Mulher intersexo, negra, travesti, HIV positiva e CoVereadora de São Paulo

Carolina Iara "Meu sonho é que pessoas intersexo não passem pelo mesmo que eu passei, e que nenhuma criança sofra mutilação genital ou humilhação"

O título desta matéria resume um pouco sobre o ser humano complexo e admirável que a Carolina Iara, paulistana de 28 anos de idade, representa. Num mundo formado majoritariamente por uma sociedade racista, transfóbica, sorofóbica e homofóbica, o simples fato dela estar viva e ocupando um cargo público já é motivo de orgulho, admiração e esperança. Dito isso, não podemos romantizar ou banalizar a sua trajetória, mas sim, garantir que mais pessoas como ela ocupem cada vez mais espaços dentro da nossa sociedade.

Carolina é uma das cinco pessoas que compõe a Bancada Feminista do PSOL, grupo formado por cinco mulheres que foram eleitas em 2020 num mandato coletivo. Por isso, cada uma delas é denominada de CoVereadora. Juntas, elas são responsáveis pela criação do Projeto de Lei que cria o Programa de Combate a Violência Obstétrica – direcionado às mulheres que sofrem violências e humilhações durante o parto e também nas maternidades, além da Lei que garante o auxílio-aluguel para mulheres em situação de violência doméstica.

Leia abaixo a entrevista completa da Carolina Iara.

“É muito importante que a diversidade esteja sempre presente, dentro e fora da política, para naturalizar nossa existência e nossa presença em diversos espaços, diminuindo o estigma e a discriminação contra nós” – Carolina Iara
Créditos: Bancada Feminista do PSOL
“É muito importante que a diversidade esteja sempre presente, dentro e fora da política, para naturalizar nossa existência e nossa presença em diversos espaços, diminuindo o estigma e a discriminação contra nós” – Carolina Iara

Eu nasci uma criança intersexo

Intersexo são as pessoas que nascem com aspectos biológicos dos dois sexos, feminino e masculino, formando assim um sexo biológico fora do que é entendido na sociedade por mulher e por homem. Dentro dessa perspectiva, a medicina já mapeou cerca de 48 estados de intersexualidade que podem se apresentar através do sistema endocrinológico, das genitália, gônadas (testículos ou ovários), órgãos internos ou cromossomos.

Minha infância

Minha infância foi marcada pela mutilação genital, com duas cirurgias genitais para esconder minha genitália atípica, que foram feitas sem uma orientação médica adequada para a minha família. Eu acho que ter na memória a minha recuperação lenta e dolorosa desses procedimentos, sem saber direito do que se tratavam essas cirurgias, é um trauma para vida toda. As chacotas na escola, a dificuldade de ir ao banheiro, e o preconceito de parentes sobre meu corpo, também foi algo muito presente. Mas não só as dificuldades povoaram a minha infância, pois também tive muito amor da minha avó e também da minha mãe.

Minha adolescência

Dentro de mim sempre houve um não-lugar dentro da sociedade, um não-pertencimento ao que me atribuíram logo após o meu nascimento, uma identidade de gênero que se materializou através do bisturi em mesas de cirurgias. Desde pequena eu era muito feminina para ter um corpo masculino, mas decidiram esse sexo pra mim e eu sequer sabia disso, então eu sempre me senti deslocada até entender a minha história e descobrir o que havia acontecido comigo. Cheguei na adolescência e só as travestis que me entendiam, e foi assim que me encontrei na travestilidade e vivi como travesti dos 15 aos 18 anos, me vendo obrigada aos 18 anos a voltar para o armário, esconder minha transexualidade para conseguir ter um emprego. Foram seis anos de não-lugar, de incômodo, até descobrir que sou intersexo e retomar meu processo da identidade de mulher travesti.

