Aos 50 anos, artista é diagnosticado com autismo: ‘eu não precisava ter sofrido tanto’

Artista plástico há mais de 30 anos, Sattu compartilha sua jornada de autodescoberta e reflete sobre as mudanças após o diagnóstico de TEA

25/04/2025 19:15 / Atualizado em 29/04/2025 15:50

Agonia ao falar sobre si mesmo, hiperfoco nas pinturas, sensação de dor diante de uma plateia… Saturnino Rodrigues da Silva, conhecido como Sattu, ainda não sabia, mas esses sinais já revelavam o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Natural de Itaipé, no interior de Minas Gerais, e morando em São Paulo, ele tem mais de três décadas de carreira como artista plástico e recebeu o diagnóstico de autismo aos 50 anos. A descoberta veio após os diagnósticos dos dois filhos.

Sattu em seu estúdio em São Paulo
Sattu em seu estúdio em São Paulo - Catraca Livre/Caroline Vale

Em entrevista à Catraca Livre neste Abril Azul, mês de conscientização sobre o TEA, Sattu fala sobre sua trajetória e as respostas que surgiram a partir do diagnóstico.

Eu funciono muito bem, eu trabalho, eu tenho as coisas. Só que aí, nesse período de análise, eu fui revivendo muita coisa da minha vida e revisitei muito essa minha fase de adaptação ao mundo”, conta.

Descoberta do autismo e o impacto

O diagnóstico veio depois de uma longa jornada da família em busca de respostas para os incômodos enfrentados pelo filho mais velho, João Pedro.

Ele nos pediu assim: ‘eu preciso saber o que eu tenho’. Encontramos um instituto e, depois de um longo período de análise, ele foi diagnosticado com autismo. Pra gente foi uma surpresa. Aí meu filho mais novo, Tiago, também quis saber, passou pela anamnese e recebeu o diagnóstico, lembra o artista.

Além de João e Tiago, Sattu e a esposa consideram Vitória uma filha
Além de João e Tiago, Sattu e a esposa consideram Vitória uma filha - Arquivo pessoal

Após a confirmação dos dois filhos, a equipe médica sugeriu que Sattu passasse pela avaliação. A princípio, ele relutou: “Para mim não interessava muito. Mas depois eu decidi fazer.

O resultado: autismo nível 1 de suporte, o mesmo dos filhos. A conclusão dos especialistas foi de que o artista é um “autista muito bem adaptado”. “Os especialistas tiveram um pouco de dificuldade na época de dar esse diagnóstico, para ter certeza.

Mesmo com uma carreira consolidada, o diagnóstico trouxe explicações para situações vividas desde a infância.

Os maiores desafios que eu enfrentava foram sociais. E até hoje, por exemplo, para essa entrevista aqui, eu sofri muito de ontem para hoje. Falar de mim é terrível […]. É muito mais que um frio na barriga, é uma dor física. […] Mas como eu tinha que viver nesse mundo, tinha que trabalhar, eu ia passando todos os desafios, um dia de cada vez“, descreve a sensação.

Um dos episódios mais marcantes, relembra, foi durante uma premiação da Editora Abril: “Pra eu subir pela terceira vez, quase eu fugi, minha vontade mesmo era sair dali e não ir de tão doloroso que era eu ter que passar no meio daquela multidão.” Mesmo assim, ele enfrentou o momento, recebendo três prêmios naquela noite.

A arte como caminho natural

Desde criança, Saturnino, nome herdado de seu avô materno, sempre encontrou na arte uma forma de expressão. “Meus cadernos não eram aqueles organizadinhos, eram cheios de rabiscos no meio da matemática.”

Ainda pequeno, se encantava com a bíblia ilustrada da mãe, tentando copiar as imagens que via. 

Então foi assim… natural. A arte veio na minha vida assim, eu apenas continuei desenhando, mesmo depois de criança.”

A primeira oportunidade na arte surgiu de forma inesperada, na TV Imigrantes, retransmissora da TV Cultura, após a indicação do pai de um amigo. “Meu primeiro desafio foi inusitado: o dono da empresa pediu que eu fizesse uma caricatura dele como teste. Em cerca de 15 minutos entreguei o trabalho e fui contratado.”

Depois disso, a carreira deslanchou. Em Belo Horizonte, trabalhou com design gráfico e ilustração. Em 2005, participou do FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos, onde chamou a atenção da Editora Abril.

“Em 2006, mudei-me para São Paulo e comecei a colaborar com a Abril. Em 2007, já ganhei junto com a equipe da revista um Prêmio Esso de Jornalismo. E os prêmios Abril também vieram nesse mesmo ano”, relembra.

Com reconhecimento nacional e internacional, trabalhou para grandes editoras e agências de publicidade. Também recebeu prêmio de Cannes, Clio, e outros na publicidade.

Atualmente, desenvolve esculturas, arte digital e pintura autoral, resgatando antigas inspirações e explorando novas possibilidades. Sua arte é feita para ser bonita e apreciada, segundo Sattu.

