‘É na infância que tudo acontece’, diz especialista em gênero

Quem escuta Ana Carolina Del Nero falar sobre seu trabalho aprende algo sobre a maternagem que não se aprende em nove meses de gestação: nem todas as crianças “nascem” quando deixam a barriga da mãe. Algumas têm essa sorte, outras demoram um tempo a mais (determinado por um outro tipo de sorte) para serem vistas como realmente são, e finalmente nascer. Quase sempre é a mãe a primeira pessoa a notar a verdadeira identidade dos filhos, a observadora primeira das transformações pelas quais uma criança passa antes de entender quem é.

Ana Carolina Del Nero é neuropsicóloga e trabalha no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) da USP. No ambulatório, ela lida diariamente com crianças que vivenciam disforias de identidade de gênero, ou seja, que não se identificam com o seu sexo de nascimento.

Para a série de reportagens Mães que TRANSformam, ela fala sobre o papel da família neste processo. Afinal, os pais não só são os disparadores da busca por auxílio especializado, como também são peças chave para uma transformação social a longo prazo em relação ao preconceito contra a população transexual.

Para a Ana Carolina, apesar de todo o caminho ainda a percorrer em relação à discriminação que vitimiza essa população todos os dias, o fato é que, sim, estamos falando sobre isso. E precisamos continuar. “Essas pessoas passaram a existir, porque antes elas não existiam, viviam à margem e a sociedade fazia de tudo para que elas continuassem nesse lugar”, afirma. Abaixo, confira a entrevista na íntegra:

Catraca Livre: O que define a transexualidade? E como ela é percebida na infância?

Ana Carolina Del Nero – É quando existe uma incongruência entre o sexo biológico (como eu nasci) e a identidade de gênero (como eu me sinto). Por exemplo, se eu nasci com uma genitália feminina, mas eu me sinto homem, eu sou um homem trans. Se eu nasci com genitália masculina, mas me sinto mulher, sou uma mulher trans. Ou seja, é sempre baseado na percepção emocional da pessoa em relação ao gênero de nascimento.

Como é algo que acredita-se que seja inato, as primeiras “manifestações de gênero”- como nós chamamos – a maioria dos casos é bem precoce. Este é um dado mundial: a tendência é que as crianças cheguem muito cedo a procurar atendimento, por volta de quatro ou cinco anos.

Identidade de gênero, papel de gênero, orientação sexual. Pode explicar as diferenças entre esses termos?

Primeiro, existe o sexo biológico, que é o genital com o qual nascemos. A pessoa pode ser macho, fêmea ou intersexo, que são os hermafroditas. Isso é biológico.

Depois, vem a identidade de gênero. Posso ser um homem, uma mulher, ou um não binário – pessoas que não se identificam nem com um nem com outro. As pesquisas sugerem que a identidade de gênero seja inata, que tem a ver com a circulação de hormônios na gestação. Ou seja, é algo da pessoa, que não tem a ver com uma construção social.

Então, vem o papel de gênero, que, aí sim, é iminentemente social. O papel de gênero pode ser feminino, masculino ou andrógeno. É o modo como a pessoa vai viver o sexo dela, de acordo com os modelos que existem na sociedade. Ao longo da vida, as pessoas vão se apropriando dos papéis de gênero, a depender da criação e do meio social.

E, depois, vem a orientação sexual, que é por quem a pessoa sente atração sexualmente. É importante dizer: isto não é uma opção. Orientação sexual também é algo inato, assim como a identidade de gênero.

Quais são as principais manifestações de gênero que motivam mães, pais e cuidadores a procurar atendimento?

Até hoje, a maioria dos pais chega com essa questão: “eu achei que meu filho fosse gay”, é uma confusão muito comum. Porém, tem havido uma mudança significativa em relação isso. A primeira criança que chegou no Ambulatório estava em um sofrimento extremo – não dormia, não comia, estava muito agressiva, não queria ir para a escola, ou seja, tinha sintomas sérios de sofrimento psíquico. Depois que ela passou a poder viver a identidade de gênero dela, é uma outra criança.

Hoje em dia, os pais procuram o Ambulatório muito antes de chegar a esse ponto. Então, se a criança só gosta de brincar com brinquedos “de menina” ou “de menino”, por exemplo, os pais já se preocupam. Tem casos interessantes de meninos que colocam toalha na cabeça para fingir que têm cabelo comprido. Esses primeiros sinais de incongruência de gênero já têm sido os primeiros disparadores para os pais procurarem ajuda especializada. É importante para evitar que a criança chegue ao sofrimento profundo.

Como os pais podem detectar se a criança tem, de fato, uma disforia de gênero?

Na infância é difícil dizer que aquela criança vai ser uma pessoa transexual. O que percebemos neste período é um questionamento, um desconforto de gênero. As crianças são fluidas por natureza, a identidade delas está em construção, então, elas transitam muito entre o que é de um gênero ou de outro.

Se os pais percebem que a criança tem uma clara preferência por brinquedos do gênero oposto ou se dá melhor com crianças do gênero oposto, isso não é tão comum. Aí, já vem o segundo estágio, que é o desconforto com o próprio gênero. Por exemplo, meninos que colocam uma toalha na cabeça para dizer que é cabelo, ou então dizem claramente “eu sou uma menina”.

