Variante brasileira (P.1): o que precisamos saber sobre essa cepa

Nova cepa que surgiu em Manaus e tem causado pânico internacional possui uma carga viral mais alta se comparada às outras

18/03/2021 15:05 / Atualizado em 03/12/2021 09:02

Hospitais lotados, pacientes morrendo por falta de leitos de UTI e recordes diários de mortes por covid-19. Essa junção de fatores levou ao maior colapso sanitário e hospitalar da história do país, segundo a Fiocruz. E o que explica esse aumento vertigionoso no número de casos? Segundo os especialistas, o cenário é fruto de alguns fatores: relaxamento das medidas preventivas por parte da população, política de sabotagem às medidas sanitárias por parte do governo, vacinação lenta e a circulação da variante brasileira do novo coronavírus.

Esse último fator é acompanhado com atenção pelos cientistas brasileiros e de fora do país. Um estudo recente feito pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade de Oxford sugere que essa nova cepa se espalharia mais rapidamente, inclusive entre quem já pegou covid-19 e, portanto, desenvolveu anticorpos.

A P.1, como foi nomeada, foi detectada pela primeira vez em janeiro, no Japão, em viajantes que estiveram em Manaus durante a primeira onda epidêmica do estado. As investigações confirmaram que tratava-se de uma variante de origem amazônica, que hoje é prevalente no estado.

Versão brasileira do coronavírus é considerada uma variante de preocupação pela OMS
Versão brasileira do coronavírus é considerada uma variante de preocupação pela OMS - matejmo/istock

O virologista e pesquisador Felipe Naveca, que pertence à equipe da Fiocruz Amazônia que descobriu a primeira reinfecção pela nova linhagem P.1 do coronavírus, tem feito a vigilância genômica dessa cepa no Amazonas desde o seu surgimento.

Segundo ele, a variante brasileira, assim como as linhagens descobertas no Reino Unido e na África do Sul, possui alterações genéticas significativas na proteína skipe que se liga aos receptores do corpo humano.

“A P.1 possui três mutações-chave iguais a da África do Sul e, por conta dessa característica, a OMS já classificou com uma variante de preocupação”, explica Naveca.

Dr. Felipe Naveca faz parte da equipe de pesquisadores da Fiocruz Amazônia
Dr. Felipe Naveca faz parte da equipe de pesquisadores da Fiocruz Amazônia - Eduardo Gomes - ILMD / Fiocruz Amazônia

O poder da variante brasileira

Se essa variante implica em sintomas mais graves da covid-19 é difícil de responder, segundo o pesquisador. Porém, estudos conduzidos por ele até agora mostram que a P.1 possui uma carga viral maior, se comparada às outras.

“Carga viral não significa doença mais grave. Inclusive o primeiro caso que era assintomático tinha uma carga viral altíssima. Então, não significa doença mais grave, mas que a transmissão é facilitada. Quanto mais vírus a pessoa está expelindo mais chances da outra pessoa ser infectada. Então, a gente acredita que seja uma das respostas de por que a P.1 se espalha tanto”, explica Felipe Naveca.

Para se ter uma ideia, a presença dessa variante nas amostras sequenciadas no Amazonas saltou de 51% em dezembro, para 91% até a primeira quinzena de janeiro de 2021.

Além de estar associada ao colapso do sistema de saúde do Amazonas, a nova cepa já forçou cidades como Araraquara, no interior paulista, a decretar o fechamento do comércio não essencial. Por lá, a P.1 predomina entre os casos de covid-19, segundo observou um estudo do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP).

Até o momento, a variante brasileira já foi identificada em pelo menos 17 estados brasileiros, segundo o Ministério da Saúde, e em 30 países, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mutações de vírus são comuns e os especialistas explicam que quanto mais um ele circula livremente em uma população, mais ele se replica e mais oportunidades ele tem de sofrer mudanças. Por isso, é necessário constante vigilância e não baixar a guarda diante do vírus.

“Se a gente não cortar a transmissão do vírus o mais rápido possível, seja por vacina que está ainda devagar, ou com as medidas de restrição, as chances de surgirem outras variantes existem. A gente está agora vendo duas variantes de preocupação surgirem nos EUA, na Califórnia, e em Nova York. Então, enquanto o vírus circular em grande quantidade esse risco continuará existindo”, alerta Naveca.

Se existe uma notícia boa em meio à isso tudo, é sobre as vacinas. Estudos preliminares mostram que a CoronaVac e as vacinas de Oxford e da Pizer possuem eficácia contra a variante brasileira. Os estudos ainda precisam passar pela revisão de outros cientistas antes de ser publicados.