Sattu desenvolve tanto obras autorais quanto trabalhos sob encomenda
Sattu desenvolve tanto obras autorais quanto trabalhos sob encomenda - Catraca Livre/Caroline Vale

O que mudou após o diagnóstico de autismo?

Hoje, com 53 anos, Sattu revisita sua trajetória com uma nova perspectiva. Desde o diagnóstico, ele começou a entender aspectos da sua vida que antes pareciam apenas desafios isolados.

Eu poderia, com um tratamento, ter ferramentas para lidar com as situações de incômodo… talvez ter superado desafios sociais com mais tranquilidade. Até uma reunião normal de trabalho, eu ainda sinto incômodo de falar, mesmo com um cliente corriqueiro, que eu falo todos os dias. […] Também acabo recusando convites para participar de podcasts de amigos, por ser ao vivo e eu ainda não me sentir pronto […] Quando eu iniciar o tratamento, eu acho que pode me ajudar bastante”, reflete.

Já em sua arte ele não viu mudanças, até porque acredita que o autismo ajuda em seu trabalho, especialmente pela capacidade de manter o foco em projetos criativos. Ele comenta que clientes e parceiros elogiam sua rapidez na produção.

Eu consigo fazer diversos trabalhos ao mesmo tempo. […] Eu pego uma encomenda ou um projeto pessoal e vou até o fim, independente do que esteja acontecendo ao meu redor”, comenta.

O artista tem mais de 30 anos de carreira
O artista tem mais de 30 anos de carreira - Catraca Livre/Maurício Thomaz

Com o diagnóstico, também veio uma melhora nas relações familiares e a certeza de que poderia ter sofrido menos se tivesse descoberto antes.

Eu fui tocando a vida desse jeito meu, fui levando, mas eu não precisava ter sofrido tanto e, sei lá, algumas coisas na minha vida podiam ter sido bem mais fáceis.”

Por isso, neste Abril Azul, incentiva outras pessoas que suspeitam de TEA a buscarem ajuda profissional. “Essa dificuldade, como é o meu caso, de socialização, acaba atrapalhando bastante e pode fazer você perder oportunidades. Não só de trabalho, mas também de conhecer pessoas, de ter uma vivência boa com amigos. Eu acho que buscar ajuda vai facilitar muito isso, pode aliviar e possibilitar que você tenha uma vida melhor.”

De acordo com a esposa de Sattu, Silviane Almeida, o diagnóstico do marido trouxe mais compreensão para o casamento deles, que já dura mais de 28 anos. 

“O saber é incrível, porque eu amo o Sattu, eu adoro a arte dele, eu sou apaixonada com ele. Mas todo dia de manhã eu tinha vontade de separar dele e ir embora. Porque é muito difícil, porque de manhã a gente é só cortisol. Então o conhecimento traz o quê? Hoje eu penso ‘o Sattu não me odeia, é o momento dele’, entende?!”, explica.

Instituto de arte em Itaipé

Uma novidade é que Sattu e Silviane estão à frente da criação de um instituto de arte em Itaipé, cidade natal dele, que tem em torno de 11 mil habitantes.

A proposta vai além da valorização cultural. “Sempre quis fazer alguma coisa para ajudar […]. A ideia é justamente um fomento para a arte na minha cidade, que lá é um celeiro de talentos”, diz o artista. O espaço também será voltado à inclusão de pessoas neurodivergentes.

Silviane, que é idealizadora e presidente da iniciativa, conta que o projeto nasce da vivência pessoal com o autismo e outros transtornos em família.

“Eu tenho dislexia, discalculia e TDAH. E eles são autistas. Vamos levar de volta o que aprendemos no mundo, em São Paulo, e constituir algo que abrace a arte e a beleza de todos naquela região. É incrível a quantidade de artistas que tem”, diz Silviane.

O projeto está em andamento com apoio público e privado. A inauguração está prevista para o fim do ano e deve contar com um monumento, o “Baby Blue“, em homenagem aos 30 anos de carreira de Sattu. 

Escultura "Baby Blue" produzida por Sattu
Escultura “Baby Blue” produzida por Sattu - Catraca Livre/Caroline Vale

A proposta foi bem recebida pela comunidade. “As mães sentiram como um abraço”, conta Silviane.

O casal esteve recentemente na cidade e as crianças demonstraram todo amor e admiração pelo trabalho de Sattu. O prefeito e alguns outros deixaram à disposição para o Sattu ir levar isso nas escolas, falar: ‘olha eu também sou e eu consegui’, para estimular mesmo.

O artista finaliza dizendo que está animado e pretende voltar às escolas da região: “eu quero fazer mais. Só depende de eu ir lá fazer.”

 

Abril Azul

Ao longo de todo o mês de abril, a Catraca Livre publica uma série de reportagens para ampliar o entendimento sobre o espectro e suas características. Clique aqui para conferir

Assista ao vídeo especial com o Sattu: