O isolamento social decorrente da pandemia do novo coronavírus trouxe consigo a distância física, e necessária, entre famílias e amigos. A saudade, palavra em português intraduzível para os demais idiomas, não pôde mais acabar em um encontro em casa, no bar ou nos almoços de domingo. No lugar disso, a única forma segura de demonstrar carinho a pessoas próximas passou a ser por meio de mensagens, ligações ou videochamadas.
No caso dos profissionais da saúde, o distanciamento se fez ainda mais necessário para proteger a vida daqueles que amam. Desde o início, médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e todos os demais funcionários de hospitais buscaram formas de ter o mínimo de contato possível com quem moram em suas casas. Alguns passaram a se isolar em quartos sozinhos, outros requisitaram abrigo em hotéis, mas ainda há muitos sem qualquer opção de segurança.
Passado cerca de um mês e meio de quarentena, um dos aspectos mais difíceis para quem está na linha frente do combate à covid-19 é a falta que mães e filhos sentem uns dos outros. Além dos profissionais que precisaram se distanciar de familiares, muitas profissionais da saúde são mães e tiveram que deixar de lado, por um tempo, os cuidados com os filhos para salvar vidas e preservar a saúde de todos.
E como será o Dia das Mães de quem cuida da população? Para responder esta e outras perguntas, a Catraca Livre convidou seis enfermeiros (as) e técnicos (as) em enfermagem, que relataram suas histórias e dificuldades deste período e enviaram mensagens a seus filhos e/ou mães. Confira as histórias:
‘Decidi dormir no terraço para proteger minha mãe’
Ao saber que a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em que trabalha seria referência de Campina Grande, na Paraíba, no combate ao novo coronavírus, o técnico em enfermagem Joseildo da Silva Batista, de 34 anos, não pensou duas vezes e decidiu montar um “quarto” no terraço da casa em que vive com a mãe, de 74 anos, e duas irmãs.
Filho mais novo de 5, Ildo pegou gosto pela profissão, na qual é formado há 3 anos. Antes de ser técnico em enfermagem, já trabalhou na indústria, com telemarketing, em lojas, como maqueiro de hospital e até mesmo chegou a ser jogador de futebol profissional — carreira que seguiu até os 20 anos, mas teve de largar para estudar.
O trabalho do técnico no hospital é focado na parte dos cuidados, como medicação dos pacientes e banho no leito, se necessário. Desde março, seu dia a dia é auxiliar pessoas diagnosticadas com a covid-19 ou em processo de investigação. Já o salário, de prestador de serviço, é de R$ 1.045, que, com os descontos do INSS, cai para R$ 946.
Logo que percebeu a gravidade da pandemia, Ildo colocou uma cama velha no quintal da casa, uma rede, um varal e um lençol. Assim criou um “puxadinho” para dormir após o trabalho. “Quando vi a forma de contágio e o quanto é letal para idosos, pensei: ‘Não, não posso ficar dentro de casa, não posso ter mais contato com minha mãe, só de longe’”, conta.
Por causa da rinite alérgica, o paraibano não conseguiu ficar na cama, mas tem se acomodado na rede. “Mesmo com desconforto grande, a necessidade falou mais alto: salvar a vida da minha mãe, pelo bem-estar dela”, completa.
A história do técnico em enfermagem causou comoção após uma reportagem da BBC Brasil. Com a repercussão, o site Razões para Acreditar criou uma vaquinha online com o objetivo de arrecadar dinheiro para alugar um quarto de hotel a ele. Felizmente, a prefeitura da cidade tomou conhecimento da situação e já disponibilizou um local para Ildo se hospedar. Com as doações, que ultrapassaram a meta, ele decidiu auxiliar quem precisa: já entregou cestas básicas, apoiou dois lares de idosos e um hospital de câncer. “Eu agradeço a todos que doaram, de coração.”
O amor pela mãe é o que motivou o profissional desde o início da pandemia e também representa a parte mais complicada de tudo o que está vivendo. “O que tem sido mais difícil para mim neste momento é o distanciamento da minha mãe, a falta de um cheiro, de um abraço, de um aperto e de uma benção, que agora só damos de longe”, afirma.
