Como é ser a única pessoa negra no ambiente de trabalho

Por Heloisa Aun e Jéssica Lima

Confira os depoimentos de Stéphani Souza, João Paulo Romão e Thayná Yaredy
  • “Já fui chamado de macaco, a ponto de precisar exigir desculpas na Justiça. No meio audiovisual as pessoas sempre me tratam com indiferença, nunca me veem como alguém com potencial.” [Valter Rege, 33 anos, cineasta e youtuber]
  • “Sempre me senti excluída das rodas de conversa nas escolas em que trabalhei, pois era colocada de lado de vários assuntos, como viagens, por acharem que o negro é pobre.” [Caroline Arruda, 32 anos, professora]

Os relatos acima refletem o quanto o racismo está presente nos ambientes de trabalho, independentemente da área de atuação. Mesmo nas empresas que usam o discurso da diversidade, o dia a dia dos poucos funcionários negros é marcado por situações de preconceito. Além disso, em grande parte das lojas e dos escritórios, eles acabam sendo os únicos negros em suas equipes ou até mesmo em toda a empresa.

O Catraca Livre conversou com Stéphani Souza, João Paulo Romão e Thayná Yaredy para saber como eles se sentem sendo os únicos profissionais negros no departamento de trabalho.

Leia os depoimentos abaixo:

  • Stéphani Souza, 23 anos, analista de marketing júnior

“Eu trabalhei em uma loja e era a única vendedora negra. Depois, comecei a trabalhar na minha área, o marketing. Todas as vezes em que trabalhei neste setor, eu não via negros, sempre fui a única. Existem duas conclusões que tirei com a minha experiência de trabalho: você pode ser a única negra em um ambiente ou podem existir outros negros que ainda não descobriram que são [negros] ou que negam suas origens.

Quando vendedora, eu era tratada como a exótica. Os filhos das clientes ficavam alucinados com minhas tranças, queriam tocá-las a todo tempo. Perdi o número de vezes em que ouvi se eu lavava o meu cabelo, se eu tirava para lavar, mas surpreendentemente não sofria o racismo mais agressivo. A não ser no shopping em si, onde a loja ficava: era seguida por seguranças.

Trabalhando já na minha área [o marketing] tive que explicar para os profissionais ao meu redor que não precisavam me chamar de morena, e eles negavam porque achavam que me chamar de negra era algo ruim. Depois de muito tempo, conseguimos entrar em um acordo, e eles tiraram termos como ‘moreninha’, ‘morena’ e ‘mulata’ das conversas.

Ser a única pessoa negra em um departamento é solitário. Não adiantava ser rodeada de negros que não me entendiam, que não enxergavam o que eu falava. Quando eu era vendedora, me lembro perfeitamente que nunca cheguei a atender uma cliente negra, às vezes me batia um desespero. A gente se pergunta: ‘Onde estão os negros?’.

O meu maior problema não é ser a única pessoa negra no departamento, mas sim o que vou fazer pra mudar este quadro. Como vou ajudar a empresa a enxergar esta necessidade de ter mais representatividade? Já que eu cheguei lá, o que faço pra colocar outros? Para não me sentir mais sozinha?”

  • João Paulo Romão, 28 anos, publicitário e fotógrafo

“Com 16 anos, eu fiz um estágio em uma eletro-metalúrgica e lá foi o primeiro ambiente em que eu era o único negro do setor. Depois, trabalhei em uma grande empresa do setor de internet como terceirizado, em que também fui o único negro no setor de marketing e captação.

Na eletro-metalúrgica, por parte dos clientes, eram raros os momentos de discriminação, mas por parte dos outros vendedores e promotores eu sempre era alvo de piadas racistas.

Mesmo tendo um bom desempenho, as vezes até igualitário aos vendedores mais experientes, não podia fazer cobertura de lojas de maior movimento devido à minha cor. Era nítido que era este o motivo da restrição. A argumentação sempre era que eu ainda não tinha o ‘perfil’ para atender o público da loja. Então, sempre atendia as lojas das redes que visam regiões e públicos periféricos da cidade.

Pelo diretor de vendas do estabelecimento, não pegava bem ter um negro apresentando o produto para a ‘elite paulistana’. Já na empresa do ramo de internet, existe uma política de diversidade ampla e que exige a contratação de pessoas de etnias e formações diversas. Logo, o negro é muito bem aceito e visto pelos demais em nível de igualdade.

Ocupar cargos de liderança ainda é um desafio grande para os negros. Existe um pré-conceito de que a pessoa negra tem um conhecimento inferior aos demais, ainda acho que para muitas empresas não é algo confortável ter um chefe executivo negro. Presumem que não pega bem para a imagem da empresa.

