Por que Pepe Mujica foi considerado o presidente mais pobre do mundo?

Mujica viveu em uma pequena chácara, dirigindo um Fusca azul 1987 — símbolos de uma coerência rara entre discurso e prática política

14/05/2025 05:45

Mais do que um estilo pessoal, Mujica transformou sua maneira de viver em um posicionamento político – Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Mais do que um estilo pessoal, Mujica transformou sua maneira de viver em um posicionamento político – Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

José Alberto “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai e uma das figuras mais emblemáticas da política latino-americana, faleceu nesta terça-feira, 13, aos 89 anos, em Montevidéu. A morte foi confirmada pelo atual presidente do país, Yamandú Orsi, que declarou luto nacional e prestou homenagem ao ex-mandatário: “Foi presidente, ativista, referência e líder. O Uruguai perde um de seus grandes.”

Mujica enfrentava um câncer de esôfago em estágio avançado, diagnosticado em abril de 2024. A doença, que se espalhou para o fígado, o levou a receber cuidados paliativos nos últimos meses, em sua residência rural na capital uruguaia, onde permaneceu até o fim ao lado da esposa, a ex-senadora Lucía Topolansky.

Conhecido mundialmente por seu estilo de vida austero, Mujica ocupou a presidência do Uruguai entre 2010 e 2015. Recusou regalias e doou grande parte de seu salário para causas sociais. Viveu em uma zona rural, dirigindo um Fusca azul 1987 — símbolos de uma coerência rara entre discurso e prática política.

Durante seu mandato, liderou iniciativas progressistas, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a regulamentação da maconha e políticas sociais de inclusão. Ganhou respeito internacional não apenas pelas reformas, mas pela maneira franca e humana com que conduzia o debate público.

Ao anunciar sua saída definitiva da vida política, em 2020, Mujica deixou uma mensagem que ecoa com ainda mais força após sua morte: “O poder não muda as pessoas, só revela quem elas realmente são.”

Sítio presidencial 

Enquanto muitos chefes de Estado ao redor do mundo se instalam em palácios e residências oficiais, Mujica tomou uma decisão inusitada: recusou-se a viver na residência presidencial.

Preferiu, ao lado da esposa, continuar no mesmo sítio simples onde morava antes de chegar ao cargo mais alto do país, nos arredores de Montevidéu. Sem empregados domésticos, com segurança mínima e uma vida longe do protocolo, o casal também optou por não ter filhos.

Fusca azul celeste 1987

Essa postura, no entanto, não se limitou à moradia. Mujica adotou um estilo de vida que contrastava com o que se espera de um presidente. Dirigia pessoalmente seu lendário velho Fusca azul, em um caso inédito de sobriedade na política.

O carro, com pintura desbotada e quilometragem alta, virou uma espécie de extensão da personalidade do ex-presidente: simples, resistente e imune ao luxo.

Contudo, o pequeno Volkswagen atraiu a atenção do mundo em 2014, durante uma cúpula do G77+China na Bolívia, quando um xeique árabe — por meio de intermediários — ofereceu mais de um milhão de dólares pelo veículo. A resposta de Mujica? Uma surpresa genuína, seguida de um sorriso e uma negativa firme. “Tenho o carro como um amigo”, disse à época.

A resistência em vendê-lo não era apenas afeto: era filosofia. Mujica via no automóvel um manifesto sobre o que acreditava ser o verdadeiro valor das coisas. “Não é o carro que tem valor. É a história que se carrega com ele”, afirmou em entrevistas posteriores.

Mujica viveu em uma pequena chácara, dirigindo um Fusca azul 1987 — símbolos de uma coerência rara entre discurso e prática política – Ricardo Stuckert/PR
Mujica viveu em uma pequena chácara, dirigindo um Fusca azul 1987 — símbolos de uma coerência rara entre discurso e prática política – Ricardo Stuckert/PR - Palácio do Planalto/Wikipedia

Assim, é possível dizer que o Fusca de Mujica nunca foi apenas um carro. Foi trincheira ideológica e, acima de tudo, testemunha silenciosa de uma vida dedicada à simplicidade com propósito.

O presidente mais pobre do mundo

Vestia-se de maneira informal — frequentemente de sandálias e sem gravata — e doava cerca de 90% do salário para causas sociais. Foi essa postura entre discurso e prática que lhe valeu, na imprensa internacional, o apelido de “o presidente mais pobre do mundo”. 

No entanto, “Pepe”, como é conhecido entre os uruguaios, rejeitava o rótulo. Cerca vez, em entrevista à BBC, foi direto: “Dizem que sou um presidente pobre. Não, eu não sou um presidente pobre.”

E completou com uma provocação filosófica: “Pobres são os que querem sempre mais, que não se satisfazem com nada. Esses são pobres, porque entram em uma corrida infinita. E não terão tempo suficiente na vida.”

Política com princípios e legado de humildade

Mais do que um estilo pessoal, Mujica transformou sua maneira de viver em um posicionamento político — uma crítica viva ao consumismo, à ostentação no poder e à desigualdade social.  

Pepe Mujica parte deixando um legado de integridade, coerência e humildade. Em um tempo de desconfiança nas instituições e líderes, sua figura permanece como exemplo de que é possível fazer política com ética e empatia. Um homem comum, com ideias extraordinárias.