Glenn: ‘Aceito todos os ataques, menos usando nossos filhos’

Em entrevista a Gilberto Dimenstein, da Catraca Livre, o fundador do The Intercept Brasil comentou as ameaças que vem sofrendo por causa da Vaza Jato

Por: Redação

“Eu aguento todos os ataques: o presidente [Jair Bolsonaro] me ameaçando com prisão, investigando eu e meu marido [o deputado federal David Miranda], falando coisas sujas sobre a nossa vida privada… Mas atacar meus filhos e nossa adoção, isso me deixa muito raivoso”, afirma o jornalista Glenn Greenwald, fundador do The Intercept Brasil, site responsável pela série de reportagens baseadas nos diálogos vazados de procuradores da Lava Jato e do ex-juiz Sergio Moro.

Em entrevista a Gilberto Dimenstein, da Catraca Livre, Glenn comentou as ameaças e os ataques que vem sofrendo por grupos de direita desde a publicação da primeira reportagem da Vaza Jato. Um dos ataques mais recentes foi feito pelo jornalista Augusto Nunes, que disse que o fundador do Intercept e o deputado federal deveriam ser investigados pelo juizado de menores, porque, segundo ele, os dois filhos estariam abandonados.

Questionado sobre a declaração antiética de Augusto Nunes, Glenn declarou que o casal está considerando processá-lo. “Se ele pedisse desculpas e falasse que passou a linha, que não gosta de mim e do meu trabalho, eu respeitaria isso. Mas ele fez o oposto, foi para o Twitter e usou essa palavra ‘chilique’ – obviamente homofóbica – fortalecendo a tese, falando que eu estava mentindo, e piorou a situação.”

Além de estar à frente da Vaza Jato, Glenn, junto de seu marido, publicou uma série de reportagens em veículos brasileiros, em 2013, sobre o caso Snowden, revelando que os Estados Unidos estavam espionando o Brasil. De acordo com o jornalista, naquela época, ninguém o criticou. “Ninguém me perguntou se eu paguei pelo vazamento, ninguém questionou que eu divulguei ‘documentos roubados’, ninguém disse que eu sou estrangeiro, por isso não poderia interferir no Brasil. Isso porque o benefício naqueles casos era o Brasil.”

Confira a entrevista na íntegra:

Catraca Livre – São inúmeras críticas apontadas a você, muitas delas descabidas. Não teria uma pontinha de inveja do jornalista brasileiro por você ter dado o maior furo do ano no país?

Glenn Greenwald: Eu acho que todos os humanos têm inveja. Eu lembro muito bem durante a reportagem do Snowden [caso Wikileaks], que foi uma história com relevância internacional. Tradicionalmente, só “Washington Post” e “New York Times” recebiam materiais assim. E, de repente, fui eu, um jornalista independente, trabalhando como colunista, que fiz a investigação. Acho que recebi muitas críticas de jornalistas por causa dessa inveja.

Uma parte muito interessante na história da Vaza Jato é que o Brasil foi um país dominado por três ou quatro veículos de mídia durante anos. De repente, um veículo que não existia antes de 2016 lidera essa reportagem.
Talvez [seja um pouco de xenofobia]. É interessante em dois aspectos. Primeiramente, os defensores do governo sempre me chamam de estrangeiro. Mas, tecnicamente, o Brasil não é um país estrangeiro para mim. Eu moro aqui há 15 anos, meu marido e meus filhos são brasileiros, eu me sinto brasileiro.

Eu fiz muitas reportagens aqui, em 2003, junto com “O Globo”, com a revista “Época” e com o “Fantástico”, sobre a espionagem com o arquivo do Snowden e como os Estados Unidos estavam espionando o Brasil. Quase ninguém me criticou naquela época, ninguém me perguntou se eu paguei pelo vazamento, ninguém questionou que eu divulguei “documentos roubados”, ninguém disse que eu sou estrangeiro, por isso não poderia interferir no Brasil. Isso porque o benefício naqueles casos era o Brasil, porque divulgamos como o governo norte-americano estava espionando o país.

