitetura do cérebro é construída através das experiências vivenciadas, sendo assim, este período fundamental para que se ofereça afeto, cuidado e estímulos, sendo a leitura ferramenta primordial neste contexto.
Catraquinha – Assim como a reação a um determinado medicamento, um livro também pode ter um efeito diferente em cada criança. De modo geral, qual o maior benefício trazido pela leitura?
Dr. Marcone – De modo geral, o maior benefício da leitura na infância está relacionado com o desenvolvimento infantil de forma plena, uma vez que os benefícios observados em pesquisa são inúmeros. Eles vão desde o incremento do vínculo pais-filhos, até a melhora da qualidade do sono, passando até por melhoras em quadros de patologias, como impulsividade e agitação. Sendo assim, a leitura traria benefícios para o pensar, o falar, o aprender e o conviver.
Catraquinha – A imaginação, o devaneio e a invenção livre são comuns do universo da criança. A ficção é uma entrega a esses elementos. Como neuropediatra, pode explicar como funciona o processo cognitivo de uma criança quando lê ou ouve uma história?
Dr. Marcone – Esse processo depende muito da faixa etária da criança. Ao nascer, temos milhões de neurônios aptos a desenvolver sinapses. É como se tivéssemos um “hardware” potente para incluir informações sem limites, da gestação ao primeiros anos de vida. A leitura ou o ato de ouvir uma história serviria como uma experiência boa incluída neste “hardware”.
A partir do primeiro ano, a leitura agiria com impulsionador de aquisição de novas habilidades, linguagem e comportamento; e já por volta dos seis anos, este hábito traria benefícios para o entendimento abstrato, saindo da necessidade do entendimento concreto e palpável.
Catraquinha – Em relação aos bebês, receitar livros é mais complexo? Afinal, o bebê lê com o corpo, com a descoberta tátil, sonora e olfativa daquele objeto. Quais os critérios a serem levados em conta na hora de prescrever um livro para a primeira infância? A materialidade do objeto, por exemplo, é importante na hora de receitar um livro?
Dr. Marcone – Ao contrário do que muitos imaginam, o bebê, desde as primeiras semanas no ventre materno, já apresenta as suas funções sensoriais formadas. Assim, com oito semanas de gestação, ele já pode receber estímulos sensoriais; com 24 semanas, a porção auditiva do Sistema Nervoso Central já está formada e ele já pode escutar – eles reagem, inclusive, a estímulos externos, quando expostos a sons ruidosos, por exemplo.
O maior critério a se levar em conta quando prescrevemos livros aos bebês está relacionado à segurança, portanto, não devemos expor os bebês a materiais tóxicos ou que podem causar danos, como papéis ou peças do livro que podem se soltar.
Outro fator importante a se observar é o respeito à vontade da criança, deixando-a manipular as partes do livro, e aí ressaltamos a importância de livros que tenham estímulos táteis, visuais e sonoros. Ao ler a história, devemos fazer em voz alta, com entonação adequada, apontando e chamado atenção às partes principais dos temas.
Catraquinha – Para uma criança com deficiência ou limitações de aprendizado, quais são os critérios para receitar livros? Quais os efeitos?
Dr. Marcone – O principal critério para receitar livros para essas crianças é respeitar o entendimento cognitivo que elas apresentam. Se eu tenho uma criança de oito anos, mas que ainda apresenta um desenvolvimento cognitivo igual ao de uma criança de quatro anos, devo escolher os livros indicados para essa faixa etária.
Se há uma limitação física visual, por exemplo, opto por livros com textos maiores ou em braile. Hoje, temos coleções inteiras com livros inclusivos, que contam histórias de personagens com limitações, e que se adequam à necessidade de representação dessas crianças. Os efeitos observados nessas crianças são semelhantes ou até melhores aos efeitos observados em crianças neurotípicas. Sabemos que, quanto pior o contexto socioeconômico dos pais ou as dificuldades que a criança tenha, mais ela vai se beneficiar.
Catraquinha – Um estudo recente do psicólogo Keith Oatley, publicado em julho na “Trends in Cognitive Sciences” indica a relação direta da ficção com a empatia, indicando que leitores assíduos seriam mais solidários. Em relação às crianças, como isso se aplica?
Dr. Marcone – Provavelmente, se aplica da mesma forma, e é fácil de entender, pois tanto em adultos quanto crianças têm mais propensão a ter empatia com aquilo que conhecemos. Se eu leio, indiretamente conheço mais e posso me colocar no lugar da outra pessoa, e tenho mais empatia.
O artigo “A longitudinal study of preschoolers’ language-based bedtime routines, sleep duration, and well-being”, descrito por um grupo de pesquisadores americanosem 2011, comprova que hábito da leitura pode trazer melhoras no bem-estar geral da saúde da criança, e este fator foi inversamente associado a problemas de ansiedade, isolamento e agressividade.
Catraquinha – Qual o papel dos pais no incentivo à leitura? O interesse deles por aquilo que recomendam aos filhos contribui para desenvolver o gosto na própria criança?
Dr. Marcone – Os pais são imprescindíveis neste momento, eles devem ser instrumentos proativos; devem estimular, orientar, conduzir e familiarizar a criança com a leitura. Faz parte do afeto, ler para uma criança é dizer ‘eu te amo, quero o seu bem’.
O interesse dos pais por aquilo que recomendam é parte integrante do que o filho será no futuro. Se eu gosto de uma determinada comida, ou um determinado esporte, ou até mesmo um time de futebol, provavelmente o meu filho irá gostar desta comida, esporte ou time, por que seria diferente com a leitura?