Leia abaixo a entrevista com o virologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia, Dr. Felipe Naveca:

Catraca Livre – Qual o papel dessa variante brasileira na explosão de casos atual no país?

Felipe Naveca – Em Araraquara, que foi confirmada a circulação local de P.1, certamente ela é a principal. Em um estudo que nós fizemos em parceria com as centrais analíticas da Fiocruz, que são grandes laboratórios de testagem diagnósticas no Ceará, Rio de Janeiro e Paraná e processam milhares de amostras, nós analisamos mais de 6 mil amostras de 8 estados e detectamos a presença de uma das três em percentuais mais elevados em alguns lugares, principalmente no Sul e no Ceará. Do Ceará, a gente tem dados iniciais de sequenciamento e a grande maioria é a P.1.

Catraca Livre – Quais as características que fazem essa variante despertar tanta preocupação mundial? No que ela difere da outras?

Felipe Naveca – A primeira variante que foi descoberta foi a britânica. Ela começou a chamar atenção pelo fato de estar sendo encontrada em uma frequência muito grande naquele período no Reino Unido de uma maneira geral e também porque ela já tinha muitas mutações em relação à original da China, mas principalmente, na proteína que a gente chama de spike. E ainda dentro da proteína spike tem uma região mais nobre que é o domínio de ligação ao receptor, então, quando você tem mutações nessa região, ela vai alterar alguma coisa do vírus, seja para piorar ou para melhorar. A variante do Reino Unido tem uma dessas mutações que é na posição E484, essa mutação já foi associada também a escape de anticorpos e por isso foi considerada uma variante de preocupação.

Depois disso surgiu a da África do Sul que tem essa mutação E484, mas além dela tem outras mutações na posição 417 e na posição 501. Todas as três mutações naquela região mais nobre do domínio de ligação ao receptor chamaram muito atenção. A gente tinha agora três mutações e não somente uma em uma região muito nobre do vírus. Não só a mutação, mas uma associação ao um aumento absurdo de casos na África do Sul.

E quando a P.1 apareceu, tinha essas três mutações-chave iguais a da África do Sul. E aí, por conta dessa característica, a OMS já a classificou com uma variante de preocupação.

Catraca Livre – Como esse fenômeno de mutações de vírus acontece?

Felipe Naveca – As mutações são fenômenos naturais que acontecem em qualquer organismo, só que nos vírus isso é muito acelerado porque alguns vírus têm genoma RNA e não DNA.O DNA tem mecanismos de correção, enquanto que RNA não. Então, quando uma mutação acontece ela vai seguir. Apesar de o coronavírus ter mecanismos de correção é a exceção da regra, só que quando uma pessoa infectada está produzindo milhões de partículas por dia ou até bilhões por dia, algum erro vai acontecer durante esse processo de copiar o genoma para produzir novas partículas. E aí, o problema é que esses erros vão sendo acumulados. Quando uma mutação é ruim para o vírus, aquele vírus vai desaparecer de circulação e a gente não vai nem saber.

Mas no meio de milhões de mutações acontecendo ao mesmo tempo, algumas podem trazer vantagens para o vírus e aparentemente foi o que aconteceu nesses três casos: do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil. Algumas das mutações são as mesmas, principalmente a da África do Sul e do Brasil. E quando é uma vantagem, a variante vai se fixando na população porque ela tem vantagem sobre as outras.

Então, a tendência hoje, pelo menos no Amazonas, é as outras variantes irem sumindo e ir ficando somente a P.1 porque ela é mais efetiva em infectar e mais transmissível. É claro que se surgirem outras, você vai ter competição entre os vírus e aquele que for mais eficiente é o que vai ficar. Se a P.1 de fato já está espalhada pelo país provavelmente é o que vai acontecer.

Catraca Livre – A variante P.1 causa sintomas mais graves?

Felipe Naveca – Isso é um pouco mais difícil de responder. Mas a do Reino Unido já está sendo estudada há mais tempo e agora saiu um estudo lá associando ela a uma maior gravidade. Então, a gente está conduzindo esse tipo de estudo, mas ele não é muito fácil. No estudo que fizemos, eu não tinha casos separados de leves e graves. A gente teria que comparar a frequência nos dois grupos. Baseado nos dados que eu tenho é arriscado a gente falar alguma coisa. Mas estamos fazendo essa análise agora junto com a OPAS e com Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas para analisar dois grupos com a mesma idade porque senão pode ter alguma variável que vai puxar para análise.