O contato com a mãe, neste momento, só é possível com 3 ou 4 metros de distância para olhar e ver como ela está. “Ela teve um infarto há 40 dias, e eu sofri muito com isso”, lembra. Além do medo de contaminar a família, outra questão que o aflige é o receio de que seus colegas de trabalho adoeçam. “Graças a Deus deu tudo certo e estamos seguindo na linha de frente, firmes e fortes. O meu maior medo foi solucionado. Agora é seguir até que a gente consiga acabar com essa situação tão difícil para todos”, finaliza.
‘Parece que falta um pedaço de mim’
Apesar de não atuar diretamente com pacientes diagnosticados com a covid-19, a enfermeira Gabriela Faria, que trabalha em um hospital público em São Paulo, está há mais de um mês longe da filha, Stella, de apenas 3 anos de idade. Mãe solo, toda sua família vive no interior do estado, a mais de 400 quilômetros de distância, e ela não tem rede de apoio na capital paulista.
Formada pela Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA), onde vivem seus parentes, Gabriela se mudou para São Paulo com o objetivo de fazer residência em cardiologia no Instituto Dante Pazzanese. Atualmente, trabalha como gestora de cirurgia torácica em um hospital público de alta complexidade no atendimento do novo coronavírus. “Não tenho atuação direta na assistência aos pacientes, trabalho com planejamento dos recursos humanos e materiais para o atendimento dos pacientes, além das atividades de ensino e pesquisa”, explica.
Segundo Gabriela, todas as pessoas próximas a ela na cidade também são da área da saúde, então, não podem ficar de quarentena. Sua única opção foi levar a criança para a casa dos avós, em Marília (SP). “A distância é o que tem mais mexido comigo. Stella é muito independente e esperta. Entende que eu trabalho no hospital e que está de férias na casa da vovó e do vovô, que cuidam dela com muito amor. Está sendo uma diversão, só tenho a agradecer”, relata.
No entanto, as chamadas de vídeo não suprem a necessidade que a enfermeira sente do toque, do cheiro e da convivência com a filha. “Parece que falta um pedaço de mim. Mas entendo que foi a melhor escolha.” Já o Dia das Mães passará sozinha e não vê problema. “Assim que tudo passar comemoraremos a vida! O maior presente é que todos estejam bem e saudáveis”, finaliza.
Como mãe e profissional da saúde, sabe o que muitas colegas estão vivenciando neste período longe dos filhos e familiares próximos. “Vamos sair dessa, vamos superar essa crise e tudo vai passar. Um dia contaremos aos nossos filhos que a distância era necessária, pois estávamos ajudando a salvar vidas”, enfatiza.
‘Eu não abraço a minha mãe há quase 40 dias’
A enfermeira Vivian Cristina Felipe, de 43 anos, admite que a distância da mãe não tem sido fácil, mas é necessária. No começo da pandemia, ela viu uma colega de trabalho, de 35 anos, perder a vida para a covid-19. Elas trabalhavam juntas no Hospital Santa Marcelina, na Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, região onde poucos moradores têm respeitado o distanciamento social.
Um dia depois da morte da colega, Vivian chegou a postar um vídeo desabafando sobre a situação de risco a que os profissionais de saúde estão expostos e a falta de consciência das pessoas, que continuavam saindo às ruas para beber cerveja e se divertir como antes. Na publicação, a moradora de Cidade Tiradentes, vestida de jaleco branco, chorava e contava que a pandemia pouco estava afetando a rotina dos moradores no bairro onde nasceu e cresceu.
Se por um lado a vida dos vizinhos seguia e ainda segue a mesma, a dela mudou muito de uns tempos pra cá. Ela, que mora no mesmo prédio da mãe, Márcia Maria, não a encontra há mais de um mês. “Está difícil, porque eu não abraço a minha mãe há quase 40 dias, desde quando começou tudo isso”, diz.
