Mais uma estagiária
Por Ana Squilanti
Demorei meia hora para escolher a roupa. Nunca me delongo em frente ao armário, mas seguia analisando as vestes penduradas nos cabides. A primavera chegou antes do esperado aqui em Brasília. Elevou a temperatura e eliminou os ventos. O sol já queimava sem dó. Mas não seria demais ir de saia hoje? Já chegar assim no “Correio”, no primeiro dia de trabalho, mais casual? Quero chamar a atenção para meu trabalho e não para minhas coxas.
Não! Que pensamento é esse, Melissa? Mulher pode usar o que quiser. Peguei a preta. Reta, pouco acima do joelho. Chamaria pouco a atenção, já que não marca tanto o quadril quanto a florida. Me refrescaria o suficiente, ainda mais se fosse com essa rasteirinha.
Cheguei à Redação e tomei cuidado para andar devagar. Tropeço em qualquer coisa. Hoje não posso cair. Um passo atrás do outro, mas com confiança. Jornalista séria. Cabeça erguida. Bom dia.
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Seu lugar é ali, loira, me disse o supervisor. O rapaz ao meu lado na baia era loiro também. Caio. Eu virei “Loira”. Depois, Melissinha. Criaram intimidade sem eu ter dado, mas foda-se.
Quer um café? Quer que encaminhe essa matéria? Precisa de algo? Meu ramal é 4566. Focava no trabalho, e não nas viradas de cabeça que recebia quando me deslocava para fazê-lo. Meu computador ficava bem no final da sala. Chegar até ele era como passar por um corredor polonês. Socos de olhares.
Devolvia os golpes sorrindo. Que sorrido lindo, Melissa. Fingia que não via. Que não ouvia. Que não me incomodava. Que era mais forte que isso, e que não temia, diariamente, que uma mão boba aparecesse na minha cintura enquanto me entregassem uma pauta.
Inventei um namorado. Que merda. Parecia que estava de novo nas baladas juvenis, e a única forma de o bêbado pegajoso me deixar em paz é sabendo que tem outro homem cuidando de mim. Ser efetivada, eu pensava. Será que sendo efetivada as coisas mudariam?
Nos happy hours de sexta percebia que era real. Virava estatística. Uma vírgula dentre as 80% de colegas que sofrem assédio. Mas sorria. E esse namorado que não existe, Melissa? Fucei no seu Facebook e não vi foto alguma. Meu Facebook? Eu não te passei meu Facebook…
Ele é tímido, gente. Fernando é caseiro. Fernando? Achei que fosse Felipe. Felipe? Que nome eu inventei? Merda. Não, é Fernando. Fernando Meireles. Vê aí no meu Insta. Melissa Souza. Eu sei, já te stalkeei. Ah, não me diga…
Um brinde à Melissa, gente! E ao Fernando, existente ou não, que arrematou a estagiária-exemplo. Traz ele aqui no próximo para a gente dar os parabéns.
Trago, pode deixar. Assim que avisar meu vizinho que ele virou meu namorado postiço para afastar vocês de cima de mim, bando de idiota.
Trago também minha carta de demissão junto. Já não sei mais se estou aqui porque minha escrita é boa ou porque minha bunda é. Saio assim que a emissora que enviei meu CV me responder. TV nunca foi meu sonho, mas ninguém precisa saber.
Disseram que Daniela, do terceiro ano da faculdade, está procurando estágio. A vaga aqui é boa, mas tão cheia de poréns. Avisei de qualquer forma. Ela disse que esse comportamento não era novidade. Que é um saco, mas, sabe como é. A grana tá curta. Pode deixar.
A indiquei junto ao meu aviso de saída. O coordenador não entendeu. Disse que eu estava indo tão bem.
Daniela começou semana passada. Sentou no meu antigo lugar. Do lado de Caio. Já virou “Danizinha”. Morena. Tem namorado não, né? Disseram que já virou a melhor estagiária vista na Redação.
- Esta crônica, publicada originalmente aqui, é uma resposta àquela publicada pelo jornalista Guilherme Goulart, no “Correio Braziliense”. O texto “A estagiária” tinha a intenção de criar uma personagem para demostrar a realidade do assédio contra às mulheres. Acabou saindo equivocada, e o jornalista publicou uma coluna se retratando. Aqui escrevo como seria o assédio pelo ponto de vista de Melissa, e não dos assediadores. É esse o lugar de fala que devemos ouvir nesse tipo de situação. O da mulher.
- Ana Squilanti é escritora, e estudante de jornalismo. Cronista e contista do dia a dia. Coordena e media o Clube da Escrita para Mulheres, grupo de incentivo e promoção de produção literária feminina.
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