‘Primeiro eu entrei em negação’: a trajetória de uma mãe atípica que recebeu o diagnóstico tardio de autismo
A história de uma mãe que só se compreendeu ao entender os filhos, e os desafios do diagnóstico tardio sob a lente de uma especialista em neurodivergência
Durante anos, Vanessa Ziotti atravessou a vida como quem tenta montar um quebra-cabeça sem saber qual imagem deve se formar. Advogada, professora, palestrante e mãe de trigêmeos autistas, ela passou boa parte da juventude lidando com diagnósticos fragmentados: depressão, ansiedade, transtorno alimentar. Mas foi apenas aos 33 anos, após seus filhos receberem o diagnóstico de autismo, que a peça central finalmente se encaixou.
“Primeiro eu entrei em negação e achei que eu tinha mentido para a pessoa que me avaliou”, relembra ela, em entrevista exclusiva à Catraca Livre para o especial de Abril Azul, em conscientização ao autismo.
“Acredito que o diagnóstico foi muito libertador para mim para que eu me acolhesse da mesma forma que eu acolhi os meus meninos e tantas outras pessoas.”
A trajetória de Vanessa revela mais que um diagnóstico tardio — é uma história de resistência silenciosa. Por muito tempo, ela sobreviveu sem suporte adequado. “Como eu também fui diagnosticada com altas habilidades e superdotação, a hipótese da profissional que me avaliou e da minha médica é que as altas habilidades tenham sustentado as dificuldades por esses anos todos.”
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Hoje, com novas lentes sobre si mesma e sobre o mundo, ela vive também uma guinada profissional. “Sou advogada especialista em Direito da Pessoa com Deficiência, faço parte da Comissão da Pessoa com Deficiência da OAB do Estado de São Paulo, sou professora na pós-graduação da PUC-SP, do Damásio Educacional e do Albert Einstein.”
Com o tempo — e o tratamento certo — veio o alívio. “Com o diagnóstico, eu tive acesso a um tratamento adequado, a terapia adequada que me deram ferramentas para lidar com muitas coisas que eu não tinha ferramentas antes.”

Vivência e escolhas
Para Vanessa, mais do que a idade, é a vivência que molda a forma como se lida com o autismo na vida adulta.
“Quando você vive com autismo e tem filhos autistas que têm um nível de suporte maior que o seu, você aprende a escolher as suas batalhas.”
Essa experiência também a fez desenvolver um olhar mais empático. “Você tende a olhar o outro de uma forma a não julgar em um primeiro momento, a ser acolhedor, porque você nunca sabe o que está acontecendo dentro daquela casa.”
Máscaras, espelhos e sobrevivência
Adaptar-se ao mundo neurotípico exigiu de Vanessa a construção de estratégias próprias, moldadas à base de observação e sobrevivência. “Na escola não entendia nada de exatas… Então, como eu tenho memória visual, comecei a decorar. Decorava a página do livro onde estava a fórmula.” Nos relacionamentos sociais, copiava gestos e estilos de colegas populares para se encaixar. “Usei o cabelo liso e loiro por muitos anos, e meu cabelo é cacheado e preto.”
O mundo do trabalho não foi menos desafiador. Vanessa sentia uma barreira invisível, especialmente com superiores hierárquicos. “Eu tinha muita dificuldade de lidar com injustiça e com pessoas que eu entendia que não tinham capacidade para estar onde estavam.”
Hoje, no entanto, vive um cenário diferente: “Trabalho no gabinete da deputada Andréa Werner, na Assembleia Legislativa de São Paulo… o que me agrega não somente uma sensação de pertencimento, mas a não ter medo de ser julgada por ser quem eu sou.”
Para enfrentar reuniões, entrevistas ou audiências, ensaia na frente do espelho, antecipa cenários e ativa o que chama de “modo CNPJ” — um personagem funcional. Mas tudo isso cobra um preço alto. “Chego a sentir febre, dor no corpo. A solicitação da bateria social ou do masking é muito alta.”

