Teresa Cristina: ‘Cartola não podia passar pela vida incógnito’

Por: Redação

Com uma bagagem musical que a credencia como uma forte representante da nova geração do samba, Teresa Cristina interpreta composições do mangueirense, em arranjos com sabor original, no espetáculo “Teresa canta Cartola: Um poeta na Mangueira”.

“Acho que fica no ar o porque deste ‘boom’ de homenagens. Afinal, ele é um grande nome da música brasileira e que passou praticamente a vida inteira sem conhecer o que era sucesso, gravou o primeiro disco com praticamente 70 anos”, explica a cantora carioca, que admite ter uma relação afetiva com o legado desse mestre do samba. “A obra dele é tão forte, que ele não podia passar por essa vida incógnito.”

“No momento que vejo o Brasil, acho que é bem legal eu, portelense, estar cantando Mangueira”, diz Teresa

A história deste show começa em abril de 2015, em uma apresentação de meia hora de duração realizada no Real Gabinete de Leitura Português, no centro do Rio. Apesar das dificuldades financeiras, a cantora conta que sua vontade de cantar Cartola a fez prosseguir e, em novembro do ano passado, Teresa apresentou uma versão ampliada do pocket show no Theatro Net Rio e fez o registro do CD e DVD “Teresa Cristina canta Cartola”.

Não bastasse o sucesso imediato de público, o espetáculo chamou a atenção de Caetano Veloso, rendendo a Teresa o convite para fazer a abertura dos shows do baiano no exterior.

Graças à aproximação com o cantor e compositor, a intérprete afirma que vem passando por um processo de amadurecimento enquanto artista. “Ele disse que eu deveria colocar alguma coisa minha no canto e não somente mostrar uma letra e uma melodia correta, mas também uma interpretação onde a música tivesse a minha assinatura”, ressalta a cantora, revelando também que se sente emocionada com a generosidade do baiano com a música brasileira.

Outra novidade neste espetáculo é o formato. Referindo-se a Carlinhos Sete Cordas como “a pessoa perfeita para este show”, Teresa justifica a escolha pelo duo voz e violão de sete cordas devido a sensibilidade e as técnicas de improviso do violonista.

Na entrevista, a cantora ainda expõe sua opinião em torno dos esteriótipos no samba: “Muita gente ainda enxerga pessoas sem recurso, falando alto e que ficam batendo na caixa de fósforo e tomando cerveja o dia inteiro”. E defende: “Esse show mostra que o samba é uma música que pode entrar em qualquer tipo de ambiente. De fato o samba nasceu dessas pessoas mais humildes, mas a música não tem lugar.”

Carlinhos Sete Cordas e Teresa Cristina

Nome familiar entre as plateias da Lapa carioca, Teresa despontou no cenário musical no fim dos anos 1990. Hoje, somando quase 20 anos de carreira, a cantora já foi premiada com o Rival BR e o Prêmio Tim de Música como cantora revelação pelo álbum “A Música de Paulinho da Viola”. Pelo mesmo trabalho, foi indicada ao Grammy Latino de melhor disco de samba de 2003. Anos mais tarde, explorou sua faceta compositora nos CDs “Delicada” e “Melhor Assim”.

Em entrevista concedida ao Samba em Rede antes de subir ao palco do Theatro Net São Paulo – e dias antes de iniciar uma turnê de shows pela Ásia – Teresa falou sobre suas impressões sobre o show em homenagem a Cartola:

A ideia deste espetáculo teve início em uma apresentação no Real Gabinete de Leitura Português no primeiro semestre de 2015. Como foi esse caminhar até a idealização do show “Teresa canta Cartola: um Poeta na Mangueira”?

O show do Cartola foi uma coisa praticamente mágica. Fiz um show de meia hora num lugar lindo que é o Real Gabinete de Leitura Português no Rio de Janeiro. Foi um show que não tinha grana, infraestrutura, então eu tive que levar o som, a luz; e o dinheiro, que já era pouco, foi cada vez diminuindo.