Então, o acompanhamento psicológico também serve para os pais aprenderem a lidar com a fluidez de gênero do(a) filho(a), que causa angústia, afinal, a sociedade tem uma tendência de definir muito mais rigidamente os papéis de gênero.

A neuropsicóloga Ana Carolina Del Nero, do AMTIGOS, fala sobre a identidade de gênero do ponto de vista clínico: “é algo inato à pessoa”.

Qual o papel da família neste processo?

O papel da família é essencial. Começa pelo fato de que são eles que buscam o tratamento, porque a criança não tem essa autonomia ou poder de escolha. NO AMTIGOS, o cerne do acompanhamento da infância é uma reunião mensal de pais, cuidadores, pais, tios- todos os envolvidos na criação da criança são bem-vindos. Lá, eles podem dividir as angústias em relação ao “não saber”, porque nós não temos como afirmar se uma criança é trans ou não; é ela quem vai dizer isso, o que só acontece geralmente quando ela entra na puberdade.

O trabalho com crianças é um acompanhamento psicológico familiar. Os pais chegam – ou os cuidadores, tios, avós, até professores já nos procuraram – e fazemos uma triagem para detectar se existe de fato uma disforia de gênero ou não. Depois, a criança passa por uma avaliação psiquiátrica, para analisar se existe alguma morbidade (ansiedade, depressão) e, depois, uma avaliação psicológica, que são testes cognitivos e projetivos para analisar como a criança vivencia o seu gênero.

Muitas vezes, o sofrimento não vem da questão de gênero em si, mas sim da forma como a família lida com isso. A partir das avaliações, podemos definir a conduta terapêutica daquela criança. Se o caso for de sofrimento muito intenso, nós acolhemos a criança em uma terapia individual. Mas o acompanhamento mais importante é uma reunião mensal com os pais. Acreditamos que o atendimentos aos pais é ainda mais importante do que o da própria criança. Na maioria dos casos, os pais estão mais angustiados com a questão de gênero do filho do que a criança. A maior angústia dos pais é “mas meu filho é trans ou não é?”, e a gente não tem como afirmar isso. É ela quem vai dizer.

Como os pais podem fazer valer os direitos da criança?

O mais importante é conhecer, porque só assim terão como exigir (os direitos). Lá no Ambulatório, temos uma assistente social que orienta os pais em relação às leis e aos direitos. A sociedade sempre vai tentar se esquivar dessa responsabilidade.

Nós também fazemos reuniões com escolas no Ambulatório desde 2016. Geralmente, vão professores, diretores. O impacto é muito positivo. Algumas pessoas chegam com muito preconceito e depois se apropriam da causa. Tem casos de projetos para implantação de banheiros sem gênero, por exemplo, que surgiram depois do atendimento. Esse trabalho com as escolas é fundamental porque eles são multiplicadores. Na escola, é possível mudar toda a mentalidade de como lidar com o gênero. E impacta também as crianças que não  questões de gênero, mas que vão crescer em uma atmosfera de respeito e empatia.

Para sensibilizar a sociedade sobre a questão de gênero na infância, a organização Plan International Brasil lançou a campanha #Desafiodaigualdade

Como os pais podem difundir ainda mais o assunto em seu meio social?

A maior diferença é que começamos a falar sobre isso. Essas pessoas passaram a existir, porque antes elas não existiam, viviam à margem e a sociedade fazia de tudo para que elas continuassem nesse lugar.

Com toda a divulgação que existe sobre o assunto na imprensa, por exemplo, elas passaram a existir. Falar sobre isso abertamente é muito importante não só para que as pessoas trans ganhem o seu espaço social, mas também para que outras pessoas que estão passando por isso se reconheçam e consigam nomear o seu sofrimento. É algo que os adultos de hoje não tiveram, muitos nunca puderam nomear esse desconforto com a vida que sentiam.

Como o Saadeh [Dr.Alexandre Saadeh, coordenador do AMTIGOS] sempre diz, meu sonho é que um dia a gente possa fechar as triagens para adultos para começar o tratamento já na infância, que é onde tudo acontece.

No Brasil, existem apenas dois centros especializados em acolher crianças transexuais: o AMTIGOS, do Hospital das Clínicas da USP, e o PROTIG (Programa de Identidade de Gênero), ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O AMTIGOS é formado por uma equipe de 35 profissionais – entre psicólogos, psiquiatras e assistente sociais – responsáveis por fazer uma triagem e posterior acompanhamento psicológico e psiquiátrico de crianças, jovens e adultos que chegam com alguma questão relacionada à disforia de gênero. Clique aqui para saber mais sobre este trabalho.

  • Esta entrevista encerra a série de reportagens “Mães que TRANSformam”, na qual apresentamos histórias de mães que ultrapassaram diversas barreiras impostas pela sociedade para quem é transexual e transgênero. Agradecemos a participação da especialista Ana Carolina Del Nero, que apresentou evidências científicas sobre a vivência do gênero.

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