O samba na ponta dos dedos de Ubirany

Percussionista do Fundo de Quintal conta como criou o repique de mão e revela os segredos para quem quer tocar o instrumento

Rachel Sciré especial para o Samba em Rede

Ubirany concede entrevista exclusiva ao Samba em Rede
Ubirany concede entrevista exclusiva ao Samba em Rede

O Fundo de Quintal já cantou que o samba tem o poder de curar. Se o ritmo é ou não o melhor remédio, Ubirany, um dos fundadores do grupo, não sabe afirmar mas, do alto de seus 76 anos e depois de dois shows na mesma noite, garante que está com um pique legal e que não há nada mais gostoso no mundo do que fazer samba.

O inventor do repique de mão conversou com exclusividade com o Samba em Rede e o Bloco Chinelo de Dedo para falar sobre a criação do instrumento, um clássico nas rodas de samba. Ele também dá dicas para quem quer tocar o instrumento e comenta o legado do Fundo de Quintal para o gênero.

Confira a seguir:

Qual o panorama da música brasileira na época em que o Fundo de Quintal surgiu? O samba estava em baixa?

O samba sempre existiu, mas naquele período não vivia um momento muito feliz, com poucos representantes como Martinho da Vila e Beth Carvalho. O sambista era relegado a um plano inferior – não se via sambista vivendo como compositor ou instrumentista, era um privilégio de alguns. Nos fundos de quintais dos nossos amigos e no Cacique de Ramos sempre rolava um samba e nós simplesmente brincávamos com nossos instrumentos, sem a pretensão de algo profissional. Acabamos realizando um verdadeiro movimento dentro do samba, inaugurando uma forma de compor e tocar o gênero.

Como era a formação dos grupos de samba antes de vocês?

Era a fórmula antiga: surdo, agogô, reco-reco, tamborim. Nós viemos com o tantã, responsável pela marcação e introduzido nas rodas pelo Sereno, com o repique de mão, instrumento que eu criei, com o banjo, trazido pelo Almir Guineto e utilizado de uma forma muito marcante. Mesmo com os novos instrumentos e composições, procuramos respeitar o samba tradicional. Depois do nosso primeiro trabalho, outros grupos passaram a seguir as nossas características e o samba foi mais valorizado também.

Como o tantã e o repique foram incorporados às rodas de samba?

O Sereno via o pessoal daqueles grupos antigos, como Quatro Ases e Um Coringa, tocando tantã. Ele trouxe o instrumento para o samba com uma batida criada por ele, um tempo forte diferente do tempo marcado pelo surdo. Eu cheguei com o repique de mão depois, mas ele foi colocado dentro dessa marcação do tantã, o que explica esse casamento feliz dos dois instrumentos. São toque complementares: o tantã marca e o repique suinga em cima da marcação.

O repique de mão surgiu a partir de uma brincadeira na casa do Sereno; nossas famílias eram muitas festivas e sempre rolava um samba. Nessa ocasião, eu estava tocando num balde – porque a gente tocava em qualquer coisa: queríamos era fazer um som mesmo. O irmão do Sereno, Edson, que era baterista, pegou um tom-tom da bateria e me deu para batucar com mão. Eu gostei e todo mundo adorou, tanto que o Edson me deu aquele instrumento e eu andava com ele por aí, levava em todo pagode. Certa vez, cheguei numa festa sem o tom-tom e me deram um repinique de escola de samba. Quando comecei a tocar, senti que ele era mais leve, mas precisava ser aprimorado. Foi um processo lento, peguei um repinique do Cacique de Ramos e tirei a pele de um dos lados para que o som não ficasse preso ou abafado. Aí surgiu a questão de machucar a mão no aro do instrumento, que resolvi rebaixar. Ainda sentia o som sem nitidez, com sobras, então passamos a colocar aquelas travas de madeira que não são nada mais do que abafadores, que ajudam a produzir um som mais limpo. Assim foi criado esse instrumento que está aí até hoje, sem que eu tivesse pensado em qualquer tipo de patente. A maior gratificação mesmo é ver todo mundo curtindo.

Então você já procurava um som específico?

Eu via o Dotô (percussionista que criou o repique de anel) tocando e gostava muito, mas a criação do repique de mão foi casual, não pesquisei para chegar naquilo. O que me motivou foi o som que eu tirei, tanto que a levada do Dotô no repique de anel é totalmente diferente da minha levada no repique de mão. Cheguei a fazer algumas gravações com ele; nós nos curtíamos, mas ele era sempre muito cuidadoso com o instrumento e não gostava de mostrar para ninguém (durante as gravações, tocava escondido em um box e assim que acabava guardava tudo). Era o jeitão dele, mas ele era bacana e fazia um som muito gostoso.

Como você criou a levada? Quando começou, no tom-tom da bateria, já era tocada dessa maneira?