Hoje eu vejo que foi como se fosse um teste porque foi um show quase no amor. O cachê era muito simbólico mas a vontade de cantar Cartola era tanta e a resposta do público foi tão imediata que agora dá para entender como chegou onde chegou. As pessoas adoraram e eu percebi que queria fazer um show maior. Foi marcada uma data e, 40 dias antes, o teatro já estava esgotado. Resolvi fazer uma sessão dupla e gravar.

Acho que hoje eu vendo o tamanho que ele ficou, os lugares que a gente vai passar o show; isso está sendo muito importante para mim e para a minha carreira. Acho que é um lugar onde eu sempre quis estar, eu sempre tive essa vontade de correr o mundo cantando

E este show, em específico, está me colocando em um lugar diferente como intérprete, estou mais segura. Uma segurança que devo também a uma conversa muito importante que eu tive com o Caetano Veloso, antes de fazer da grande estreia no dia 16.

Nós conversamos e ele me deu a impressão dele sobre o meu trabalho, a maneira que eu me comportava no palco, meu gestual, a maneira como eu interpreto as canções, que eu deveria colocar alguma coisa minha no canto e não somente mostrar uma letra e uma melodia correta, mas também uma interpretação onde a música tivesse a minha assinatura. Essa conversa do Caetano e a visão desse grande artista vêm influenciando – e muito- o meu amadurecimento como artista.

Em entrevistas anteriores você conta que a escolha do repertório foi baseada nas músicas que você já sabia cantar. Como foi o processo de pesquisa e o conceito utilizado para a consolidação deste repertório?

Quando eu separei o repertório, um tanto às pressas, para o show de meia hora, eu quis trabalhar com canções que eu já sabia cantar, músicas que estivessem bem amadurecidas.

Depois que passou para uma hora e 15 minutos de show, eu me preocupei em contar as narrativas, música por música. Então tem o Cartola como o pioneiro da Mangueira em “Chega de Demanda”, o primeiro samba que a Mangueira desfilou; tem o “Ao Amanhecer”, que ele cita os Arengueiros, a Ala dos Periquitos da Mangueira; “Alvorada” e “Corre e olhe o Céu”, com o olhar lírico sobre a natureza. Tem o momento whisky envelhecido: é como se você pegasse aquela música e fosse para um cantinho ouvir, que é o “Acontece”, “Sim” e “Peito Vazio”. São músicas muito fortes e que falam de amor de um jeito muito diferenciado.

Tem uma força que eu acho política que permeia a obra do Cartola, quando ele fala da comunidade onde ele mora, quando ele fala do morro, da felicidade que as pessoas sentem ao morar lá, da simplicidade que ele busca, acho que isso tinha que estar no show.

Como eu já conhecia as canções, eu primeiro verifiquei letra, melodia, essas coisas todas, mas eu não quis ficar ouvindo; primeiro, para não botar o espetáculo como uma aura meio cover e eu não quis ouvir outras cantoras e cantores, justamente para não entrar em nenhum modus operandi onde eu estivesse cantando a interpretação de outra pessoa. 

Outra particularidade deste show é o formato bem intimista voz e o violão de Carlinhos Sete Cordas. Por que você escolheu este formato e como você chegou até o Carlos?

Bom, o show de meia hora foi com ele. Quando percebi que ia virar um show grande, eu pensei ‘vou fazer com o Carlinhos porque acho que vai dar samba’. E, nossa, foi ótimo. O Carlinhos é a pessoa perfeita para esse show. Eu sempre paquerei o violão do Carlos. Ele tem uma entrega muito bonita.

E acho incrível que com toda essa atenção que ele deve ter para tocar o violão como ele toca, ele consegue se atentar a detalhes como um verso, ou aquele momento da canção que precisa ser uma coisa mais dramática, mais alegre. Inacreditável como ele tem esse ouvido.

“O show da Teresa Cristina foi a coisa mais linda do mundo, uma das coisas mais lindas que vi ultimamente”, frase de Caetano Veloso sobre sua performance. Como se deu essa aproximação até a consolidação do show de abertura “Caetano apresenta Teresa”?