Sou HIV positiva

Eu descobri o HIV em 2014, numa investigação de sintomas que eu estava sentindo como caroços pelo corpo e inflamações nos gânglios. Depois de fazer vários exames no hospital em que eu trabalhava como assistente de políticas públicas, veio o resultado positivo. Foi um choque! Fiquei com medo de morrer em poucos dias, porque eu tinha pouca informação sobre a vivência com HIV, e de fato meu diagnóstico havia sido tardio, então no começo do tratamento eu fiquei uns dias internada, algo que me deixou muito apreensiva. Mas logo após sair do hospital, procurei ONGs que atuam com pessoas vivendo com HIV/Aids e encontrei o Grupo de Incentivo a Vida, o GIV, onde fui acolhida e apresentada ao movimento de Aids, as redes de pessoas vivendo com HIV, e isso foi fundamental pra eu me aceitar, me fortalecer com outras vivências soropositivas, e me engajar na luta pelos direitos humanos e pela saúde pública de qualidade.

“O que me motiva a continuar lutando é saber que faço tudo isso não somente por mim, mas também pelas pessoas que virão num futuro próximo.” Carolina Iara
Créditos: Bancada Feminista do PSOL
“O que me motiva a continuar lutando é saber que faço tudo isso não somente por mim, mas também pelas pessoas que virão num futuro próximo.” Carolina Iara

Minha trajetória dentro da vida pública

O fato de eu ter crescido num bairro como a Fazenda da Juta, em Sapopemba, que foi constituído pelos movimentos de moradia, coletivos artísticos e LGBTQIA+ na minha adolescência e no começo da minha juventude, colaborou muito pra que eu entrasse nos movimentos sociais. Isso fez com que eu ajudasse a criar projetos que existem até hoje no bairro, como o Periferia Preta e sua casa de cultura. Depois, eu comecei a trabalhar em serviços de saúde, em 2011, e também a trabalhar com prevenção à violência e assistência de vítimas, o que me deu muita proximidade com movimentos feministas e de direitos humanos. Em 2014, descobri que vivo com HIV, e me aproximei do movimento de prevenção e luta contra o preconceito à AIDS. Então, eu acho que tudo isso foi me moldando como ativista, e eu achei importante canalizar todas essas lutas dentro de um partido político e uma corrente de pensamento. Foi assim que fui me descobrindo uma socialista e, após estar convicta desse meu anticapitalismo, eu decidi entrar no PSOL. Consequentemente, com o passar dos anos, veio o convite para que eu integrasse uma candidatura coletiva e feminista, com mais quatro mulheres, e assim acabei sendo eleita como CoVereadora.

A minha vida sob ameaças e intimidações

No dia 27 de janeiro de 2021, enquanto eu escrevia um artigo do mestrado, minha mãe ouviu um barulho muito forte, semelhante a tiros, e no dia seguinte fomos conversar com vizinhos que confirmaram também terem ouvido. Segundo a conclusão da investigação policial, a minha casa foi alvejada por bombas de efeito sonoro para me intimidar. Puxamos gravações dos vizinhos que mostraram um carro parado em frente de casa no momento do barulho. Isso nos acendeu um alerta de que aquilo era uma intimidação proposital a mim, e tive que sair de minha casa, ficar escondida durante um tempo, e revirar minha rotina de ponta cabeça, passando a andar sempre acompanhada de seguranças. Foi uma situação muito difícil, sofrida, inclusive pra minha saúde emocional. Pelo o que as investigações indicam, duas pessoas foram responsáveis pelo ato e tudo indica que o motivo é a transfobia, algo que tem deixado o Brasil com números altíssimos de assassinatos das pessoas trans.

Pessoas intersexo e travestis dentro e fora da política

É muito importante que a diversidade esteja sempre presente, dentro e fora da política, para naturalizar nossa existência e nossa presença em diversos espaços, diminuindo assim o estigma e a discriminação contra nós. E também para que as pessoas possam ver travestis sendo professoras, jornalistas, políticas, ativistas, sindicalistas, bancárias, pesquisadoras, e não apenas trabalhadoras do sexo. Por mais que eu defenda uma regulamentação e controle da prostituição para que a vida das prostitutas sejam protegidas e elas tenham acesso à direitos, eu também acho que a empregabilidade de pessoas trans precisa ser muito ampliada, porque é a falta de emprego e renda um dos principais fatores de vulnerabilidade da população trans. Não podemos normalizar casos como o meu, que tive que esconder minha transexualidade pra conseguir emprego, pois nós precisamos garantir emprego, renda, acesso à saúde, acesso à direitos e à vida digna para as travestis. E sobre as pessoas intersexo, eu penso que é ainda um passo anterior, pois ainda precisamos reafirmar que nós existimos, que não somos lendas ou pessoas doentes, mas sim que somos pessoas mutiladas genitalmente, invisibilizadas e escondidas por uma sociedade patriarcal e binária.

