Liniker se descobre uma mãe trans na nova série ‘Manhãs de Setembro’
Produção da Amazon Prime traz reflexões sobre a dura vida de uma pessoa transexual; roteirista da série conversou com a Catraca Livre sobre a experiência
Nesta sexta-feira, 25, a Amazon Prime Video lançou a série “Manhãs de Setembro”, que tem como personagem principal Cassandra, interpretada pela cantora, compositora e agora atriz, Liniker – este é o primeiro grande trabalho dela atuando. A série de 5 episódios mostra o cotidiano de uma mulher transexual que mora no Centro de São Paulo e divide a sua vida como cantora e entregadora de aplicativos (motogirl). A trama também aborda a relação entre Cassandra e o filho que conheceu 10 anos depois.
A personagem principal
A vida de Cassandra (Liniker de Barros) é dividida entre se apresentar semanalmente no barzinho de Roberta (Clodd Dias) e trabalhar como motogirl, nos aplicativos de entrega. Para além das problemáticas em relação a gênero, a personagem principal se depara com um novo ser humano em sua vida, o seu filho Gersinho (Gustavo Coelho), que apareceu em sua frente pela primeira vez aos 10 anos, ao lado da outra mãe, Leide (Karine Teles).
- Descubra como aumentar o colesterol bom e proteger seu coração
- Entenda os sintomas da pressão alta e evite problemas cardíacos
- USP abre vagas em 16 cursos gratuitos de ‘intercâmbio’
- Psoríase: estudo revela novo possível fator causal da doença de pele
A cantora também vive um relacionamento complicado com o garçom Ivaldo (Thomás Aquino), com quem se relaciona às escondidas, já que ele é o típico homem casado que não tem coragem de assumir o relacionamento com uma mulher transexual.
Gersinho, o filho
Gersinho é um garoto de 10 anos que, até então, mora na rua, junto com a mãe Leide. As duas se conheceram antes mesmo da transição de gênero de Cassandra. O lance de uma noite acabou gerando um filho. O primeiro contato com ele veio ao abrir a porta do recente quitinete alugado, depois de anos tentando arrumar um cantinho próprio.
Leide, que está junto ao garoto, explica rapidamente que o menino é filho dela e que ele gostaria muito de conhecer o “pai”. Gersinho, uma criança totalmente inocente, não se importa com o fato de que o “pai”, na verdade, é uma “mãe” – mesmo que em grande parte do tempo ele continue tratando-a no masculino, por falta de convivência com uma pessoa trans e também pela não orientação em relação aos termos de gênero nessa idade. Ele só quer atribuir esse cargo de responsabilidade para alguém que nunca existiu na vida dele.
Cassandra, uma mulher fria, provavelmente por conta dos perrengues que já encarou na vida, não gosta da ideia de se responsabilizar por uma criança, não agora que ela está crescendo e podendo construir uma vida digna sozinha. No entanto, aos poucos, ela consegue entender este como seu novo papel na vida de uma criança.
Um dos momentos mais bonitos da série é quando Gersinho presencia pela primeira vez a mãe Cassandra cantando a música “Paralelas” de Vanusa. É um momento de hipnose com a voz de Cassandra.
Leide, a outra mãe
De vendedora ambulante a panfleteira, Leide criou o filho Gersinho sozinha por dez anos, se virando entre um “bico” e outro. Por um momento da sua vida, viu-se morando na rua com o filho, dentro de um carro velho, embaixo de uma ponte.
Transfóbica, ela não consegue compreender a transição de gênero de Cassandra, e por algumas vezes, a chama pelo seu nome do registro de nascimento. Ela tem diversos atritos com Cassandra neste reencontro, e na maior parte deles por ser mentirosa e não cumprir com aquilo que promete.
Núcleo com casal gay idoso
Em 2021, apesar da constante violência e ataques aos LGBTQIA+, o mundo para esta comunidade já não é mais o mesmo dos anos 90, em que a homossexualidade ainda era considerada uma doença. Na série, existe o casal gay formado por Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos, ex-Titãs), amigos próximos de Cassandra.
A existência deste casal traz um significado de importância e memorabilidade para a comunidade LGBT no Brasil do século 21. Normalizar e evidenciar casais homoafetivos mais velhos está se tornando uma grande e verdadeira realidade que, por muitos anos, foi preciso esconder para evitar a morte.
