Variante brasileira (P.1): o que precisamos saber sobre essa cepa
Nova cepa que surgiu em Manaus e tem causado pânico internacional possui uma carga viral mais alta se comparada às outras
Hospitais lotados, pacientes morrendo por falta de leitos de UTI e recordes diários de mortes por covid-19. Essa junção de fatores levou ao maior colapso sanitário e hospitalar da história do país, segundo a Fiocruz. E o que explica esse aumento vertigionoso no número de casos? Segundo os especialistas, o cenário é fruto de alguns fatores: relaxamento das medidas preventivas por parte da população, política de sabotagem às medidas sanitárias por parte do governo, vacinação lenta e a circulação da variante brasileira do novo coronavírus.
Esse último fator é acompanhado com atenção pelos cientistas brasileiros e de fora do país. Um estudo recente feito pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade de Oxford sugere que essa nova cepa se espalharia mais rapidamente, inclusive entre quem já pegou covid-19 e, portanto, desenvolveu anticorpos.
A P.1, como foi nomeada, foi detectada pela primeira vez em janeiro, no Japão, em viajantes que estiveram em Manaus durante a primeira onda epidêmica do estado. As investigações confirmaram que tratava-se de uma variante de origem amazônica, que hoje é prevalente no estado.
O virologista e pesquisador Felipe Naveca, que pertence à equipe da Fiocruz Amazônia que descobriu a primeira reinfecção pela nova linhagem P.1 do coronavírus, tem feito a vigilância genômica dessa cepa no Amazonas desde o seu surgimento.
Segundo ele, a variante brasileira, assim como as linhagens descobertas no Reino Unido e na África do Sul, possui alterações genéticas significativas na proteína skipe que se liga aos receptores do corpo humano.
“A P.1 possui três mutações-chave iguais a da África do Sul e, por conta dessa característica, a OMS já classificou com uma variante de preocupação”, explica Naveca.
O poder da variante brasileira
Se essa variante implica em sintomas mais graves da covid-19 é difícil de responder, segundo o pesquisador. Porém, estudos conduzidos por ele até agora mostram que a P.1 possui uma carga viral maior, se comparada às outras.
“Carga viral não significa doença mais grave. Inclusive o primeiro caso que era assintomático tinha uma carga viral altíssima. Então, não significa doença mais grave, mas que a transmissão é facilitada. Quanto mais vírus a pessoa está expelindo mais chances da outra pessoa ser infectada. Então, a gente acredita que seja uma das respostas de por que a P.1 se espalha tanto”, explica Felipe Naveca.
Para se ter uma ideia, a presença dessa variante nas amostras sequenciadas no Amazonas saltou de 51% em dezembro, para 91% até a primeira quinzena de janeiro de 2021.
Além de estar associada ao colapso do sistema de saúde do Amazonas, a nova cepa já forçou cidades como Araraquara, no interior paulista, a decretar o fechamento do comércio não essencial. Por lá, a P.1 predomina entre os casos de covid-19, segundo observou um estudo do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP).
Até o momento, a variante brasileira já foi identificada em pelo menos 17 estados brasileiros, segundo o Ministério da Saúde, e em 30 países, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mutações de vírus são comuns e os especialistas explicam que quanto mais um ele circula livremente em uma população, mais ele se replica e mais oportunidades ele tem de sofrer mudanças. Por isso, é necessário constante vigilância e não baixar a guarda diante do vírus.
“Se a gente não cortar a transmissão do vírus o mais rápido possível, seja por vacina que está ainda devagar, ou com as medidas de restrição, as chances de surgirem outras variantes existem. A gente está agora vendo duas variantes de preocupação surgirem nos EUA, na Califórnia, e em Nova York. Então, enquanto o vírus circular em grande quantidade esse risco continuará existindo”, alerta Naveca.
Se existe uma notícia boa em meio à isso tudo, é sobre as vacinas. Estudos preliminares mostram que a CoronaVac e as vacinas de Oxford e da Pizer possuem eficácia contra a variante brasileira. Os estudos ainda precisam passar pela revisão de outros cientistas antes de ser publicados.
Leia abaixo a entrevista com o virologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia, Dr. Felipe Naveca:
Catraca Livre – Qual o papel dessa variante brasileira na explosão de casos atual no país?
