Pandemia expõe situação de desamparo dos entregadores de delivery
Motoboy criou petição para que empresas de aplicativo forneçam álcool em gel e alimentação aos trabalhadores durante a crise do novo coronavírus
Mais de 100 mil pessoas estão pedindo que as empresas de aplicativo de delivery pensem na proteção de seus entregadores expostos ao risco do novo coronavírus. Assim como a dura realidade de diaristas, moradores de rua, autônomos e trabalhadores informais, a pandemia também escancarou a rotina dos motoboys que passam até 14 horas por dia cruzando ruas e avenidas para garantir que a parte privilegiada da sociedade possa ficar isolada em casa.
A mobilização acontece em um abaixo-assinado online, criado pelo motoboy Paulo Lima, para pressionar grandes empresas de aplicativo de delivery, como iFood, Uber Eats e Rappi, a distribuírem equipamentos de proteção, álcool em gel e alimentação aos entregadores. Segundo conta, os trabalhadores estão se sentindo largados à própria sorte, com medo de contrair a doença e ainda levá-la para dentro de casa, infectando filhos, pais idosos e esposas.
Para driblar o risco, eles fazem o máximo que podem. “Quando eu chego em casa, peço para a minha esposa esconder minha filha para ela não correr e me abraçar. Eu tiro o sapato, já corro para tomar banho para depois poder abraçar a minha filha. Se eu cair doente, como vai ser? Quem vai levar o sustento para minha família?”, pergunta o motoboy no texto do abaixo-assinado. A petição, que cresce a cada dia, está aberta na plataforma Change.org.
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Apesar de todas as cautelas, Paulo sabe que apenas essas medidas são insuficientes. O motoboy explica que não tem condições de arcar com o custo do álcool em gel e, além de trabalhar desprotegido, ainda precisa enfrentar a fome, sentindo o cheiro da comida que carrega nas costas para outras pessoas. Por isso, recorreu à petição numa tentativa de sensibilizar as empresas de delivery sobre o drama que seus entregadores estão vivendo.
“A gente não tem como voltar para almoçar em casa, por exemplo. Corro o risco de levar o vírus para dentro de casa. Teria que trocar de roupa e fazer todo o processo de higienização na hora do almoço e no fim do dia. Imagina quanto tempo isso levaria? A gente já ganha pouco, ganharia menos ainda e colocaria a nossa família em mais risco”, desabafa o motoboy.
Como as empresas reagiram à pressão
Paulo lançou o abaixo-assinado há menos de duas semanas. Neste período, recebeu com alegria a demonstração de empatia das mais de 110 mil pessoas que assinaram a petição em apoio à luta dos entregadores. Por outro lado, lamenta as respostas recebidas do iFood e da Rappi e o silêncio da Uber Eats, que até agora não se manifestou sobre a campanha.
Conforme publicações na página da petição, o iFood diz distribuir álcool em gel e material informativo aos entregadores por meio de vans itinerantes em diversos pontos das cidades. Já a Rappi afirma ter importado centenas de milhares de géis e máscaras antibacterianas. Paulo, entretanto, alega que ele e seus colegas não receberam os produtos até agora. Ambas as empresas também não deram retorno sobre o fornecimento de alimentação aos entregadores.
“O iFood criou dois fundos solidários para os entregadores que somam R$ 2 milhões. Há um fundo solidário no valor de R$ 1 milhão para dar suporte àqueles que necessitem permanecer em quarentena”, diz trecho da resposta. “Para atender a necessidade de grupos de risco em permanecer em isolamento, foi criado um segundo fundo solidário também no valor de R$ 1 milhão”, completa a nota sobre os entregadores com mais de 65 anos ou em situação de risco.
A Rappi, por sua vez, ressalta que realiza uma “forte campanha” de educação, autocuidado e prevenção, reforçando todas as medidas que devem ser tomadas por entregadores parceiros, usuários e estabelecimentos. “Também criamos um fundo para proteger nossa comunidade de entregadores parceiros”, informa o comunicado sobre a disponibilização de um benefício para entregadores que tenham sintomas ou sejam diagnosticados com o novo coronavírus. “Caso isso aconteça, os apoiaremos financeiramente nos 14 dias em que precisarão ficar afastados”.
O motoboy espera que a campanha em prol da categoria seja “tão contagiante” quanto o novo coronavírus, para que as empresas abram uma linha de diálogo e os ouçam. “Espero que elas sejam pressionadas e reconheçam a importância de dar atenção aos entregadores, de vir sentar na mesa e ouvir o que temos para reclamar. E esse medo que elas têm de não deixar provas de um vínculo empregatício, repensem. A rapaziada está precisando de ajuda na rua.”
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Falta de opção
Paulo tem 31 anos e há 8 trabalha como motoboy. Há cerca de 9 meses passou a fazer entregas para os aplicativos de delivery por não ter outra alternativa. Diante dos termos “uberização” das relações de trabalho e “neo-escravidão”, prefere nomear a situação dos entregadores como “encurralamento” ante a falta de opção e a necessidade de sobrevivência.
A pandemia da covid-19 chegou para encurralar ainda mais esses trabalhadores, divididos entre todos os tipos de humilhação que passam nas ruas, a necessidade de sustento e os apelos desesperados dos familiares que temem por suas vidas. “Minha mãe a todo momento me pede para parar”, conta Paulo, explicando que, apesar de tudo, precisa continuar.
Outra dificuldade que os motoboys enfrentam, segundo o autor do abaixo-assinado, são os bloqueios dos apps, às vezes sem chance para defesa. “Se você, por algum motivo, não conseguir entregar o pedido do cliente, é muito provável que eles vão te bloquear ou vão colocar uma dívida para você”, comenta Paulo. “Eles não querem perder tempo para averiguar se foi um erro do entregador, do cliente, restaurante, estabelecimento, ou um erro do aplicativo, eles simplesmente bloqueiam porque tem 10 pessoas para entrar no lugar”, aponta.
Paulo foi bloqueado pela Uber no dia do seu aniversário, em 21 de março, depois que o pneu de sua moto furou a caminho de uma entrega, às 23 horas, na Vila Olímpia, bairro nobre de São Paulo. “A Uber falou que eu podia cancelar o produto, que não teria problema nenhum, e no outro dia me bloqueou”, diz o rapaz que agora segue com uma opção a menos de trabalho.
Empatia em meio à pandemia
Paulo sonha em ser cantor de rap desde os 10 anos de idade. A vida adulta o obrigou a trocar as composições por uma rotina de 10 a 14 horas diárias, em cima de uma motocicleta, fazendo delivery de segunda a segunda, às vezes com um dia de folga. A campanha que lidera pelo mínimo de condições de trabalho apela para a empatia do povo e o bom senso das empresas.
Felizmente, apesar de todos os males, a pandemia do novo coronavírus tem despertado o lado humano das pessoas e feito muita gente repensar atitudes e olhar com solidariedade para o próximo. Assim como a petição criada por Paulo, outras duas centenas estão abertas, na Change.org, em busca de alternativas que deem algum alívio aos brasileiros durante a crise.
A plataforma lançou um movimento para dar mais visibilidade às causas, que já acumulam 2,7 milhões de assinaturas. Confira: https://coronavirus.changebrasil.org/