Se ‘Por Amor’ fosse escrita hoje, Eduarda seria crucificada?
Relacionamento abusivo em novela de 20 anos desperta revolta no público que acompanha a reprise
Reprisada pela quarta vez na TV Globo, entre canal aberto e pago, a novela “Por Amor”, escrita por Manoel Carlos em 1997, está fazendo o maior sucesso na reexibição de 2019 no “Vale a Pena Ver de Novo”. Embora a razão natural da repetição das histórias seja a de resgatar a nostalgia que o público carrega de uma época boa, nem todo mundo assiste à trama com o mesmo olhar da primeira vez.
Afinal, as pessoas cresceram, o mundo mudou, o comportamento evoluiu – ou pelo menos, deveria – e o melhor de tudo: as redes sociais surgiram! E com elas vieram aqueles pensamentos críticos, cheios de julgamentos, que fazem com que as pessoas não enxerguem mais a novela da mesma forma. E cá entre nós, ainda bem! Porque não há nada mais ultrapassado do que defender a liberdade poética fechando os olhos pra realidade que nos cerca.
Pensando nisso, o que podemos concluir da obra de Manoel Carlos se ela fosse produzida hoje, 22 anos depois? Uma lástima – pra dizer o mínimo. Vamos aos argumentos? Vamos!
Neste texto iremos analisar os perfis dos protagonistas da novela, Marcelo e Eduarda, interpretados por Fábio Assunção e Gabriela Duarte. As histórias dos dois formam a trama que comanda o folhetim. Ele, empresário, herdeiro de uma família rica do Rio de Janeiro, enquanto ela, crescida debaixo das asas da mãe superprotetora, e que abriu mão de construir uma carreira aos 20 e poucos anos para se casar com o príncipe dos seus sonhos e ser sustentada pelo marido.
Os dois se apaixonam, se casam, têm um filho, e tudo ficaria bem se não fosse o ciúme doentio que envolve o relacionamento. Primeiro porque Marcelo vive cercado pela ex-namorada Laura (Vivianne Pasmanter), que tenta reconquistá-lo até mesmo na frente de Eduarda. Segundo que o médico que cuida de Eduarda, César (Marcelo Serrado), tem uma paixonite por ela desde a adolescência. E como todos eles escolhem resolver a situação? Na porrada. Isso mesmo! Nas últimas semanas, não tem um capítulo da novela que passe sem mostrar um ‘arranca rabo’ entre Marcelo e outro personagem – até o irmão dele, Léo (Murilo Benício), já apanhou do valentão. E por quê? Porque Eduarda estava cansada do relacionamento abusivo que vivia com o marido machista e, quando desconfiou de uma traição, pediu o divórcio.
Foi aí que o pesadelo começou. Ele, que se diz apaixonado por ela, passa a persegui-la. E quando percebe que não conseguirá reconquistá-la parte para agressão psicológica – dizendo que ela não tem profissão, não sabe cuidar da casa, nunca trabalhou, é burra –, e ainda por cima tenta agredi-la fisicamente quando perde a razão.
Quando Eduarda resolve reagir a todo esse trauma, o público que acompanhava a novela na época passou a odia-la alegando que a personagem é chata, mimada, desagradável e que está desperdiçando a grande chance da sua vida se separando de Marcelo. Em contrapartida, o empresário vestiu a carapuça do apaixonado doentio, incompreendido, que está apenas tentando reconquistar a mulher de sua vida.
Quem assistiu à novela desde o início deve reconhecer que Eduarda, de fato, mostra ser insegura desde o início do relacionamento e tem alguns comportamentos duvidosos, como maus-tratos ao pai, Orestes (Paulo José), por ele ser alcoólatra. Porém, nada justifica o fato de o público querer que ela fique presa a uma relação destrutiva, né?
Será que hoje em dia, com tantas discussões sobre empoderamento feminino, relacionamento abusivo, machismo, violência doméstica, com as mulheres ocupando seus lugares na sociedade, Eduarda seria taxada de chata e mimada mais uma vez? Uma mulher que levou tapa na cara, foi perseguida, vítima de chantagem emocional, de pressão psicológica, induzida a acreditar em uma provável traição?
É inaceitável pensar que uma história desta seja exibida na TV aberta nos dias de hoje sem despertar um pouquinho que seja da revolta do público. A hashtag #PorAmor, por exemplo, é uma prova de que a sociedade ainda tem salvação. Pois ela sempre aparece entre os assuntos mais comentados no Twitter durante a exibição da novela, e em grande parte para fazer protestos contra os comportamentos abusivos dos personagens. Mas há também, é claro, aquele público que quer apenas curtir todo o drama que marcou época na teledramaturgia brasileira. O importante é destacar que, a passos bem beeeeem lentos, estamos evoluindo. E que nossa opinião já mudou, e muito, e tende a mudar ainda mais.