Memes reforçam ‘capacidade analgésica’ do humor em tempos de pandemia
A indústria dos memes oferece o alívio cômico que todos precisamos em meio ao caos
“CORONAVIRUS! S*** is real!”
O berro da rapper norte-americana Cardi B, lá em março deste ano, pode ser considerado o gatilho necessário para que as engrenagens da indústria dos memes em meio à pandemia no Brasil funcionassem com toda a intensidade. Você está conectado agora, certo? Em pelo menos um momento do seu dia você foi ou será atingido por um conteúdo viral — seja um sticker no WhatsApp dos carregadores de caixão de Gana, posts no Instagram sobre a vida entediante em quarentena ou tuítes com a imagem de Bolsonaro com dificuldades em colocar uma máscara adequadamente.
Viktor Chagas, que é professor e pesquisador em comunicação da UFF (Universidade Federal Fluminense), no Rio de Janeiro, e coordenador do projeto Museu de Memes, explica que esses conteúdos cômicos da internet são uma espécie de reflexo de nossos ambientes de conversação. “Então, quanto mais um tema emerge em nossos círculos sociais, no noticiário ou ganha impulso e circulação nas próprias mídias sociais, mais vemos se intensificar a produção de memes”, disse à Catraca Livre.
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O conceito de “meme”, aliás, nasceu de um biológo (Richard Dawkins, no livro “O Gene Egoísta”, da década de 1970). A analogia com a biologia, é inevitável, pedimos perdão. Tal qual um vírus, os memes se espalham em velocidade imensurável e dominam o debate. Segundo estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da FGV, postagens com humor ou piadas compreendiam 42% das reações sobre o novo coronavírus nas redes sociais, em fevereiro.
O poder pedagógico dos memes
Nos meses seguintes, com o aumento gigantesco dos casos de covid-19, os memes se tornaram também “aliados” na divulgação de informações sobre prevenção do vírus, como cuidados de higiene e uso do álcool em gel. Um artigo publicado por pesquisadores no Museu dos Memes fala do poder pedagógico desses conteúdos e enfatiza a ideia de que, em tempos de isolamento social, eles “reforçam o nosso senso de comunidade, concedendo pequenos intervalos catárticos à angústia e pressionando os indivíduos mais resistentes a adotar as medidas de segurança necessárias”.
O professor Chagas também concorda que a linguagem bem-humorada tem cumprido um papel importante nos meios virtuais. “Os memes tratam de questões como a necessidade de prevenção e isolamento dos idosos, quando os próprios idosos têm resistência a ficar em casa. Ou levantam questões sociais concernentes à quarentena para mães solteiras com filhos pequenos. Nesses e em outros casos, os memes estão cumprindo um papel fundamental. Não bastasse isso, ainda contribuem para conferir um certo alívio cômico ao momento que estamos todos passando, o que não é menos relevante. Os memes ajudam na manutenção dos laços sociais em um período de distanciamento“, afirmou o pesquisador.
Alívio cômico em meio ao caos
Além do teor didático e social, é óbvio que os memes são feitos preferencialmente para te fazer rir (mesmo que da própria tragédia). Essa “capacidade analgésica” do humor na internet ajuda a lidar com o estresse nesse período de isolamento. Fato é que a saúde mental tem sofrido grandes impactos durante a pandemia. Um estudo da Uerj (Universidade do Estado do Rio) aponta que os casos de ansiedade e estresse mais que dobraram no Brasil.
Por conta disso, o paulista Felipe Misale, 33 anos, que é criador e editor da página Melted Videos, contou que houve a necessidade de começar a produzir memes mais direcionados para a angústia relacionada à liberdade. “Algum meme eventualmente sai da curva e viraliza por representar muito bem um sentimento específico de privação, confinamento, oscilações drásticas de humor, dificuldades de relacionamento amoroso ou sentimentos humanos relacionados a esse momento atípico que estamos vivendo. O público, assim como nós, tem buscado uma resposta a essa condição”, disse.
Atualmente, a “receita” dos memes postados na página tratam de questões como solidão, relacionamento e aspectos da fragilidade humana. “Autossabotagem é sempre uma constante. E agora, as dificuldades de relacionamento que se apresentaram na quarentena tem sido um grande tópico. Lidar com a solidão e com nós mesmos 24 horas por dia, a expectativa de encontrar um parceiro. Falamos de masturbação e vibradores de uma forma mais leve também. Importante sempre mostrar as fragilidades humanas como algo extremamente normal e não como uma falha“, ressaltou Misale.
“Entramos em pautas sobre saúde mental constantemente, sobre a necessidade de procurar ajuda profissional, como terapia. Fizemos esse post [veja abaixo] em abril. Pela recepção, reforça nossa teoria de que muitos relacionamentos ainda estão travados na masculinidade frágil pelos relatos das mulheres nos comentários”, comentou ele, ao explicar as temáticas mais abordadas.