Mas o que nós vimos dentro do estudo foi uma maior carga viral nos casos de P.1 em relação às outras. Carga viral não significa doença mais grave. Inclusive o primeiro caso que eu comentei que era assintomático tinha uma carga viral altíssima. Então, não significa doença mais grave, mas que a transmissão é facilitada. Quanto mais vírus a pessoa está expelindo mais chances da outra pessoa ser infectada. Então, a gente acredita que seja uma das respostas de por que a P.1 se espalha tanto.

Catraca Livre – Tem sido observado um aumento no número de pessoas mais jovens nas UTIs. O espalhamento da variante brasileira justifica essa  mudança no perfil de internações por covid-19 no país? 

Felipe Naveca – Com certeza, o comportamento é o principal nesse momento. Como eu comentei, a gente ainda está estudando sobre a letalidade ou da forma mais grave da doença causada pela P.1 ou não, mas o comportamento esse daí não tem dúvida. A gente viu que quem mais abandonou as medidas de distanciamento foram os mais jovens. Pelo menos aqui no Amazonas tiveram muitas festas clandestinas sempre com o pessoal mais jovens. E agora, dois dias atrás, eu vi uma reportagem só com berçário com crianças com covid-19. As pessoas não podem se iludir porque a situação está muito grave e a gente precisa reduzir ao máximo com as medidas de distanciamento, uso de máscara, não tem outra solução agora.

Catraca Livre – Pelo que você observa hoje no Brasil, você acredita que estamos correndo o risco de ver o surgimento de novas linhagens tão graves quanto a variante brasileira?

Felipe Naveca – Se a gente não cortar a transmissão do vírus o mais rápido possível, seja por vacina que está ainda devagar, ou com as medidas de restrição, as chances de surgirem outras existem. A gente está agora vendo duas variantes de preocupação surgirem nos EUA, na Califórnia e em Nova York. Então, enquanto o vírus circular em grande quantidade esse risco continuará existindo.

Catraca Livre – Nesses últimos dias os governos estaduais têm adotado  medidas de isolamento mais rígidas por conta da escalada do número de mortes por covid-19 no país. Essas medidas mais restritivas de isolamento social poderiam ter freado esse processo de mutação que levou ao surgimento da P.1?

Felipe Naveca – Se a gente tivesse reduzido muito a transmissão, muito provavelmente sim, mas o espalhamento – uma vez que ela surge – é muito difícil de ser evitado. A Inglaterra, por exemplo, tem o maior sistema de vigilância genômica do mundo, faz centenas de vezes mais que o Brasil, o investimento é brutal, não dá nem para comparar com o investimento no Brasil. Mas mesmo assim quando eles detectaram a variante deles, ela já estava espalhada no país inteiro. Mesmo o melhor sistema não conseguiu frear.

Catraca Livre – Uma vez que essa variante já existe qual a melhor estratégia para lidar com ela?

Felipe Naveca – É identificar os casos o mais rápido possível e isolar até conseguir conter a disseminação. Se você não tem novas pessoas infectadas, o vírus – por mais adaptado que seja – tende a desaparecer.

Nós também estamos há um ano falando isso – nós e vocês da imprensa – levando essa informação e a gente ainda não conseguiu fazer com que as pessoas entendam isso. Se a gente continuar desse jeito, daqui a pouco a gente vai ter P.3 e vão surgindo outras, não tem como. Esse é um processo normal que vai acontecendo. Enquanto o vírus estiver se propagando vai sofrer mutação. E enquanto sofre mutação, a chance de surgirem outras variantes assim existe.

Catraca Livre – Se daqui um tempo a vacinação tiver muito adiantada, com cerca de 90% das pessoas vacinadas, ainda vai existir essa possibilidade?

Felipe Naveca – O risco vai cair muito, mas a possibilidade sempre vai existir. Enquanto o vírus circular, por menor que seja a quantidade, o risco vai existir. Esses casos a gente chama de escapes vacinais, que é quando ele escapa da proteção da vacina. Por isso, essa vigilância vai continuar, não tem jeito. Mas a chance desses eventos acontecerem vai cair muito.

Catraca Livre – Qual o recado principal que precisa estar muito claro na cabeça das pessoas?

Felipe Naveca – Nós não vencemos essa guerra, na verdade, quando nós baixamos a guarda acontece o que está acontecendo agora. Um exemplo é o que o Amazonas passou e eu não gostaria de ver em outros estados, mas infelizmente a gente já está vendo, principalmente, no sudeste e no sul. A gente precisa redobrar os cuidados neste momento. A vacinação ainda está muito longe de atingir níveis suficientes de proteção coletiva e temos muito tempo pela frente para passar por essa pandemia.