Além da representatividade, o casal é o maior respiro cômico do seriado. Aristides, um gay velho afeminado, é louco pelo Santos Futebol Clube – característica que o aproxima de Gersinho – e quebra estereótipos ao afirmar seu fanatismo por futebol, que ainda até os dias atuais é um ambiente desconfortável para LGBTs, justamente pela cultura homofóbica que invisibiliza a presença da comunidade neste espaço.
Conexão com Vanusa
O nome da série, “Manhãs de Setembro”, não é em vão. Na trama, Cassandra é uma grande fã da cantora brasileira, Vanusa (1947-2020), que através de pensamentos, conversa com ela, orientando-a nos caminhos que deve seguir na sua carreira e também na sua vida. A música que foi hit nos anos 70 molda grande parte da série e também da personagem principal, que por muitas vezes se sente “esquecida”, como diz a própria canção.
Mesmo estando muito presente na obra, Vanusa faleceu em novembro de 2020, no meio das gravações e não conseguiu visualizar o trabalho final em sua homenagem.
Relação tóxica com Ivaldo
Ivaldo é o “namoradinho” de Cassandra, ou como ela mesma gosta de chamar, o “filezinho”. Os dois cultivam uma relação “escondida” porque ele é casado e possui uma família. Eles geralmente se encontram no mesmo local de trabalho dele, em uma padaria e, por algumas vezes, é ela quem vai buscá-lo no serviço.
O grande problema é que ele não quer largar a vida de família tradicional que leva e prefere continuar tendo uma vida dupla – o que é totalmente repudiado por Cassandra, que quer ter um amor de verdade.
Ele também passa a saber que a filha Ivana (Inara dos Santos) é lésbica e atualmente está em um relacionamento homoafetivo. Isso o faz refletir sobre as possibilidades de novas configurações de relacionamento, que na cabeça dele, mesmo vivenciando um relacionamento com uma pessoa transexual, ainda parecia inconcebível.
Participação de Linn da Quebrada
Uma das melhores amigas de Liniker, Linn da Quebrada interpreta a também amiga de Cassandra, Pedrita. Esta personagem, que também é cantora, está dentro do ciclo social de Cassandra, sendo aquela pessoa que está ali para quando for preciso, principalmente para falar mal dos homens que tentam quebrar o coração de sua amiga e também algumas verdades que precisam ser ditas por uma amiga trans.
Detalhes da série
Marielle? Presente! A vereadora que foi morta brutalmente em março de 2018 aparece duas vezes na série de forma simbólica. Uma representada em uma grande arte grafitada em um pequeno edifício e outra em uma rua fictícia que também leva seu nome.
Outra percepção ao assistir é a presença do Santos, um dos principais times de futebol de São Paulo e do país. O clube aparece em alguns momentos do seriado, seja no boné, nas camisetas, ou na toalha vendida pelo ambulante no farol. Além do mais, Aristides é torcedor roxo do alvinegro praiano, o que faz ele ter uma conexão direta com Gersinho, também santista. Vale ressaltar que a cantora Vanusa faleceu em Santos, no litoral de São Paulo e seu pai Luizinho era jogador de futebol nos anos 50. Talvez aí esteja a relação do time com a série.
A seta riscada no chão por Gersinho no momento em que ele tenta indicar o local onde dorme – em baixo da ponte – é a mesma utilizada no logo oficial da marca Amazon.
Entrevista com a roteirista da série
Alice Marcone é atriz, apresentadora, cantora, compositora e também roteirista. Ela fez parte da equipe de roteiro da série “Manhãs de Setembro” e já trabalhou em outras obras anteriormente, como “De Volta aos 15” da Netflix e “Todxs Nós” da HBO.
Alice concedeu entrevista à Catraca Livre para falar sobre como foi a experiência de ter participado em um dos processos de produção da série. Acompanhe a seguir!
Como foi a experiência de fazer o roteiro da produção?
Esse foi o primeiro projeto que assino como roteirista, antes tinha trabalhado apenas como assistente e colaboradora de roteiro. Foi muito encantador ocupar essa posição, e ao mesmo tempo muito desafiador. Aprendi muito com a roteirista chefe, Josefina Trotta, e também pude trazer muito da minha visão, ser bem propositiva e acolhida num processo bastante horizontal de sala. Depois de uma fase inicial de desenvolvimento, Marcelo Montenegro se juntou à sala de roteiro, comigo, Jose e Carla Meireles (assistente de roteiro), e tivemos uma sala bem heterogênea, com pessoas muito diferentes entre si, de histórias e backgrounds diversos. Isso foi fundamental pra gente chegar na história com o tônus e com a profundidade que temos, porque nossas diferentes visões de mundo, confrontadas e somadas, puderam alcançar mais assuntos e realidades com mais verdade.
