‘Como se o corpo quisesse desligar’: a rotina de quem vive com esclerose múltipla
Conheça a realidade de quem enfrenta a esclerose múltipla, uma doença autoimune crônica, por meio de relatos reais e esclarecimentos de uma especialista
Nesta sexta-feira, 30 de maio, é o Dia Mundial da Esclerose Múltipla (EM), uma doença neurológica, crônica e autoimune que afeta o sistema nervoso central.
A doença ocorre quando o sistema imunológico ataca a mielina, a camada que reveste os neurônios, comprometendo a comunicação entre o cérebro e o corpo. Isso resulta em diversos sintomas, que variam conforme os diferentes tipos e graus de progressão da doença.

Viver com EM significa enfrentar uma série de desafios físicos, emocionais e sociais que exigem adaptação constante.
Para entender melhor essa realidade, a Catraca Livre ouviu duas mulheres diagnosticadas com esclerose múltipla e uma fisioterapeuta especializada, que explicam os impactos e os desafios impostos pela doença no dia a dia.
Como é viver com esclerose múltipla?
Ana Carolina Rocha Guimarães, de 33 anos, descobriu a esclerose múltipla em 2021, durante a pandemia. Ela lembra que os sintomas começaram com um formigamento intenso, que depois evoluiu para perda de força e visão dupla.
“Achei que estava tendo um AVC, fui perdendo os movimentos do lado direito do corpo. […] 10 dias internada, vários exames, pediram ressonância magnética do crânio e cervical e a punção lombar (exame do liquor), após esses dois exames veio o diagnóstico de esclerose múltipla, na época eu tinha acabado de fazer 29 anos.”
A partir daí, Ana começou o tratamento com medicamentos, além de acompanhamento com neurologista e reabilitação com fisioterapia, pois ela ficou com a mobilidade comprometida: “Fiquei alguns meses sem conseguir escrever também.”
Sua rotina mudou radicalmente: “hoje faço uso de bengala para longas distâncias, mas já recuperei bastante da minha mobilidade. Na alimentação, evito refrigerante, carne vermelha e embutidos. […] Convivo com fadiga crônica […], que é uma exaustão constante, como se eu tivesse corrido uma maratona num dia que não fiz nada.”
Ela também precisou adaptar seu trabalho, migrando para o home office e mudando de área profissional. Antes, trabalhava no mercado financeiro.
“Recebi vários ‘nãos’ por conta da minha patologia e por mais que empresas digam que estão abertas a inclusão, sinto que ainda falta muito e ainda há muito preconceito dentro do mercado de trabalho. Hoje trabalho com marketing e também sou criadora de conteúdo, consigo fazer meus horários e trabalhar de forma remota. Infelizmente a doença é muito instável e a qualquer momento posso precisar ser internada, isso num regime CLT é bem desafiador“, desabafa Ana, que posta vídeos nas redes sociais falando sobre a esclerose.

Jahde Borg, influenciadora digital de 29 anos, também virou uma voz da EM na internet. No final de 2024, um surto da doença a deixou sem sensibilidade da cintura para baixo e dependente de cadeira de rodas.
Foi quando ela recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla remitente-recorrente, tipo mais comum da doença, marcado por crises (ou surtos) que surgem de forma repentina e são seguidas por períodos de melhora parcial ou completa.
Após um mês internada na UTI e um período de tratamento intensivo, hoje ela segue no processo para recuperar a mobilidade, usando andador e fazendo fisioterapia.
“Perder, de uma hora pra outra, a mobilidade e a independência mexeu muito comigo. […] A esclerose te causa uma fadiga crônica, então é como se você tivesse com uma bateria viciada, se antes eu conseguia escovar os dentes, tomar banho e secar o cabelo, agora tenho que fazer pequenos intervalos para não chegar no limite, se não o corpo começa a querer desligar”, relata Jahde.