Bom, isso aí foi uma ideia dele. Ele teve um convite para ir para Lisboa e me convidou para fazer o show de abertura e intitulamos como “Caetano apresenta Teresa”. Além de ser um ato muito generoso, pelo tamanho do Caetano, da importância da obra dele, eu fico muito feliz porque percebo que ele gosta do show.

Ele nos apresentou com muito carinho e estou muito tocada com isso. Agora a gente vai pra Ásia, Coreia, Japão, EUA: tudo isso para mim é um gesto de amor. E acho que um gesto de amor, desse jeito, ele tem que ser retribuído da mesma maneira.

Cartola também está sendo homenageado no musical “Cartola – o Mundo é um Moinho”, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso e na Ocupação Cartola, inaugurada ontem no Itaú Cultural. Como configurar o show “Teresa canta Cartola: Um Poeta na Mangueira” nesse “boom” de homenagens ao bamba?

Olha, vou te dizer: eu estou me sentido a pioneira, viu? (risos) Porque começamos em abril do ano passado e, de lá pra cá, apareceram tantas coisas lindas.

Acho que fica no ar o porquê deste boom de homenagens. Afinal, ele é um grande nome da música brasileira. É um grande exemplo, uma grande voz, um grande compositor e melodista. E que passou praticamente a vida inteira sem conhecer o que era sucesso, foi gravar o primeiro disco com praticamente 70 anos.

O Cartola era de classe média, de Laranjeiras, passou por algum problema de família e foi morar na Mangueira. Na própria Mangueira ele sumiu, por muito tempo ficou sem saber por onde é que andava Cartola e, de repente, ele aparece no meio do povo, tomando conta de carro e o Sérgio Porto vai e o redescobre. Quer dizer, a obra dele é tão forte, que ele não podia passar por essa vida incógnito.

E a gente sabe que no samba isso acontece muito. Muitos compositores não tiveram a sorte que teve o Cartola no fim da vida.

Essa adoração que os bambas nutrem pela obra de Cartola sempre propiciou uma promoção e um resgate extraordinário desta memória. De que maneira esta experiência influencia o seu processo de composição?

Olha, bastante. Eu estou muito mais exigente. Ficar cantando essas melodias do Cartola todo final de semana e depois voltar para o meu trabalho não é fácil! (risos)

Digo ‘ai meu deus, isso está muito fraco; pera aí, preciso burilar um pouco mais’. Tenho certeza que vou tentar ter um pouco mais de cuidado nas próximas composições que eu fizer.  

Além do espetáculo e a turnê internacional, você também está preparando um disco solo de inéditas para este ano. Como você está conseguindo conciliar a agenda e a energia para tudo isso?

Eu simplesmente não estou conciliando. O novo disco ficou para o ano que vem e estou com essa turnê do Cartola para terminar. Acredito que eu deva fazer mais shows aqui no Brasil, já que vamos lançar o CD e o DVD físicos do “Teresa canta Cartola”.

Sobre o meu novo CD, é a primeira vez que faço algo totalmente autoral. Percebo que será diferente: tenho música com o Cesar Mendes, Marisa, Adriana Calcanhotto, Mosquito e Moacyr Luz. Mas ainda estou amarrando tudo isso.

Sabemos que você é portelense de coração. Quando histórias como a “boa mágoa” que a Portela guarda de Paulinho da Viola por conta da música “Sei lá, Mangueira” resultam no que hoje é um dos maiores hinos da agremiação, “Foi um Rio Que Passou em Minha Vida”. Será que isso pode voltar a acontecer com você?

Já fiz muita coisa falando sobre a Portela, mas tenho uma vida inteira pela frente para retribuir esse gesto. E, no momento que eu vejo o Brasil, acho que é bem legal eu, portelense, estar cantando Mangueira.

Essa rixa acontece só no desfile. No dia, o amigo mesmo é o componente da sua escola. Tirando isso, são escolas parceiras, duas das escolas mais tradicionais do Rio de Janeiro; não são rivais à toa. E de fato existiu uma grande amizade entre o Paulo da Portela e o Cartola. Inclusive, essa é uma temática que eu procuro levar ao palco, com canções que citam essa amizade, como o “Vai Amigo”.