As duas, que viviam grudadas, precisaram suspender os almoços e as idas ao mercado juntas, e as conversas agora só acontecem a distância. É pela janela que batem papo e matam um pouco a saudade. “Eu passo na casa dela, chamo e ela abre a janela. Então, pergunto se ela está precisando de alguma coisa, se quer que eu vá buscar algo, e a rotina dela está dentro de casa”, conta. “Ela é meu bem maior. Eu, da área da saúde, não posso colocar a vida da minha mãe em risco.”
O Dia das Mães das duas, assim como o de muitas famílias, será diferente neste ano. O almoço de domingo de Vivian será substituído por um plantão para tratar outras mães e filhos hospitalizados. “Na realidade, queria dar só um presente para minha mãe: que tudo isso passasse e que a gente pudesse se abraçar, indo ao mercado. Eu estou até sentindo falta dos mercados da Márcia Maria, então, a melhor coisa seria que isso passasse o mais rápido possível não só para a minha mãe, mas pra todos nós. Esse seria meu presente”, afirma.
‘Ela me incentivou a seguir meus sonhos’
No maior desafio de sua carreira — a pandemia do novo coronavírus —, o técnico em enfermagem Allam Reis atribui suas conquistas na área da saúde à mãe, Edenilza. “Ela viu que eu tinha talento e vocação, e me incentivou a seguir meus sonhos”, conta. Desde que percebeu que tinha o dom, o profissional, morador de Itaquera, na zona leste de São Paulo, começou a se dedicar a cuidar das pessoas.
De acordo com Allam, no início, foi difícil entender as dinâmicas da área da saúde, mas, de lá para cá, 20 anos depois, o técnico em enfermagem se desenvolveu da melhor forma possível. “Neste período, trabalhei em alguns hospitais, começando como maqueiro, depois fui me destacando ao trabalhar na CME, que é um local que prepara material estéril para utilizar nos pacientes. Depois, me sobressaí no centro cirúrgico, nas cirurgias de grande, pequeno e médio porte”, recorda.
Hoje, além do cargo de técnico em enfermagem no Hospital Vila Nova Star, na zona sul da cidade, ele cuida de pacientes em casa também. “Muitas vezes sou indicado pelos próprios médicos. Cuidar de um ser humano é sempre complexo, tem suas particularidades. Me sinto uma pessoa abençoada por ter o dom de ajudar a salvar vidas”, diz Reis, orgulhoso. Em relação à covid-19, há uma grande preocupação, pois é um inimigo invisível. “Creio que com muito trabalho, esforço, dedicação e estudo a gente vai sair dessa.”
A importância da figura materna em sua trajetória na saúde tem a ver com a relação próxima entre eles. “Ela é uma pessoa espetacular, fora do comum. Sem adjetivos para defini-la”, pontua. A distância é ruim, mas se fez necessária para protegê-la. Para o filho, o Dia das Mães não passará despercebido. “Desta vez, vai ser através de vídeos e mensagens, por conta da doença.”
Allam ressalta que mães de profissionais da saúde devem ter orgulho de seus filhos, sobretudo neste momento, por serem guerreiros. “Nós somos linha de frente, e tudo que a gente sabe em termos de bondade e de carinho aprendemos com vocês, mães”, completa.
‘A nossa rotina mudou completamente’
O Dia das Mães da técnica em enfermagem Ana Carla Santos deste ano será de muita esperança, mas, infelizmente, não perto dos filhos ou de sua mãe. Nascida no Recife (PE), a profissional passará a data trabalhando na clínica pediátrica do Hospital Geral de Itapevi, em São Paulo, cercada de outras mulheres, algumas também com filhos, que estão isoladas sem poder receber visitas.
Aos 40 anos, Ana Carla mora em São Paulo desde 2017, onde vivenciou a maior parte de sua atuação como enfermeira. Passou por diversos hospitais, do Recife e da capital paulista, como InCor (Instituto do Coração), São Luiz, Sírio-Libanês e Hospital Geral de Osasco. Hoje, trabalha na clínica pediátrica da instituição em Itapevi, e, com o surgimento da covid-19, tudo foi adaptado para dar assistência ao maior número de pacientes.