Hoje sou gestor de uma equipe composta por outras três pessoas (inclusive um deles é negro). No início, não foi nada fácil, pois eu não tinha formação acadêmica, estava com 25 anos, moro na periferia de São Paulo e sou negro. 

No início da minha carreira como publicitário, durante as conversas pré-reunião, eu ficava calado e anotando qualquer coisa no caderno enquanto os demais competiam e ostentavam seus mimos e lifestyle. Porém, quando a pauta da reunião entrava em voga, eu demonstrava todo meu conhecimento e maturidade para tratar e conduzir as pessoas ali presentes.

Deste modo, fui ganhando credibilidade entre eles, pois, por mais que não tivesse o mesmo padrão de vida, eu passava a ser interessante pelo meu conhecimento. Ainda bem que tive oportunidade de trocar com pessoas que se importavam em ensinar independentemente da minha cor, idade ou formação, e elas me ensinaram a superar estes obstáculos.

Porém, muitas vezes, em vez de me chamarem pelo nome, esporadicamente surgiam os clássicos apelidos carinhosos ‘negão’, ‘pretinho’, etc. Eu me incomodava e adotei o JP como apelido, forçando as pessoas a me chamarem assim. Enfim, para que a mudança ocorra, a movimentação tem de partir do negro. Não se limitar e mostrar para os demais que ninguém é superior a ninguém e que sim, podemos sempre competir em igualdade.”

  • Thayná Yaredy, 30 anos, advogada

“Trabalhei em alguns locais sendo a única pessoa negra do quadro de funcionários. Um que me marcou muito foi um escritório no qual eu exercia atividades no setor jurídico. Mais especificamente, fui advogada coordenando minha área de atuação, que é o direito de família.

Minha experiência foi relativamente complicada quando partimos do imaginário que as pessoas constroem do que poderia ser, visualmente, uma profissional de sucesso na advocacia. Primeiro, pelo fato de automaticamente as pessoas imaginarem um homem, branco e de meia idade usando um terno bem passado, portando uma maleta e frases complicadas dentro de um contexto higienizado do que seria exercer a função que exerço no ramo do direito.

Os questionamentos vinham desde eu parecer ser ‘muito nova’ até os mais específicos, que dizem respeito ao meu cabelo, que é crespo e propositalmente volumoso. Ter um cargo que pode ser considerado de chefia, ainda que não tenha um salário de coordenação ou gerência, é algo muito complicado tanto por ser mulher quanto por ser negra.

Em algumas situações, era questionada por outros funcionários acerca da minha preferência por não usar um penteado que viesse ao encontro do que esperavam de uma pessoa com a minha profissão. Eu recebia telefonemas grosseiros com tratativas totalmente fora do âmbito da cordialidade e do respeito, questionamentos acerca do meu registro de Ordem [OAB], perguntas a respeito do meu grau de escolaridade, entre outros que me fazem observar como meus demais colegas eram tratados.

Nunca vi colegas homens, brancos sendo questionados sobre os mesmos quesitos e, ainda que não tivessem a mesma experiência ou qualidade, não eram colocados contra a parede para provar sua excelência e posição de trabalho.

A empresa não tinha nenhuma política afirmativa, também não tinha essa perspectiva. Ali, um ambiente puramente corporativo, que busca lucro e possui, em sua maioria, ainda que pessoas fora da classe média alta, uma perspectiva de pensamento liberal, não havia margem para inclusão. Quando ocorria, as pessoas eram marcadas de forma velada com as opressões endereçadas a elas por funcionários do mesmo escalão.

Ser a pessoa negra, não só no ambiente de trabalho, mas em diversos outros, tais como os de estudo, aperfeiçoamento e vivência, te torna alguém que sabe da necessidade de ter uma postura séria quando qualquer indício de racismo vem. Aprendi que com o tempo nós acabamos perdendo um tanto da humanidade se não nos posicionarmos contra o que tenta nos controlar, para contrapor esse tipo de prática também perdemos um pouco quando temos de ser duras constantemente a fim de nos defender.

Quando saí do local em que trabalhava foi para buscar novos horizontes, estudar e, apesar das contra opiniões, ingressei no mestrado e lá estou. Aprendi com as mais velhas, como Nina Simone, que ‘precisamos nos levantar quando o amor não está mais sendo serviço’, sendo assim, fui me servir de afeto e conhecimento em outros locais e contextos.

Claro que, sendo o problema de estrutura, não deixa de existir em qualquer lugar que eu esteja enquanto corpo negro, mas permaneço existindo, resistindo e reexistindo sempre, pois entendo que o meu ‘estar’ possibilita o ‘entrar’ de outras e outros com mais conforto e leveza.”

  • Acreditamos que o racismo vai acabar quando houver mais informação para a sociedade. Confira todas as reportagens especiais produzidas para o Dia da Consciência Negra aqui