A youtuber ressalta que a doença não tem cura, mas que é possível prevenir novas crises: “para minha infelicidade, descobri que precisava mudar minha vida totalmente para isso.”
“Minha visão também ficou com efeito de movimento sem parar, é como estar dentro de um barco o tempo todo. Isso impossibilitou que eu conseguisse trabalhar por alguns meses, pois editar um vídeo, fazer maquiagens, estava impossível. Então tem sido muito difícil arcar com tudo que engloba cuidar bem da doença.”
Os desafios invisíveis e a importância da fisioterapia
Giulianna Mendes Ferrero, fisioterapeuta especializada em neurofuncional e criadora do EMovimento, a maior comunidade de exercícios para pessoas com esclerose múltipla, explica os principais sintomas que dificultam o dia a dia dos pacientes:
“Dificuldades para caminhar, alterações no equilíbrio, fadiga intensa e sensações, como formigamentos, dormências e queimações, são comuns e muitas vezes invisíveis para quem está de fora. Esses desafios podem causar grandes prejuízos, como quedas, limitações para sair de casa, perda de independência e até mesmo isolamento social.”
Ela ressalta que a fisioterapia tem papel crucial para melhorar a qualidade de vida: “Com técnicas específicas, trabalhamos cada fase da marcha (caminhada), o equilíbrio e estimulamos os sistemas sensoriais. O paciente aprende estratégias para incorporar pequenos movimentos no dia a dia, o que resgata a funcionalidade e a autoconfiança, muitas vezes ameaçadas pela EM.”
Quanto à progressão da doença, Giulianna aponta que é um medo constante. “Com o tempo, podem surgir dificuldades mais intensas para andar, cansaço extremo, alterações no equilíbrio, problemas urinários e até questões cognitivas, como falhas de memória e atenção. Tudo isso impacta diretamente a autonomia e a qualidade de vida da pessoa com EM.”
Por isso, segundo a fisioterapeuta, o acompanhamento contínuo é fundamental, pois a fisioterapia neurofuncional não só reabilita, mas também previne perdas, estimulando o corpo e o cérebro a manter a funcionalidade.
Adaptações e melhora na qualidade de vida
Ana Carolina destaca que a comunicação foi fundamental para enfrentar o diagnóstico: “Falar me salvou. Depois que comecei a falar de esclerose múltipla nas redes sociais botei pra fora todo aquele medo e insegurança que estava me corroendo por dentro, me libertei de certa forma das amarras que um diagnóstico traz.”
Ela, inclusive, fundou o “Minha Voz Importa”, um projeto em que promove encontros e campanhas de conscientização sobre doenças raras e crônicas.
“Eu digo que viver com EM é se desafiar todo dia, é colocar seu corpo a prova. É não saber se a qualquer momento posso ter outro surto. Tem dias que serão mais difíceis, não posso negar, o meu máximo é o mínimo de muita gente, mas me sinto orgulhosa de todos os dias conseguir fazer um pouco mais“, comenta Ana.

Jahde enfatiza a importância do suporte psicológico e lembra que, apesar da instabilidade da doença, é possível ter qualidade de vida e ressignificar os limites.
“Eu não sei como vai ser o dia de amanhã, mas eu sei que seis meses atrás eu pensava que poderia nunca mais andar, nunca mais sentir a areia no meu pé ou entrar sozinha no mar, mas agora eu consigo arrumar minha cama, tomar banho sozinha num banquinho e entrar no carro sem passar mal. […] Agora, eu faço listas de tudo que irei realizar quando melhorar, pois sei que eu vou“, pontua.
Viver com esclerose múltipla demanda paciência, organização e recursos. Giulianna reforça que o suporte multidisciplinar é essencial para que o paciente mantenha a autonomia: “com um acompanhamento adequado, é possível recuperar a confiança, adaptar-se às mudanças e continuar a construir uma vida com significado, propósito, autonomia e viver bem.”
Manter o corpo ativo por meio de exercícios adequados e adotar hábitos saudáveis — como dormir bem, se alimentar corretamente, reduzir o estresse e cultivar relações sociais — também são pontos-chave.
“E acima de tudo: buscar informação de qualidade. Quanto mais a pessoa entende a EM e como ela se manifesta no seu corpo, mais autonomia ela conquista para tomar decisões conscientes, cuidar de si e viver com mais leveza“, finaliza a especialista.