Nos Estados Unidos, durante a reportagem Snowden, eu tive muito apoio dentro da mídia norte-americana, mas também muitas críticas. Aqui no Brasil, eu me sinto muito apoiado pela grande mídia [no caso da Vaza Jato], talvez porque estamos trabalhando com parceiros nas reportagens. Foi uma estratégia para fazer isso muito mais rápido, embora tenhamos uma equipe com profissionalismo muito alto. A questão maior foi que tínhamos uma responsabilidade em trabalhar juntos com a mídia tradicional para dar credibilidade ao material.

O jornalista Augusto Nunes, colunista da “Veja”, atacou você e seus filhos, disse que você os abandonou. Você não acha que esse tipo de ódio passou todo nível do bom senso?

Antes de começar a reportagem do Snowden, eu e meu marido David Miranda ficamos muito tempo tentando entender quais ataques iríamos sofrer, obviamente sabendo que estamos reportando sobre o governo mais poderoso do mundo. Recebemos muitos ataques e ameaças, meu marido foi detido em Londres, inclusive.

No Brasil, também fizemos o mesmo, pois sabíamos que receberíamos ataques já que estávamos mexendo com o juiz Sergio Moro, uma figura quase que religiosa aqui. Eu posso aceitar todos os ataques, menos usando nossos filhos.
A primeira pessoa que fez isso foi o presidente da República Jair Bolsonaro, que disse que nossa adoção era uma fraude, criada para me proteger contra a lei da deportação e ficar no Brasil. Isso é totalmente louco porque eu sou casado com um brasileiro, então eles não podem me deportar.

Augusto Nunes disse na Jovem Pan que ele não entende quem cuida dos nossos filhos porque meu marido é deputado federal em Brasília e eu um jornalista trabalhando com a Vaza Jato.

Sinceramente, como a revista Veja continua empregando um cara tão baixo, que fala algo assim, que ataca os filhos dos outros e bota em dúvida como você está criando seus próprios filhos, sem evidência nenhuma? Qualquer pessoa perderia o emprego em um veículo com credibilidade falando algo assim.

Nós sentamos muito para conversar com nossos filhos porque eles ouvem muito sobre o nosso trabalho na escola, principalmente quando você é um político como David e um jornalista como eu.

Eles sofreram um pouco na escola, ainda que seja particular, mais ou menos de esquerda, mas tem outras crianças que ouviram os pais falando sobre nós e depois levaram esses comentários homofóbicos para os nossos filhos, mas eles são muito fortes.

Adotamos eles com 10 e 8 anos. Nós fizemos isso porque tem quase 50 mil crianças na adoção. Ninguém quer adotar filhos mais velhos e infelizmente demora muito para aprovar a adoção.

A única coisa que me deixa com raiva são esses ataques contra meus filhos. Eu aguento todas outras coisas, o presidente me ameaçando com prisão, investigando eu e meu marido, falando coisas sujas sobre a nossa vida privada… Tudo isso eu aguento sem problema nenhum. Mas atacando meus filhos e nossa adoção me deixa muito raivoso.

Nossos advogados estão muito ocupados agora. Eu era advogado antes de ser jornalista, então, eu sei que processar pessoas perde muito tempo. Eu quero escolher pessoas com impacto grande, que falaram coisas muito feias, [para processar].

Estamos considerando processar ele [Augusto Nunes] com certeza. Se ele pedisse desculpas e falasse que passou a linha, que não gosta de mim e do meu trabalho, eu respeitaria isso. Mas ele fez o oposto, foi para o Twitter e usou essa palavra “chilique” – obviamente homofóbica – fortalecendo a tese, falando que eu estava mentindo, e piorou a situação.