“A nossa rotina mudou completamente. Nos primeiros dias foi muito assustador, o medo tomou conta de todos nós. Algumas colegas pensaram em pedir demissão, outras choravam, outras queriam ir embora… Aos poucos, fomos tomando consciência, dando apoio uns aos outros e nos fortalecendo para enfrentar esta guerra. Tivemos que nos armar com equipamentos de proteção, além de um rigoroso sistema de isolamento social”, lembra.
Diante de tantas mudanças, o que tem sido mais difícil, segundo ela, é lidar com uma doença que tem levado tantas pessoas à morte. A rotina ainda tem outras dificuldades, como ter que ficar o dia todo com os EPIs (equipamentos de proteção individual) e não poder tirá-los para evitar o risco de se contaminar. “Tem dias que mal conseguimos ir ao banheiro, não podemos sair do setor nem ver nossos amigos. Tem sido bem cansativo. A cada final de plantão, agradecemos por mais um dia.”
Mesmo com os desafios diários que ela e os colegas passam, como ficar longe da família e conviver com a dor e a morte, Ana Carla ressalta que ama sua profissão. “E também temos nossas alegrias: quando vemos uma criança nascer ou quando o paciente recebe alta e vai para casa”, continua.
Em relação à convivência com os filhos, para a enfermeira, isso tem sido fácil. Como são adolescentes, eles ficam em isolamento dentro de casa e entendem a importância disso. Quando volta do trabalho, eles correm para vê-la, de longe, e fazem perguntas sobre o dia no hospital. “Não podemos nos abraçar nem beijar. Mantenho distância em casa, então não ficamos mais na cama vendo TV juntinhos, deixo minhas roupas longe deles”, relata.
A outras mulheres, Ana Carla dedica uma mensagem de afeto no Dia das Mães. “Primeiro de tudo, é preciso manter a fé em Deus, não se deixar abater pelo medo. Aproveitem o momento para cuidar de seus filhos com muito carinho. E, mesmo que neste dia especial os abraços não possam acontecer, que os seus olhos possam expressar todo o amor que sentem.”
‘Não sei o que é um Dia das Mães sem meus filhos’
Em 13 anos como enfermeira, Daniela Nicolau, 38, nunca havia passado por um desafio tão grande como tem sido a luta contra o novo coronavírus. Apesar de não trabalhar diretamente com pacientes infectados pela doença, a profissional da saúde vivencia os reflexos da pandemia diariamente. “Em uma semana, estávamos com o quadro completo de enfermeiros, sete no total. Na seguinte, três deles estavam afastados, uns com suspeita e outros confirmados com a covid-19.”
Daniela sempre atuou em UTI, primeiro na de adultos, por quatro anos, e o restante do tempo na pediátrica, com segmento em cardiologia e cirurgias pós-cardíacas. Atualmente, está no InCor (Instituto do Coração), em São Paulo. Para ela, o momento tem sido bastante preocupante. “A gente nunca sabe se vai se contaminar ou não porque todos os dias seguimos protocolos diferentes e sempre recebemos informações novas”, explica.
Como profissional da saúde, mãe e filha, a enfermeira conta que está isolada há mais tempo que o restante das pessoas, de modo geral, para prezar pelo bem-estar da família. “A grande maioria dos meus colegas não está com os filhos. Eu, por exemplo, faz mais de um mês que não os vejo”, relata.
Segundo Daniela, o Dia das Mães será especialmente diferente, pois, em 11 anos, não sabe o que é passar esta data sem os filhos. “Também será sem a presença da minha mãe, das minhas irmãs, sem a casa cheia, sem a alegria deles. O silêncio é ensurdecedor”, diz. “O presente que eu gostaria de ganhar, e também queria dar para a minha mãe e a todas mães, é realmente poder estar com a família em segurança, sem a chance de contagiá-los.”
A enfermeira enfatiza que todas profissionais da saúde e mães que conhece estão preocupadas e sentem muita falta de quem amam. “Estamos cansadas, abaladas, preocupadas e exaustas psicologicamente falando. Mas, neste Dia das Mães, o que a gente mais queria era poder abraçar vocês e estar junto da família”, acrescenta.