‘O amor que ela me deu me fez a mulher de hoje’, diz filha trans

Autora da frase, Lekka, é filha de Wilma Azevedo, uma das Mães que TRANSformam entrevistadas pela reportagem especial do Catraca Livre

Wilma Azevedo, 62, é mãe de três filhos: Adriana, Adriano e Alessandra, ou Lekka, de 29 anos. Lekka é empresária, dona de um salão de beleza, onde atua como cabeleireira e faz as redes sociais de seu negócio.

Desde criança, não se identificava com seu sexo biológico e se enxergava como mulher. Para a mãe, que sempre lidou naturalmente com sua transexualidade, o mais importante na base da criação de seus filhos foram apoio, amor e respeito. Lekka confirma e vê na mãe um grande exemplo de mulher e amiga.

Na reportagem abaixo, que integra o projeto Mães que TRANSformam, mãe e filha relatam suas batalhas, alegrias e história.

Catraca Livre: Qual foi o seu papel da sua mãe quando você entendeu quem era?

Lekka – Eu lembro de muita coisa. Desde os 6 anos, eu me sentia uma criança “diferente”. Queria estar numa fila de mulheres, estar no meio das meninas, me comportar como uma menina. Qual foi a importância da minha mãe? Não me reprimir, simplesmente deixava acontecer. Ela deu liberdade pra que eu pudesse me conhecer. Sempre foi uma mãe muito amorosa, sabia dar limites, mas nunca me oprimiu. Nunca me traumatizou, isso eu agradeço muito!

“Sempre foi uma mãe muito amorosa, sabia dar limites, mas nunca me oprimiu. Nunca me traumatizou, isso eu agradeço muito!”, conta Lekka

Como o apoio da sua mãe influenciou na profissional que você é hoje?

Aconteceu naturalmente. Com 16 anos eu tinha uma opção de vida: virar garota de programa ou cabeleireira. Meu meio familiar não me permitia escolher pela primeira opção. Então comecei a fazer cursos. Minha família sempre foi muito humilde, tinha o dinheiro contado para comer, pagar aluguel, água e luz.

Minha mãe sempre foi a provedora da casa, arcou com tudo, mas não tinha dinheiro para dar um curso pra gente. Tinham cursinhos em São Caetano (cidade vizinha) de estética, corte e lavagem de cabelo, bem baratinhos. Eu pedia pra minha mãe um trocadinho, ia juntando e fazia esses cursos. Então tive a oportunidade de entrar em um salão, peguei gosto e deslanchei na minha carreira.

“Se você quer que um filho se torne alguém na vida, tem que amar, assim como minha mãe fez. O amor que ela me deu me fez a mulher que sou hoje”, afirma Alessandra

Como ser filha da Dona Wilma influenciou na sua vida social e na pessoa que você é hoje?

Em tudo! Minha mãe é uma mulher muito guerreira. Nada nessa vida vem por acaso, por isso a gente tem que batalhar. Minha mãe ensinou a gente a ser batalhadores. Eu trabalho 12 horas por dia, aqui no salão, fora o que trabalho em mídias sociais para captar clientes. Essa guerreira que me tornei hoje é graças à minha mãe.

Queria falar uma coisa que sempre vem no meu coração quando ouço histórias de mães que não aceitam a filha transexual, o filho gay ou travesti. Filho nenhum pediu pra nascer, ao mesmo tempo mãe nenhuma tem obrigação a nada. Mas uma única coisa mãe tem obrigação: amar. Se você tem uma filha ou um filho transexual, dê amor.

Se você quer que um filho se torne alguém na vida, tem que amar, assim como minha mãe fez. O amor que ela me deu me fez a mulher que sou hoje. Me tornei uma boa mulher graças a essa mulher. Graças a ela eu não “fui pro mundo”. Então ame, porque do mesmo jeito que você ama, o seu filho vai te amar. Minha mãe só me deu amor e hoje eu só dou amor pra ela.

  • Leia abaixo a entrevista com Wilma Azevedo:

Catraca Livre: Como foi quando você descobriu a verdadeira identidade de Lekka? 

Wilma – Tinha a vizinha que falava: “Você já não notou que ele é diferente?”. Falava “não”, mas na minha mente eu notava, eu sabia. Enfrentei muita briga. Não tinha, nem tenho, esse preconceito. Meu medo era que acontecesse alguma coisa com ela. Eu deixava o barco correr. Pensava que só “aquele lá de cima” vai saber o que ela vai ser, homem ou mulher.

O meu medo era que acontecesse alguma coisa com minha filha, porque conta do mundo onde a gente está. Eu via na televisão aqueles caras que batiam. Tinha medo que ela fosse pras esquinas, meu problema era esse. Só entregava pra Deus.

Sempre falava pra ela: “saiba com quem você anda”. Aí, ela começou nesse negócio de salão de cabeleireiro, abriu um salãozinho no quintal da minha casa.  É essa é a filha que eu tenho hoje, graças a Deus. Não adianta a mãe xingar, maltratar. É pior!

A gente tem que lutar e dar exemplo. Ela me deu exemplo, porque mostrou pra mim que o que as pessoas pensavam dela estava errado. Tenho três filhos, mas quem dá mais atenção pra mim é ela. Eu quero mais o que? Por que eu iria pegar no pé da minha filha? Falo filha de boca cheia!

“Por que eu iria pegar no pé da minha filha? Falo ‘filha’ de boca cheia!”, diz Wilma

Como é ser mãe da Lekka?

E não tenho o que dizer da minha filha. Ela foi tudo pra mim, é tudo pra mim até hoje. O que peço ela faz, me obedece, a gente conversa, não é uma filha desmiolada. Me preocupo com ela quando está aqui no salão e fica até 11 horas, meia-noite, trabalhando. Quero que ela viva a vida também, está nova ainda.

É isso que eu falo da minha bonequinha. Para mim, ela é uma porcelana. Ela é como eu, gosta das coisas certas, assim como eu ensinei a ela. É preciso respeitar e ser respeitada, mas não levar desaforo pra casa. Sempre ensinei a ela: “anda certo, faz o que você puder por uma pessoa, mas não deixa ninguém pisar em cima de você”. Foi isso que ensinei a todos meus filhos.

Os filhos tem que ter apoio da mãe. O amor de mãe é o necessário. Se eles forem fazer alguma besteira, vão pensar primeiro: “não, minha mãe falou isso pra mim, então vou andar assim”. Foi o que eu fiz com ela e, graças a Deus, não me arrependo. Isso eu acho que é amor de mãe. E ninguém mexe com os meus filhos, porque eu brigo!

Eu não tenho nem mais o que falar. A Lekka já falou tudo o que eu sinto por ela e o que ela sente por mim. Em primeiro lugar vem o amor. Sem amor, a gente não vive.

  • Esta entrevista compõe a série de reportagens “Mães que TRANSformam“, na qual trazemos histórias de mães que ultrapassaram diversas barreiras impostas pela sociedade para quem é transexual e transgênero.
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