E temas políticos também não ficam de fora da cultura dos memes. “Sempre tocamos em política, mas tentamos ao máximo achar uma ironia específica para trabalhar. Recentemente, durante o discurso do presidente [Jair Bolsonaro] sobre a demissão do ministro da Justiça Sérgio Moro, ele mencionou o fato do seu filho ser um ‘pegador do condomínio’ em rede nacional. Isso diz muito sobre o machismo na sociedade. Nem era o principal, mas nas entrelinhas fica uma brecha para pegar um ponto de humor”, explica o editor da Melted Videos.
‘Maratonar’ memes e mandar indiretas
“Os memes são uma parte da cibercultura que cada dia mais se mostram como o primeiro da classe. Muitas pessoas contam que esperam uma semana sem ver nosso feed para ‘maratonar’ no final de semana com o parceiro e rirem juntos. É quase uma série de Netflix ou sketches teatrais. Somos muito otimistas com a linguagem e com essa capacidade analgésica de imersão dentro do texto proposto no meme. Por mais duro e autocrítico que o meme seja, ele sempre vai falar com jeitinho“, concluiu Misale.
A página Depressão Universitária, criada pelo mineiro Peu Santos, de 23 anos, traz memes mais voltados para os estudantes universitários. Agora, por conta das aulas presenciais suspensas, cada vez mais os jovens estão conectados em casa, seja para estudar a distância, assistir séries e filmes em plataformas de streaming, conversar por chats e, claro, compartilhar e comentar memes com os amigos em redes sociais.
Segundo Peu, desde que o isolamento começou a fazer parte da rotina dos brasileiros, seu engajamento e alcance nas redes sociais dobrou. “Muita gente online ao mesmo tempo curtindo e comentando os memes. Posts com recomendações de filmes e séries foram um dos que mais bombaram. Também faço posts de conscientização sobre a pandemia e reforço a importância de ficar em casa e se cuidar”, comentou ele, que se diz acadêmico ~frustrado~ de direito, aos risos.
“A internet é como uma válvula de escape. Muitos seguidores dizem que os memes são um refúgio. Tenho certeza que eles amenizam a ansiedade de muitos jovens e estudantes que estão de quarentena”, acrescentou.
Inclusive, Peu lembra que os memes são ótimos para mandar indiretas de forma sutil. “Usei de memes para mandar indiretas para meus amigos sem que eu precisasse ofender ou brigar com eles e, juro, a tática funcionou. Mas uns eu tive que xingar mesmo, estavam saindo de casa sem nenhuma necessidade, ha ha ha”, contou o mineiro.
Mas é saudável passar tanto tempo nas redes sociais?
“Como tudo na vida, equilíbrio é necessário”, disse a psicóloga especialista em estresse Rosalina Moura. “O que fazemos na internet, que tipo de conteúdos são consumidos, quanto, quando e como isso reflete na vida? A auto-observação e o autoconhecimento são fundamentais para que cada um possa perceber como se sente quando está navegando, se faz bem ou mal. O seu uso deve ser consciente e saudável, alertou.
Rosalina, que também é sócia-diretora da empresa Rumo Saudável, especializada em soluções para o gerenciamento do estresse e bem-estar, lembra que o uso excessivo da internet e dos smartphones já apontava impactos emocionais muito antes da pandemia. “Antes já acontecia, mas agora na quarentena tenho atendido adolescentes que se sentem solitários e que buscam as redes sociais para diminuir a sensação de solidão, mas, paradoxalmente, alguns se sentem piores.”
Em um estudo realizado nos EUA e publicado na revista “Clinical Psychological Science”, pesquisadores descobriram que adolescentes que passaram cinco ou mais horas por dia conectados a dispositivos eletrônicos, incluindo conteúdos através de smartphones, relatavam mais sintomas como ansiedade ou irritação do que os que passavam mais horas em atividades offline.
A psicóloga ressalta ser fundamental desmistificar as questões relacionadas à saúde mental. “É válido destacar a importância de cada pessoa perceber quando precisa de ajuda e buscar isso. Psicólogos e psiquiatras estão atendendo online para uma conversa pontual ou um acompanhamento psicoterápico”, recomendou. Além disso, para ela, é essencial redescobrirmos também os prazeres da vida offline e encontrar um equilíbrio entre o tempo que passamos conectados.
Dicas para lidar com o estresse de forma offline
- Respirar de forma consciente alguma vezes por dia, seguindo o fluxo do ar entrando e saindo dos pulmões, faça 10 a 20 respirações pela manhã, antes de dormir e em cada pausa do dia.
- Focar no presente e evitar conjecturas sobre o futuro, especialmente as catastróficas.
- Se manter conectado com pessoas significativas, de preferência por vídeo ou telefone.
- Se envolver em algum projeto solidário e de ajuda, o altruísmo se mostra um bom mediador do estresse em fases de epidemias e isolamento.
- Meditar, cuidar da espiritualidade, ler bons livros, música, se alimentar de forma saudável, se exercitar mesmo em casa, se puder.
- Falar de outros assuntos também é importante, evite a sobrecarga de informações, filtrando bem o conteúdo que irá acessar.