Felipe Naveca – Em Araraquara, que foi confirmada a circulação local de P.1, certamente ela é a principal. Em um estudo que nós fizemos em parceria com as centrais analíticas da Fiocruz, que são grandes laboratórios de testagem diagnósticas no Ceará, Rio de Janeiro e Paraná e processam milhares de amostras, nós analisamos mais de 6 mil amostras de 8 estados e detectamos a presença de uma das três em percentuais mais elevados em alguns lugares, principalmente no Sul e no Ceará. Do Ceará, a gente tem dados iniciais de sequenciamento e a grande maioria é a P.1.
Catraca Livre – Quais as características que fazem essa variante despertar tanta preocupação mundial? No que ela difere da outras?
Felipe Naveca – A primeira variante que foi descoberta foi a britânica. Ela começou a chamar atenção pelo fato de estar sendo encontrada em uma frequência muito grande naquele período no Reino Unido de uma maneira geral e também porque ela já tinha muitas mutações em relação à original da China, mas principalmente, na proteína que a gente chama de spike. E ainda dentro da proteína spike tem uma região mais nobre que é o domínio de ligação ao receptor, então, quando você tem mutações nessa região, ela vai alterar alguma coisa do vírus, seja para piorar ou para melhorar. A variante do Reino Unido tem uma dessas mutações que é na posição E484, essa mutação já foi associada também a escape de anticorpos e por isso foi considerada uma variante de preocupação.
Depois disso surgiu a da África do Sul que tem essa mutação E484, mas além dela tem outras mutações na posição 417 e na posição 501. Todas as três mutações naquela região mais nobre do domínio de ligação ao receptor chamaram muito atenção. A gente tinha agora três mutações e não somente uma em uma região muito nobre do vírus. Não só a mutação, mas uma associação ao um aumento absurdo de casos na África do Sul.
E quando a P.1 apareceu, tinha essas três mutações-chave iguais a da África do Sul. E aí, por conta dessa característica, a OMS já a classificou com uma variante de preocupação.
Catraca Livre – Como esse fenômeno de mutações de vírus acontece?
Felipe Naveca – As mutações são fenômenos naturais que acontecem em qualquer organismo, só que nos vírus isso é muito acelerado porque alguns vírus têm genoma RNA e não DNA.O DNA tem mecanismos de correção, enquanto que RNA não. Então, quando uma mutação acontece ela vai seguir. Apesar de o coronavírus ter mecanismos de correção é a exceção da regra, só que quando uma pessoa infectada está produzindo milhões de partículas por dia ou até bilhões por dia, algum erro vai acontecer durante esse processo de copiar o genoma para produzir novas partículas. E aí, o problema é que esses erros vão sendo acumulados. Quando uma mutação é ruim para o vírus, aquele vírus vai desaparecer de circulação e a gente não vai nem saber.
Mas no meio de milhões de mutações acontecendo ao mesmo tempo, algumas podem trazer vantagens para o vírus e aparentemente foi o que aconteceu nesses três casos: do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil. Algumas das mutações são as mesmas, principalmente a da África do Sul e do Brasil. E quando é uma vantagem, a variante vai se fixando na população porque ela tem vantagem sobre as outras.
Então, a tendência hoje, pelo menos no Amazonas, é as outras variantes irem sumindo e ir ficando somente a P.1 porque ela é mais efetiva em infectar e mais transmissível. É claro que se surgirem outras, você vai ter competição entre os vírus e aquele que for mais eficiente é o que vai ficar. Se a P.1 de fato já está espalhada pelo país provavelmente é o que vai acontecer.
Catraca Livre – A variante P.1 causa sintomas mais graves?
Felipe Naveca – Isso é um pouco mais difícil de responder. Mas a do Reino Unido já está sendo estudada há mais tempo e agora saiu um estudo lá associando ela a uma maior gravidade. Então, a gente está conduzindo esse tipo de estudo, mas ele não é muito fácil. No estudo que fizemos, eu não tinha casos separados de leves e graves. A gente teria que comparar a frequência nos dois grupos. Baseado nos dados que eu tenho é arriscado a gente falar alguma coisa. Mas estamos fazendo essa análise agora junto com a OPAS e com Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas para analisar dois grupos com a mesma idade porque senão pode ter alguma variável que vai puxar para análise.
Mas o que nós vimos dentro do estudo foi uma maior carga viral nos casos de P.1 em relação às outras. Carga viral não significa doença mais grave. Inclusive o primeiro caso que eu comentei que era assintomático tinha uma carga viral altíssima. Então, não significa doença mais grave, mas que a transmissão é facilitada. Quanto mais vírus a pessoa está expelindo mais chances da outra pessoa ser infectada. Então, a gente acredita que seja uma das respostas de por que a P.1 se espalha tanto.