A levada não foi pensada, surgiu espontaneamente, ao acompanhar o tantã do Sereno, e se encaixou totalmente naquilo que se diz ser o samba tradicional. No início, era mais quadrada, depois surgiram variações. Existe uma levada muito característica que o pessoal costuma fazer, mas o repique de mão te dá recursos para suingar à vontade; é possível diversificar de acordo com o que estiver acontecendo no decorrer da música, desde que se respeite o ritmo. Como dizia Beth Carvalho, o repique de mão é um instrumento muito gostoso e importante, mas precisa ser bem tocado. Tanto que ela ficou sem repique no grupo depois que eu parei de tocar. Foi quando indiquei o Marcelinho Moreira, que na época ainda era menor (devia estar com 16 ou 17 anos), e tive até que pedir autorização aos pais dele, pois logo na primeira investida havia uma viagem para o exterior.

As paradas ou chamadas no começo da música – que uns copiam, outros criam – também são muito marcantes no instrumento. Cada um tem o seu jeito de fazer, mas a chamada é tradicional e dá a deixa para os outros instrumentos entrarem.

A repicada é o mais difícil de fazer. Você tem alguma dica para quem está começando a tocar?

O repique de mão é um instrumento para se tocar levemente, com os dedos. Quando me contam que batem no repique, eu retruco: não bata que ele não merece! Toco da maneira que criei desde o início dos anos 1970 e não tenho um calo na mão. O segredo da repicada é a ponta do dedo.

O repique não vai acompanhar o som de um surdo ou pandeiro, que ainda têm sobras. Por isso, ao passar o som, num show ou estúdio, ele exige um volume mais alto, para chegar a um equilíbrio.

Você fez as adaptações sozinho para chegar ao repique ou teve ajuda de alguém?

Eu tive as primeiras ideias, mas fui ajudado pelo Edmar e o Russo, da Art Celsior. Quando eu dizia que estava machucando, por exemplo, eles fizeram as mudanças no aro. Foram também os fabricantes iniciais do instrumento, vendendo-o para o Brasil e o mundo.

Depois de você, quais foram os primeiros músicos que adotaram o instrumento?

Foi o Esguleba, meu parceirinho, irmão de instrumento. Mas ele é muito versátil, toca todos os instrumentos de percussão. Também teve o Marcelinho Moreira, garoto por quem tenho muito respeito, meu irmão, Jorge Miranda, o Marcelo, de Niterói, um time aí que curte o repique e me ajudou nessa fase inicial, introduzindo o instrumento por onde tocavam. Hoje está todo mundo trabalhando e sobrevivendo da música.

Como foi a primeira gravação no estúdio com esses instrumentos novos?

Nossa primeira experiência profissional foi com a Beth Carvalho, para o disco “De Pé no Chão” (1978), cuja música de sucesso foi “Vou Festejar”, de Jorge Aragão, Neoci e Dida. A Beth chegou no Cacique, viu o que acontecia lá e percebeu que se tratava de um movimento na música popular brasileira, em especial, no samba. Ela levou o Rildo Hora, seu produtor, para conhecer nosso som e, como ele gostou, fomos convidados a participar da escolha das músicas e do disco. No estúdio, no momento da equalização e da passagem de som de cada instrumento, o Rildo ficou preocupado: cada um tocava de um jeito. Ele imaginou que seria uma confusão ao juntar tudo, mas qual não foi a surpresa, depois de fazer a contagem, pois aqueles instrumentos que pareciam tão divorciados tinham um casamento feliz. Depois disso, gravamos mais um disco com a Beth, “No Pagode” (1979), que tinha “Coisinha do Pai”, de Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos e, em 1980, nosso primeiro trabalho autoral. Ficamos muito felizes quando falamos da Beth e do Rildo Hora, pois são pessoas de grande importância em nossa carreira.

O que vocês fizeram foi tão diferente que se tornou uma escola dentro do samba. Hoje vocês enxergam algo tão inovador assim?

Na música, a tendência é sempre que as pessoas criem, inventem novas formas de tocar ou de compor, mas acho que uma das razões da permanência do Fundo de Quintal é a fidelidade à nossa ideologia musical, que é o samba tradicional, o que curtimos e o que aprendemos com Candeia e Cartola, por exemplo. Vemos mudanças, não temos nada contra quem faz um samba mais romântico, como em São Paulo; o importante é que cada um faça samba do jeito que gosta e quer – pelo menos, está se tocando e cantando samba, o que é bem melhor do que os enlatados que existem por aí. Ficamos felizes em ver a garotada buscando seu caminho e fazendo sucesso, mas não abrimos mão do nosso jeito de tocar, de dançar, de sambar e de compor; somos muito fiéis a isso.

Quando vocês começaram, como foi a recepção por parte dos sambistas da época?

Na época, a percussão era feita por três grandes nomes, que nós reverenciávamos e respeitávamos muito: Luna, Eliseu e Marçal. Depois que a Beth Carvalho nos apresentou para o mundo do samba, eles nos receberam bem – o Marçal disse que não havíamos surgido à toa e que vínhamos para ficar. Não éramos crianças, apesar de começarmos com uma brincadeira, cada um já tinha por volta de 40 anos quando surgiu o Fundo de Quintal; por isso agora, quando completamos 40 anos de samba, já estamos todos cascudinhos, mas queremos que Deus nos dê saúde para continuar levando essa bandeira adiante.

No Bloco Chinelo de Dedo, você pode aprender a tocar repique de mão e outros instrumentos de samba de raiz e participar de uma grande roda de samba! Para saber mais, acesse aqui.