‘O que importa não está no DNA’: a trajetória de duas futuras mães e a espera pela adoção

Em meio à espera por um filho, Thamires e Marilene falam sobre os desafios da adoção, o preconceito e o poder da rede de apoio

23/05/2025 09:46

Num país em que mais de 35 mil pretendentes aguardam na fila da adoção e pouco mais de 5 mil crianças estão oficialmente disponíveis, os caminhos até a maternidade são longos, tortuosos, mas também repletos de amor e esperança. É nesse cenário que Thamires Borges Miranda Rodrigues, 27 anos, e Marilene Rodrigues Borges Miranda, 32, constroem, dia após dia, o sonho de serem mães.

Moradoras de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, as duas decidiram transformar o desejo de formar uma família em realidade. Enquanto a burocracia avança, o coração se ocupa em preparar o espaço — físico e emocional — para receber aquele que será, um dia, seu filho ou filha.

Neste relato, que se cruza com o Dia Nacional da Adoção, celebrado em 25 de maio, elas revelam os bastidores de uma escolha que, embora cercada de amor, ainda é alvo de preconceitos e de muitas dúvidas da sociedade.

‘O que importa não está no DNA’: a trajetória de duas futuras mães e a espera pela adoção
‘O que importa não está no DNA’: a trajetória de duas futuras mães e a espera pela adoção - Arquivo pessoal

Onde nasce o desejo de ser mãe?

Para Thamires e Marilene, a decisão de adotar não surgiu por acaso. “Desde o início, nosso maior desejo sempre foi formar uma família, independentemente do caminho”, compartilha Thamires, em entrevista à Catraca Livre. No começo, no entanto, acreditavam que seria necessário ter uma condição financeira muito elevada para se habilitar no processo de adoção — uma ideia que logo descobriram ser equivocada.

Quando entenderam que a legislação brasileira não exige riqueza, mas sim estabilidade, responsabilidade e afeto, a adoção deixou de ser um sonho distante para se tornar um projeto concreto de vida. Marilene, que também concedeu entrevista à Catraca Livre, explica que essa vontade foi amadurecendo aos poucos: “Uma de nós já trazia o sonho de ser mãe, enquanto a outra foi alimentando essa vontade durante o nosso relacionamento.”

Primeiros passos: quando o amor esbarra na burocracia

Se o desejo de ser mãe foi natural, o início do processo de adoção, por outro lado, trouxe desafios inesperados. “Fomos ao Fórum levando toda a documentação, mas lá descobrimos que tudo era feito online, por e-mail. Saímos de lá frustradas, porque não tínhamos essa informação”, relembra Thamires.

A falta de orientação adequada fez com que buscassem respostas nas redes sociais, em perfis de famílias que já haviam passado por essa jornada. Embora tenha ajudado, essa busca não foi suficiente para sanar todas as dúvidas. “Acabamos indo ao Fórum com documentos incompletos, sem saber de todas as exigências”, completa.

Thamires e Marilene preparam o lar e o coração para a chegada do filho tão esperado pela adoção.
Thamires e Marilene preparam o lar e o coração para a chegada do filho tão esperado pela adoção. - Arquivo pessoal

A jornada da habilitação: mais que papéis, reflexões

O processo de habilitação vai muito além de papelada. Ele é, sobretudo, uma imersão profunda em reflexões sobre o que é ser mãe, ser família e como acolher uma criança que chega de uma história muitas vezes marcada por rupturas.

Marilene detalha que essa etapa inclui entrega de documentos, cursos preparatórios e entrevistas com psicólogos e assistentes sociais. “A psicóloga quis entender nossa história, nossa relação como casal e as motivações para adotar”, relata. Já a assistente social focou mais nas condições financeiras, na estrutura do lar e na compreensão do que realmente significa adoção.

Uma das etapas mais delicadas foi a visita domiciliar, onde avaliaram desde a segurança da casa até a dinâmica afetiva do lar. Embora normalmente sejam feitas duas entrevistas, elas passaram por três. “A assistente social entendeu que precisávamos refletir mais sobre a maternidade, se estávamos, de fato, com uma visão realista do que é ser mãe”, explica Marilene. Foi nesse momento que decidiram ajustar o perfil da criança desejada, tornando o processo mais alinhado com seus desejos e possibilidades.

Como funciona a fila de adoção no Brasil?

Muita gente imagina que a fila de adoção funcione de forma estritamente cronológica, como quem pega uma senha e aguarda ser chamado. Na prática, não é bem assim. “Tudo depende do perfil da criança que os pretendentes estão dispostos a acolher”, explica Thamires.

Se o casal aceita adotar grupos de irmãos, crianças mais velhas ou com algum tipo de deficiência, o tempo de espera pode ser bem menor. Por outro lado, quem busca perfis mais concorridos, como bebês de até dois anos e saudáveis, pode aguardar por anos.

No caso delas, o perfil definido foi de uma criança entre 0 e 2 anos, aceitando doenças tratáveis, sem preferência por sexo ou cor. “A fila avança, para, volta… já teve mês que andou quatro posições, em outros ficou estagnada ou até regrediu. Isso acontece quando algum casal pausa o processo ou quando uma vinculação não dá certo”, explica.

Essa dinâmica não é incomum. Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revelam que, enquanto existem cerca de 35 mil pretendentes cadastrados, há pouco mais de 5 mil crianças disponíveis para adoção no Brasil. A grande maioria dessas crianças são adolescentes, principalmente entre 10 e 14 anos. Além disso, aproximadamente 972 delas possuem alguma condição de saúde, e 1.185 apresentam algum tipo de deficiência — perfis que, infelizmente, costumam ser menos procurados.

