“A favela é o local mais antropofágico do Brasil”

O livro “Um país chamado favela”, recém-lançado, traz dados interessantes sobre favelas brasileiras, como a existência de um senso de comunidade (e de existência) maior do que em qualquer outro local do país

Doze milhões de brasileiros moram em favelas. Se, todas juntas, elas formassem um estado, ele seria o quinto mais populoso do país, capaz de movimentar R$ 64,5 bilhões por ano. Quase dois terços de seus moradores têm menos de 35 anos. E, entre todos, 62% têm orgulho do local em que vivem.

Nove em cada dez moradores da favela receberam pelo menos um amigo em casa no último mês. No “asfalto”, são apenas três em cada dez. O dado ilustra o sentimento de comunidade apontado pelos autores como uma característica do local.

Quem divulga ao público esses dados é o recém-lançado livro “Um país chamado favela”, de autoria de Renato Meirelles e Celso Athayde. A obra é resultado da pesquisa “Radiografia das Favelas Brasileiras”, que ouviu 2 mil pessoas em 63 favelas de dez regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará, Ceará, Pernambuco, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul e Distrito Federal). O leitor do Catraca Livre pode conferir o primeiro capítulo do livro aqui.

Mas o livro não trata apenas de dados. Os autores pretendem, através de histórias de vida, personagens e análises contextuais, desmistificar o território dos morros e comunidades – ainda encarado como um corpo estanho para quem é “do asfalto”. Renato Meirelles, pesquisador, presidente do instituto de pesquisa Data Popular e criador do Data Favela, conversou com o Catraca Livre sobre a obra.

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Qual é a proposta do livro?

O universo da favela sempre apareceu em pesquisas, mas o livro procura mostrá-la como protagonista, e não como objeto. Queremos quebrar o preconceito, quebrar muros e construir pontes.

Quais foram as maiores surpresas da pesquisa?

O fato de que dois terços dos moradores não sairiam da favela nem se suas rendas dobrassem e a vontade de abrir seu próprio negócio, de ser um empreendedor. A favela é um território em que o poder público não age, falta coleta de lixo e há violência e problemas de saúde. Só que esse cenário criou um espírito de solidariedade fantástico, uma comunidade. Conseguir enxergar a favela nas suas contradições, como um local que funciona na sua lógica própria, é algo fantástico.

O que é a favela hoje no Brasil?

Sempre foi um lugar a ser evitado, estigmatizado. Hoje nós vemos a favela exportando sua cultura para o restante do Brasil, com funk e rap fazendo sucesso entre a elite. Vemos um morador que reconhece ser vítima de preconceito, mas que tem orgulho do seu lugar. Vemos uma rede de solidariedade que pode nos ensinar algo. Na favela, 91% dos moradores receberam um amigo em casa no ultimo mês. No asfalto, esse índice é de 30%.

O que significa o aumento do poder de consumo dentro da favela?

Nós vemos o consumo por três lógicas. A primeira é vinculada à celebração da melhora da qualidade de vida – como se eles conseguissem ter certeza que a vida melhorou nos últimos anos. A segunda é o consumo como investimento – uma maquina de lavar roupa comprada no carnê para substituir o tanque, um computador pago com juros para o filho estudar. A terceira tem a ver com a diminuição do preconceito. Os moradores da favela tomam 3 vezes mais batidas da polícia do que os do asfalto. Quando eles entram numa loja, são olhados com desconfiança. Mas se estão vestidos com roupas de marca, essas situações melhoram.

 A favela está se reconstruindo?

Na favela, as relações são muito mais intensas. Os moradores brigam entre si, mas se ajudam muito mais. Ver um vizinho com um carro novo é encarado como um sinal de que a comunidade está prosperando. A favela é hoje o território mais antropofágico do Brasil, ela absorve as culturas do mundo inteiro, digere e devolve isso de um jeito próprio e lindo.