Catraca Livre – Tem sido observado um aumento no número de pessoas mais jovens nas UTIs. O espalhamento da variante brasileira justifica essa mudança no perfil de internações por covid-19 no país?
Felipe Naveca – Com certeza, o comportamento é o principal nesse momento. Como eu comentei, a gente ainda está estudando sobre a letalidade ou da forma mais grave da doença causada pela P.1 ou não, mas o comportamento esse daí não tem dúvida. A gente viu que quem mais abandonou as medidas de distanciamento foram os mais jovens. Pelo menos aqui no Amazonas tiveram muitas festas clandestinas sempre com o pessoal mais jovens. E agora, dois dias atrás, eu vi uma reportagem só com berçário com crianças com covid-19. As pessoas não podem se iludir porque a situação está muito grave e a gente precisa reduzir ao máximo com as medidas de distanciamento, uso de máscara, não tem outra solução agora.
Catraca Livre – Pelo que você observa hoje no Brasil, você acredita que estamos correndo o risco de ver o surgimento de novas linhagens tão graves quanto a variante brasileira?
Felipe Naveca – Se a gente não cortar a transmissão do vírus o mais rápido possível, seja por vacina que está ainda devagar, ou com as medidas de restrição, as chances de surgirem outras existem. A gente está agora vendo duas variantes de preocupação surgirem nos EUA, na Califórnia e em Nova York. Então, enquanto o vírus circular em grande quantidade esse risco continuará existindo.
Catraca Livre – Nesses últimos dias os governos estaduais têm adotado medidas de isolamento mais rígidas por conta da escalada do número de mortes por covid-19 no país. Essas medidas mais restritivas de isolamento social poderiam ter freado esse processo de mutação que levou ao surgimento da P.1?
Felipe Naveca – Se a gente tivesse reduzido muito a transmissão, muito provavelmente sim, mas o espalhamento – uma vez que ela surge – é muito difícil de ser evitado. A Inglaterra, por exemplo, tem o maior sistema de vigilância genômica do mundo, faz centenas de vezes mais que o Brasil, o investimento é brutal, não dá nem para comparar com o investimento no Brasil. Mas mesmo assim quando eles detectaram a variante deles, ela já estava espalhada no país inteiro. Mesmo o melhor sistema não conseguiu frear.
Catraca Livre – Uma vez que essa variante já existe qual a melhor estratégia para lidar com ela?
Felipe Naveca – É identificar os casos o mais rápido possível e isolar até conseguir conter a disseminação. Se você não tem novas pessoas infectadas, o vírus – por mais adaptado que seja – tende a desaparecer.
Nós também estamos há um ano falando isso – nós e vocês da imprensa – levando essa informação e a gente ainda não conseguiu fazer com que as pessoas entendam isso. Se a gente continuar desse jeito, daqui a pouco a gente vai ter P.3 e vão surgindo outras, não tem como. Esse é um processo normal que vai acontecendo. Enquanto o vírus estiver se propagando vai sofrer mutação. E enquanto sofre mutação, a chance de surgirem outras variantes assim existe.
Catraca Livre – Se daqui um tempo a vacinação tiver muito adiantada, com cerca de 90% das pessoas vacinadas, ainda vai existir essa possibilidade?
Felipe Naveca – O risco vai cair muito, mas a possibilidade sempre vai existir. Enquanto o vírus circular, por menor que seja a quantidade, o risco vai existir. Esses casos a gente chama de escapes vacinais, que é quando ele escapa da proteção da vacina. Por isso, essa vigilância vai continuar, não tem jeito. Mas a chance desses eventos acontecerem vai cair muito.
Catraca Livre – Qual o recado principal que precisa estar muito claro na cabeça das pessoas?
Felipe Naveca – Nós não vencemos essa guerra, na verdade, quando nós baixamos a guarda acontece o que está acontecendo agora. Um exemplo é o que o Amazonas passou e eu não gostaria de ver em outros estados, mas infelizmente a gente já está vendo, principalmente, no sudeste e no sul. A gente precisa redobrar os cuidados neste momento. A vacinação ainda está muito longe de atingir níveis suficientes de proteção coletiva e temos muito tempo pela frente para passar por essa pandemia.