Aldir Blanc: da medicina a Dorival Caymmi

“Aldir Blanc é compositor carioca/ É poeta da vida, do amor, da cidade/ É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho/ Traduz a malícia, a graça e a malandragem/ Se sabe de ginga, sabe de samba no pé/ Estamos falando do Ourives do Palavreado/ Estamos falando de poesia verdadeira/ Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”. Estes foram os versos citados por Dorival Caymmi para explicar a relevância do compositor dentro do cancioneiro nacional. Às vésperas de completar 70 anos, Aldir Blanc, um dos gigantes da MPB, segue desfrutando de grande prestígio e notoriedade para a cultura popular brasileira.

Aldir Blanc fala sobre sua trajetória em exclusividade ao Samba em Rede

Nascido em 1946, no Estácio, mudou-se para a casa dos avós maternos no bairro de Vila Isabel ainda aos três anos. Ao longo de sua adolescência, conviveu com o feitiço e personagens populares do bairro, que fizeram parte da memória que ele colocaria em suas letras e crônicas. “Ouvir o nome do Noel, para mim, era como ouvir a palavra de Deus”, revela em exclusividade ao Samba em Rede.

Embora tenha cursado medicina e se especializando em psiquiatria, Blanc dedicou sua vida e obra exclusivamente à música. O artista debutou no cenário musical em meados dos anos 1960 ao integrar grupos amadores de bossa nova como baterista; também fez parte do movimento musical batizado MAU, do qual despontaram jovens artistas como Ivan Lins, Gonzaguinha e Cesar Costa Filho.

“Agnus Sei“ foi a primeira composição conjunta da dupla João Bosco e Aldir Blanc

Em 1970, o samba “Amigo É pra Essas Coisas”- parceria com o amigo Sílvio da Silva Júnior interpretada pelo MPB-4 – arrematou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção. No mesmo ano, conheceu João Bosco, sua mais duradoura parceira, em cujo repertório destacam-se composições como “Bala com Bala”, “O Mestre-Sala dos Mares”, “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, “Caça à Raposa”, “Linha de Passe”, “Da África a Sapucaí” e “O Bêbado e a Equilibrista”. Vale ressaltar que depois de Tom Jobim, a dupla Bosco-Blanc carrega o título de compositores mais gravados pela “maior cantora do Brasil de todos os tempos”, fala de Aldir ao referir-se a Elis Regina.

Dono de uma visão eclética, Blanc realizou parcerias nas quais gêneros musicais aparentemente estanques se relacionam de maneira criativa. De Guinga à Moacyr Luz, o letrista consolida um repertório onde valsas e boleros convivem com sambas, choros e canções brasileiras. “Às vezes, é danado de difícil, mas também acontece de a letra vir feito um furacão em minutos, a ponto de parecer que nem vai dar tempo de colocá-la no papel”, revela quando perguntado sobre o método de composição para músicos de personalidades e formações tão diferentes.

Na entrevista, o músico ainda expõe sua opinião em torno do posicionamento do samba às margens da mídia: “O problema está na execução pública nas rádios e TVs, que é uma catástrofe. Existe uma lei para execução de música brasileira que não é, pra variar, cumprida”. No entanto, fala em tom sutil de esperança ao lembrar de nomes da nova geração como o compositor Moyséis Marques e ainda lembra da tabelinha Moacyr Luz e Samba do Trabalhador como um acontecimento cultural carioca importante para a revelação de novos talentos.

Aldir Blanc recebe homenagem no Rio de Janeiro

O artista foi homenageado com o espetáculo Aldir Blanc 70 anos – Bom de se Ouvir, bom de se Aldir, no Rio de Janeiro. João Bosco, Zé Renato e Leila Pinheiro integraram a programação dos shows no CCBB. “É claro que estou muito feliz, com a sensação do dever cumprido”, releva Aldir.

Hoje, autor de uma obra musical tão diversificada e original, marcada pelo lirismo de suas composições e pela crônica da vida urbana, Aldir possui grande valia dentro da seara musical brasileira. Passados 70 anos, a preocupação do carioca que vive em retiro no bairro da Muda, localizado na zona norte do Rio, é “passar o bastão com integridade”.

Confira a entrevista na íntegra:

Você foi homenageado no show “Aldir 70 anos”, que contou com participações de João Bosco, Leila Pinheiro e Zé Renato. Qual é a importância de ser homenageado em vida? 

São três de nossos maiores artistas me homenageando – e homenageando também os 70 anos do João Bosco. É claro que estou muito feliz, com a sensação do dever cumprido.

Desde jovem, atraído pela poesia, você voltou suas primeiras composições para o samba, ritmo que predominava nos lugares frequentados em sua adolescência: Estácio e Vila Isabel. Existe algum marco em que você enxerga sua opção pelo samba? 

Sim, ser criado em Vila Isabel quando o nome de Noel ressurgia. Na época, ouvir o nome do Noel pra mim, um garoto, era como ouvir a palavra Deus.