O tempo de espera também varia bastante. Quando o perfil dos adotantes é mais flexível e alinhado com o que o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza, a adoção pode ser concluída em cerca de um ano. No entanto, se surgirem entraves no caminho, o processo pode se estender por três anos e meio, em média.

Amor que nasce na espera: a história de Thamires e Marilene, que constroem sua família através da adoção.
Amor que nasce na espera: a história de Thamires e Marilene, que constroem sua família através da adoção. - Arquivo pessoal

Adoção homoafetiva

O caminho da adoção no Brasil, especialmente para casais homoafetivos, vem sendo trilhado com avanços importantes, mas também não sem obstáculos. “No nosso processo, não sentimos que ser um casal homoafetivo tenha interferido diretamente”, conta Thamires. No entanto, percebem, vez ou outra, olhares enviesados, dúvidas e comentários que refletem uma visão social ainda presa a modelos tradicionais de família.

Apesar dos desafios, os números mostram que a realidade vem mudando. Entre 2021 e 2023, mais de 50 mil crianças foram registradas no Brasil por casais homoafetivos, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-BR). Ainda assim, os desafios não são apenas jurídicos — muitos deles estão na aceitação social, na quebra de preconceitos e na desconstrução de estigmas.

A espera que também é gestação

Se a gravidez biológica se mede em meses, a gestação pela adoção é contada em esperança. “A preparação emocional é, sem dúvida, a parte mais difícil”, revela Marilene. A ansiedade e as incertezas tornam a espera uma montanha-russa de emoções. “Ao mesmo tempo que queremos que esse momento chegue logo, também sentimos medo, aquele frio na barriga de pensar como será quando nosso bebê chegar.”

Para tornar essa espera mais palpável, as duas investem tempo na montagem do quartinho, fazem terapia e encontram na rotina — como ir à academia — um jeito de não se perderem na ansiedade.

A definição do perfil da criança também reflete esse desejo de viver, intensamente, a primeira infância. “Queremos, na nossa próxima renovação, reduzir para 0 a 1 ano, porque nosso sonho é viver a fase do bebê, o choro, a troca de fraldas, os primeiros passos”, compartilha Thamires.

Na construção da maternidade pela adoção, Thamires e Marilene vivem a força da espera.
Na construção da maternidade pela adoção, Thamires e Marilene vivem a força da espera. - Arquivo pessoal

Lições que só a adoção ensina

O maior aprendizado, segundo elas, foi entender que o tempo não obedece à vontade. “A paciência foi, sem dúvida, a maior lição”, afirma Marilene. Além disso, a jornada revelou que a adoção não transforma apenas a vida da criança, mas também dos futuros pais.

Houve, sim, momentos de desânimo, de se questionarem se valia a pena continuar. “Pensamos em desistir, parecia que o sonho nunca seria alcançado”, admite Thamires. Mas nesses momentos, o que as sustentou foi o amor que as une e a lembrança do motivo que as fez começar.

Buscaram, também, amparo em outras famílias, especialmente casais homoafetivos que estão no mesmo processo. “Essas trocas são fundamentais. Só quem passa por isso entende exatamente o que sentimos”, reforça Marilene.

O dia que mora no coração

Se hoje a casa ainda ecoa o silêncio da espera, no coração delas já mora um som imaginado: o riso, o choro e os passos de quem, um dia, vai preencher aquele lar. “Sempre imaginamos como será o dia do encontro. Só de pensar, já nos emocionamos”, conta Thamires. “O frio na barriga, a ansiedade, o primeiro olhar, o primeiro abraço… é algo que nos enche de expectativa.”

Entre desafios e sonhos, elas mostram que o amor não depende de laços biológicos.
Entre desafios e sonhos, elas mostram que o amor não depende de laços biológicos. - Arquivo pessoal

Como adotar no Brasil: passo a passo

O processo de adoção é gratuito e deve ser iniciado na Vara de Infância e Juventude mais próxima de sua residência. A idade mínima para se habilitar à adoção é 18 anos, independentemente do estado civil, desde que seja respeitada a diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança a ser acolhida.

Os principais passos incluem:

  • Pré-cadastro no portal SNA – CNJ: Realizar o pré-cadastro no portal do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).
  • Requerimento e documentação: Procurar a Vara da Infância e da Juventude da cidade para preencher requerimento específico e entregar a documentação necessária.
  • Curso de preparação: Participar do curso de preparação psicossocial e jurídico para a adoção oferecido pelo Poder Judiciário.
  • Avaliação psicossocial: Participar das entrevistas realizadas pela equipe técnica do Fórum e receber a visita da equipe técnica na residência.
  • Sentença de Habilitação: Após a avaliação, aguardar a sentença de habilitação e inclusão dos pretendentes no SNA.
  • Para mais informações, acesse o Portal do CNJ.

Uma mensagem para quem sonha com a adoção

Para quem ainda tem dúvidas, medos ou inseguranças, Thamires deixa um recado direto e cheio de amor: “Deixem o preconceito de lado. O que importa não está no DNA, mas no amor, na educação e no cuidado que podemos oferecer.”

A adoção no Brasil ainda enfrenta desafios. Embora o tempo médio de espera, quando tudo corre bem, possa ser de cerca de um ano, esse prazo pode se estender para três anos e meio quando há entraves no processo.