Se você fosse definir a “Cassandra” para outras pessoas que não a conhecem ainda, como seria?
Uma mulher casca grossa, que aprendeu a ser assim pelas dificuldades da vida, mas que transborda sensibilidade na sua expressão artística e com aqueles que conseguem fazer parte do seu mundo.
Qual a importância de uma mulher transexual ser roteirista de uma história de uma personagem transexual?
Acredito que a minha presença ali tenha sido fundamental para trazer vários aspectos específicos e fundamentais da vida de uma mulher trans que não seriam tão facilmente acessados por pessoas cis, como por exemplo o pajubá que faz parte do vocabulário de Cassandra, ou mesmo várias questões afetivas que atravessam seu relacionamento amoroso com Ivaldo e seu passado familiar. Mas eu acho que Cassandra é um resultado do trabalho coletivo de todo mundo na sala, e a nossa coletividade foi muito importante para termos uma personagem não estereotipada e múltipla em camadas. Sinto que minha perspectiva em contato com a de todos na sala também foi muito importante para construir todo o universo da série, não só Cassandra, tratando o tema de família e redes de afeto de uma maneira muito única e inovadora para os padrões do audiovisual.
O que você considera como maior desafio durante o processo de criação?
Acredito que tenham sido dois os principais desafios: o primeiro, entender que Cassandra e outras personagens com quem eu mais me identificavam eram parecidas comigo em muitos aspectos, mas também muito diferentes em outros – e sobretudo, que eram personagens de uma história, e não reflexos da minha vida. Entender essas diferenças foi difícil, pois muitas vezes eu me via projetando minhas próprias questões nas personagens, e isso pode ser bom para adensar conflitos e dar realidade a eles, mas também pode ser problemático quando perdemos de vista a história, o tom e as escolhas que estamos fazendo dramaticamente. Aprender a diferenciar minhas próprias escolhas das de Cassandra e outras personagens da trama é entender profundamente as personagens que estávamos construindo, e foi um dos desafios mais complexos dessa sala – e, na verdade, de todo projeto de roteiro em que me envolvo, pois de uma forma ou de outra os personagens e seus conflitos sempre partem de questões de quem está escrevendo. Por isso a técnica de dramaturgia e construção de personagem é tão importante: para podermos nos separar da história e das personagens e olhar para elas com distância e crítica. O outro grande desafio foi entender os limites e as implicações de estar escrevendo uma série que carrega a alcunha de “representatividade” e “diversidade”. Isso foi muito difícil porque a todo momento eu me via querendo criar aspectos de personagem e conflitos que ajudassem a levantar pautas ou questões de um grupo social. Mas uma personagem sempre vai ser uma só, com seus recortes específicos, e nunca vai dar conta de resolver e satisfazer todas as questões levantadas por um grupo que também é heterogêneo. Esse projeto foi fundamental para eu entender que quanto mais humanizada, única e singular for uma personagem LGBTIA+, negra, ou de qualquer outro grupo social oprimido, mais interessante pode ser essa ideia de “representatividade” que ela carrega. Cassandra não é uma bandeira, não é um discurso: é uma personagem. Com erros, acertos, dores, amores. É um ser humano, com questões que podem ser universais e atravessar muitas pessoas. E aí, a representatividade talvez alcance ainda mais espectadores que podem ter empatia e se identificar com uma história que, por mais única e singular que seja, remeta às próprias questões de quem está assistindo.
Quais foram as cenas que mais te causaram momentos de emoção durante a série?
Acho que minhas cenas favoritas são 3: quando Gersinho vê ensaiando no Metamorphosis e fica extremamente emocionado; quando Cassandra e Ivaldo fazem amor intensamente na quitinete de Cassandra, retomando aquele espaço que estava até pouco dominado por Leide e Gersinho e trazendo uma representação de amor, desejo e afeto muito especial; e quando Cassandra, Pedrita e Roberta conversam sobre suas vidas amorosas, sobre Ivaldo e sobre o lugar do amor na vida de uma travesti.