Você, Gonzaguinha, Ivan Lins, César Costa Filho e Ronaldo Monteiro fizeram parte do Movimento Artístico Universitário (MAU). O ambiente universitário nos dias de hoje pode ser considerado como um berço forte de produção musical? De onde surgem os novos artistas? 

Não falo sobre o MAU. Também não acompanho o que hoje seria “música jovem”. A bem da verdade, isso não existe. O compositor Moyséis Marques é jovem mas compõe como um veterano.

A parceria com João Bosco, além de render mais de cem composições, também resultou em 28 composições gravadas por Elis Regina. Como era a sua relação com esta intérprete tão marcante para a nossa música nacional?

Devo tudo o que sou à Elis. Era excelente pessoa, a maior cantora do Brasil de todos os tempos.

De João Bosco a Guinga, suas parcerias são marcadas por nomes como Moacyr Luz, Jaime Vignoli, Sueli Costa, Edu Lobo, Lourenço Baeta, Djavan e Ivan Lins. Como é compor para personalidades tão distintas? 

O letrista, colocando, na grande maioria dos casos – ao contrário do que se pensa -, letras nas músicas, sílaba por sílaba correspondendo às notas, precisa quase que adivinhar o que o parceiro gostaria de escrever. Às vezes, é danado de difícil, mas também acontece de a letra vir feito um furacão em minutos, a ponto de parecer que nem vai dar tempo de colocá-la no papel.

Os últimos meses têm sido conturbados: há gente comentando que “no tempo da ditadura militar a vida era melhor”, principalmente no que diz respeito às políticas públicas. Como avalia esses tipos de comentários ainda mais levando em conta que você que foi perseguido e censurado?

São comentários feitos por quem não viveu a ditadura ou por neofascistas que estão em alta. Lamentável. Quem prefere tortura e censura é um idiota.

“O Bêbado e a Equilibrista” tornou-se um hino da Anistia no período da ditadura. A classe artística busca um novo hino para o contexto político contemporâneo; você tem alguma sugestão de trilha que caberia neste contexto político contemporâneo?

Não. O “Bêbado e a Equilibrista” e “Coração de estudante” foram escolhidas espontaneamente.

Como você enxerga o diálogo do samba contemporâneo com a atual conjuntura política? Os representantes da chamada “nova geração” estão se pronunciando ou você sente que falta engajamento? 

Não estou bem a par do que é novo em samba. Sei que o Samba do Trabalhador tem ajudado a revelar novos talentos.

Em geral, o brasileiro valoriza o samba? Você sente que o gênero ainda é vítima de ignorância e enfrenta preconceito? 

O problema está na execução pública nas rádios e TVs, que é uma catástrofe. Existe uma lei para execução de música brasileira que não é, pra variar, cumprida. Há discos e relembro aqui o saudoso Walter Alfaiate com críticas magníficas e execução pública perto de zero, o que é um escândalo.

Enquanto os desfiles das escolas de samba passam engessados pela tela da TV, os blocos de rua não precisam de foguete, raio laser ou fogos de artifício para evoluir e avisar que estão ganhando autonomia nos solos brasileiros. Como tem acontecido em cada novo ato, seja ou não institucionalizado pelo poder público, a multidão segue superlotando as ruas. Até que ponto o debate político pode se estender às festas populares? O Carnaval popular pode ter o mesmo peso das manifestações de rua? 

Quando uma escola de samba vence subvencionada pela mais antiga ditadura africana, o esquema todo está podre. Pode ser que a rua ajude, mas desconfio que não será fácil porque, como se viu recentemente em política, tudo é manipulado. Aproveito para declarar meu desvairado carinho pelo Simpatia é Quase Amor.

O Vasco está há sete meses invicto – 32 jogos sem perder, um recorde do clube – e é o atual campeão carioca. Recentemente, o técnico Jorginho e seu auxiliar Zinho renovaram seus contratos. Tudo isso para dizer que o Vasco “vai bem, obrigado”, apesar de disputar a Série B do Brasileiro. A boa fase contrasta com a idoneidade do presidente do clube?

O Vasco do meu coração não tem nada que ver com o Vasco de Jeurico, o Piranda.

Você é exaltado como “ourives do palavreado” por Dorival Caymmi e um compositor “Bom de ser ler e de se ouvir, bom de se esbaldar de rir, bom de se Aldir” por Chico Buarque. Como você se sente aos – quase – 70?

Como digo junto com João Bosco, e fazemos isso há décadas, minha preocupação é passar o bastão com integridade.

Quais são as composições reveladas por você que mais causam orgulho?

Vou resumir dizendo que amo “O Bêbado e a Equilibrista” porque foi muito maltratada por palhaços metidos a besta.

E qual foi a música mais difícil de compor? Você pode recordar este momento?

A mais difícil foi a mais nova, “Pretinho Básico”, com Moyséis Marques. Meu pai tinha morrido e eu estava com medo de que a fonte secasse, já que ele era fundamental na minha vida. A mais “fácil”, em termos, foi “Escadas da Penha”, com o João, porque eu sonhei e letra inteirinha…

Quais são os seus projetos para este ano?

Conviver com filhas, netos e bisneto ao máximo. O que vier junto é lucro…