Mas uma coisa eu asseguro: nunca fui tão Portela quanto eu sou hoje.

Talento tardio ou amadurecimento na hora certa? Qual é a sua mensagem para aqueles que desacreditam da possibilidade de uma carreira musical?

Acho que amadurecimento na hora certa. Lembro do Argermiro da Portela, que começou a compôr aos 70, o Cartola mesmo, que gravou o primeiro disco aos 77. O samba tem muita gente, então quando comecei a compôr entre os 27 e 30 anos, eu achava que eu estava velha. Mas aí conheci o Argemiro e falou que começou a compôr com 70 anos; aí pensei, ‘pô, estou bem!’.

Eu acho que todo dia é dia de começar alguma coisa. Você mudar a opinião de alguma coisa que você acha, que você tem muita certeza, perdoar alguém que você achava que não ia perdoar nunca mais. Todo dia é um dia de acabar um nunca mais, sabe? O nunca mais deveria existir só para aquilo que não presta, tipo fome e injustiça. Agora, com relação a criação, a gente não pode parar de sonhar nunca!

Eu, aos 27 anos, era estagiária do Detran, fazia licenciamento de veículos e achava que o meu grande sonho na vida já não tinha acontecido porque eu não tinha virado uma jogadora de vôlei. De repente tudo mudou.

Comecei a cantar porque queria cantar Candeia. Levei 15 anos para fazer um show e não consegui o que eu queria. Não consegui patrocínio, não consegui que uma grande marca bancasse a gravação dos discos, não consegui que alguém prestasse atenção e falasse: ‘Vamos investir nesse trabalho porque vai ser legal a gente registrar um trabalho do Candeia’. Não consegui.

Olha como a vida é: hoje estou até abrindo show para o Caetano. Então acho que o mais importante da vida é, não somente dar o primeiro passo, mas procurar tentar não enxergar tão adiante. Deixar o tempo agir, pelo menos, é o que eu venho fazendo.

Em geral, o brasileiro valoriza o samba? Você sente que o gênero ainda é vítima de ignorância e enfrenta preconceito?

A gente chegou ao século 21 com questões do século passado que a gente não resolveu. Não resolvemos o racismo, o machismo, a homofobia, a intolerância, a falta de cultura, a decadência da educação,o sucateamento das universidades. Ou seja, tem muita coisa que a gente fica achando que está bem e estamos num lugar ótimo, mas estamos num lugar bem esquisito.

Muita gente ainda olha para o samba e automaticamente já enxerga pessoas sem recurso, que usam roupa colorida, falam alto e que ficam batendo na caixa de fósforo e tomando cerveja o dia inteiro. Esse show com a obra do Cartola mostra que o samba é uma música que pode entrar em qualquer tipo de ambiente. De fato o samba nasceu dessas pessoas mais humildes, mas a música, ela não tem lugar.

Esse tipo de olhar aprisiona. Talvez o que seja preciso é que o assunto venha à tona mesmo. Que bom estarmos vendo tantas iniciativas como o musical e a ocupação. As pessoas precisam ter acesso a história e ao legado de tantos nomes da nossa cultura. É muito importante que isso aconteça.

Para acabar. Você consegue resumir em uma palavra ou uma frase esta experiência até então?

O samba é uma música que tem uma força de ancestralidade muito grande e é por isso que ele atravessou séculos. É uma coisa de ancestral. Tem o antes no samba. É esse passado que faz o samba ser tão bom hoje.

Força de ancestral a gente tem que levar com verdade e com coragem. Verdade e coragem. As coisas pra mim nunca foram fáceis, nunca tive nada fácil na vida. Até o time que eu torço não anda tendo muita facilidade; ele está líder e eu estou desesperada.

Mas eu acho que o samba tem essa força extra porque ao mesmo tempo que você sofre para divulgar e para fazer, na hora de cantar samba você é feliz, mesmo cantando um samba triste.

Confira Teresa interpretando a música “Acontece”, do álbum “Teresa canta Cartola”, gravado no Theatro Net Rio :

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