O meu conselho para quem acabou de descobrir que tem HIV

Não enfrente isso sozinha ou sozinho. Procure pessoas confiáveis para dividir sua condição sorológica, procure apoio psicológico no serviço de saúde, procure ONGs que trabalham com o assunto, busque influenciadores digitais e ativistas da causa. Se cerque de informação e de apoio, porque só assim é possível enfrentar o estigma e discriminação ainda existentes sobre o HIV. E nunca desista. Não deixe que roubem o seu direito de sonhar, de viver, de cantar, de amar e de ser feliz. E, por último, e não menos importante – defenda o SUS (Sistema Único de Saúde).

A minha luta é por um futuro melhor para todos nós

O que me motiva a continuar lutando é saber que faço tudo isso não somente por mim, mas também pelas pessoas que virão num futuro próximo. Meu sonho é que pessoas intersexo não passem pelo mesmo que eu passei, e que nenhuma criança sofra mutilação genital ou humilhação. Que nenhuma travesti seja obrigada a ir pro armário, se esconder, para conseguir ter emprego ou dignidade. Que nenhuma mulher negra, como minha mãe, tenha que ser enganada ou pressionada para fazer cirurgia no seu bebê intersexo. Enfim, o que me motiva é a luta para que as pessoas que vivem à margem da sociedade, incluindo a classe trabalhadora, sofram cada vez menos. O que me fortalece é o afeto que recebo de minha família, do meu namorado, da minha rede de afetos e proteção, além das minhas companheiras de luta ativista e partidária. E sim, nós vamos continuar lutando todos os dias.

Catraca Livre informa – Conheça leis e direitos que protegem pessoas vivendo com HIV ou Aids

“No Brasil, a Lei Federal nº 12.984/2014, define como crimes com pena de reclusão e multa:

– recusar ou segregar pessoas vivendo com HIV ou Aids por parte de creches e instituições de ensino de qualquer grau, sejam públicas ou privadas;
– negar emprego ou trabalho em razão da sorologia,
– exonerar ou demitir por esta razão,
– segregar no ambiente escolar ou de trabalho,
– divulgar a condição sorológica com intuito de ofender a honra da pessoa,
– recusar ou retardar atendimento de saúde.

No âmbito trabalhista, pessoas vivendo com HIV ou Aids podem sacar integralmente o valor do FGTS. Para tanto, a pessoa precisa solicitar um laudo médico devidamente assinado, e comparecer à Caixa Econômica Federal, ou fazer o pedido via aplicativo do FGTS. O valor  presente na conta será disponibilizado dentro de 05 (cinco) dias úteis. Para admissão e demissão no emprego, é vedado o exame obrigatório de HIV, nos termos do artigo 2º da Portaria nº 1246/2010 da Secretaria do Trabalho. No caso de incapacidade temporária para o trabalho, a pessoa segurada do INSS tem direito ao auxílio-doença. E em caso de incapacidade permanente, elas também têm direito de solicitarem aposentadoria por invalidez, sendo necessário se submeter a perícia.

Pessoas vivendo com HIV ou Aids têm direito a isenção do imposto de renda, conforme o artigo 6º da Lei nº 7.713/1988, e também à gratuidade de tratamento e medicação, conforme prevê a Lei Federal nº 9.313/1996.”

Fonte: Felipe Daier, advogado em Direito Antidiscriminatório e coordenador do Núcleo de Acolhimento da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

Produção em parceria com Felippe Canale. Conheça mais do trabalho do jornalista no Instagram e no Twitter.

Por Felippe Canale

Jornalista parceiro da Catraca Livre