Um abraço na Vanessa do passado
Com o tempo, Vanessa reencontrou a si mesma e reformulou suas relações. “Hoje a maioria das minhas amigas e amigos são neurodivergentes ou pais de pessoas neurodivergentes. Eu me sinto muito mais à vontade e acolhida.” Emociona-se ao imaginar o que diria para sua versão mais jovem: “Eu gostaria de voltar no tempo e dar um abraço na Vanessa do passado e dizer que ‘isso vai passar, a gente vai conseguir’.”
A maior transformação, no entanto, aconteceu na forma de se relacionar com os outros — e com seus próprios limites. “Sempre tive muita dificuldade de falar não e da rejeição que viria em seguida. Então muitas vezes eu disse: ‘sim, vamos’, e na verdade eu não queria ir.”
Hoje, reconhece o que é necessidade real: “Não é preguiça, não é frescura, são sim questões que me afetam, questões sensoriais e de socialização.” E, com apoio, aprendeu a impor limites com segurança: “Hoje tem um ciclo de pessoas em que eu confio plenamente para me expor dessa forma.”
Para outras pessoas que estão em fase de diagnóstico ou adaptação, o recado de Vanessa é de acolhimento e rede: “Sinta meu abraço, sinta-se acolhido(a), busque uma rede de apoio de autistas adultos também para você conversar, trocar ideias.”
Ela cita o perfil Octo PcD como uma referência importante nesse processo. E deixa um lembrete: “O diagnóstico não é um fim, ele é só o começo, ele é resposta para muitas coisas e ponto de partida para a gente começar a melhorar… entender o diagnóstico como um espelho, entender onde que você começa.”
A palavra da especialista: quando o diagnóstico chega tarde
A neuropsicóloga e psicóloga cognitivo-comportamental Helena Cubero acompanha de perto os impactos do diagnóstico tardio em adultos autistas. Segundo ela, a descoberta pode ser um divisor de águas.
“Para muitos, pode trazer alívio… para outros, acaba despertando diversas emoções.”
A sensação mais comum relatada pelos pacientes é justamente essa: alívio. “Como muitos deles se sentiram deslocados, estranhos, diferentes, o diagnóstico acaba dando um novo sentido à vida.” Mas nem sempre é simples. Há também o que Helena chama de “sensação de luto”. “Alguns costumam se perguntar ‘e se eu soubesse disso antes?’”
Com o diagnóstico, vêm lembranças antigas — de bullying, de não pertencimento — e também transformações nas relações interpessoais. “Muitos pacientes mencionam que depois que revelam o diagnóstico percebem que as relações mudaram para melhor… mas nem todos têm a mesma sorte.”
Para os que não encontram acolhimento no círculo próximo, buscar comunidades neurodivergentes pode ser essencial. “É transformador, reconfortante saber que não são únicos.”

O preço do mascaramento
Helena explica que o uso de “máscaras sociais”, conhecido como masking, é frequente entre autistas adultos. Envolve gestos como forçar contato visual, ensaiar falas, suprimir estereotipias e até esconder interesses pessoais. Tudo para se adaptar.
Mas isso tem um custo alto: “Sobrecarga sensorial, crises, exaustão emocional, depressão e ansiedade.” Muitos relatam “sensação de perda de identidade” por mascarar durante tanto tempo.
No trabalho e na vida: adaptar o ambiente também é necessário
O ambiente de trabalho é outro ponto crítico. Os desafios vão desde a sobrecarga sensorial até a comunicação ambígua e mudanças repentinas. “Reforço que, apesar de não ser obrigatório, é essencial comunicar o diagnóstico no trabalho para que haja mais compreensão.”
Entre as estratégias terapêuticas estão: terapia especializada, regulação sensorial, técnicas de autorregulação e psicoeducação. Mas Helena ressalta: “O ambiente de trabalho também precisa se adaptar… com flexibilidade de horários, espaços tranquilos, pausas e comunicação clara.”
No campo afetivo, os desafios são semelhantes: dificuldade em interpretar sinais sociais, lidar com imprevisibilidade e enfrentar estímulos intensos. A terapia ajuda com treino de habilidades sociais, psicoeducação e regulação emocional.

Muito além do diagnóstico
A prevalência de ansiedade e depressão entre autistas adultos é elevada — não por causa do autismo em si, mas pelas experiências de exclusão vividas. “Bullying, invalidação e rejeição… são traumas acumulados.” A ausência de diagnóstico adequado também contribui para baixa autoestima.
Helena reforça o papel central da terapia: “É uma ferramenta poderosa no processo de aceitação da identidade autista.” A proposta não é forçar o encaixe em padrões neurotípicos, mas promover autoconhecimento, autorregulação e qualidade de vida.
“Não adianta apenas saber sobre a neurodivergência. É preciso reconhecê-la como parte da diversidade humana”, afirma a psicóloga.
Isso significa deixar de esperar que o autista se adapte ao mundo — e começar a transformar o mundo para que ele possa, de fato, acolher todas as formas de ser.