No Brasil, hoje, é tudo 8 ou 80. As pessoas podem ser a favor da Lava Jato e também ser a favor do seu trabalho. Eu, por exemplo, acredito que a Lava Jato tem coisas positivas, mas também acho que a transparência é positiva. As pessoas acham que se você gosta do material da Vaza Jato, automaticamente você é contra a Lava Jato. Qual sua opinião sobre isso?

Moro e Dallagnol estão forçando as pessoas a fazerem isso, a escolherem um lado. Se você está a favor da Lava Jato, isso significa que você rejeita tudo o que a Vaza Jato está revelando. Se você acha que a Vaza Jato é boa, isso significa que você é contra a Lava Jato e a favor dos corruptos.

Eu sou uma pessoa que até agora estou defendendo e elogiando o trabalho que a força-tarefa da Lava Jato fez. Mas ela também fez coisas corruptas e erradas. E, acho eu, estamos fortalecendo a operação Lava Jato dessa forma.
Eu acredito muito no diálogo. Eu fui ao [programa] ‘Pânico’ duas vezes, participei de outros programas da direita também. Acredito nessa tentativa de encontrar princípios em comum entre pessoas que pensam de maneira posta. Isso é crucial para o país.

Você acha que o juiz Sergio Moro, a partir dos documentos revelados pelo Intercept, deveria deixar o Ministério da Justiça e Segurança Pública?

Meu melhor amigo de infância é um advogado nos Estados Unidos. Ele me ligou depois da primeira semana [da Vaza Jato], e me disse: “Eu não entendo o que está acontecendo com sua reportagem. Se um juiz nos Estados Unidos fizesse algo assim [como Sergio Moro], mesmo em um caso muito insignificante, colaborando em segredo com um lado sem o outro lado sabendo, e condenando o ex-presidente da República quando ele está liderando todas as pesquisas eleitorais, ele perderia seu cargo sem debater”.

Até agora, 4 meses depois, Moro, com todos as corrupções reveladas, ainda está como Ministro da Justiça. Eu não posso entender isso, sinceramente.

De todos os vazamentos, qual foi o mais forte?

O último foi incrivelmente importante. Quando Sergio Moro pediu a Dallagnol para não processar e seguir as acusações contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porque ele era um aliado político importante. Para mim isso é quase um crime. Ainda que, obviamente, o crime mais grave foi o fato de Moro ter colaborado com os procuradores enquanto fingia ser um juiz neutro. Entretanto essa foi a revelação mais grave que não recebeu a atenção que devia ter recebido.

Ainda tem mais coisa?

Tem muita coisa ainda para vir. Temos um programa que deixa a gente pesquisar o arquivo todo. Eu pesquisei o arquivo todo. Se você me perguntar se leio todos os documentos, eu não leio todos. Muitos são banais, sobre vida pessoal, que não estou lendo e estou evitando. Não estamos publicando, nem lendo, nada da vida pessoal. Não quero invadir a privacidade de ninguém. Mas temos um material muito completo que interessa ao público.

Vai envolver de alguma forma o esquema de Bolsonaro ou não chegou a este ponto?

Sergio Moro não foi ligado à família Bolsonaro. Moro e Dallagnol são muito mais ligados com o PSDB por exemplo.

Mas tem os vazamentos das conversas da Dilma e do Lula, que ele vazou propositalmente, né? Ele que critica o vazamento estava estimulando os vazamentos.

Isso é uma coisa que está me deixando quase louco porque, nos últimos cinco anos, a reportagem da grande mídia é impulsionada pelos vazamentos ilegais feitos pelos procuradores da Lava Jato e do Ministério Público; para o Antagonista, Jornal Nacional, fazendo exatamente o que eles queriam fazer.

Duas semanas atrás, quando queriam me investigar minhas atividades financeiras, e o STF impediu isso alegando que era violação da liberdade de imprensa.

Depois disseram que vão investigar as atividades financeiras do marido do Glenn. Eles vazaram isso para a [revista] “Época” ilegalmente… e o tempo todo estão usando a tática suja de vazamento e quase ninguém na mídia está falando que isso é um problema. Eles estão usando vazamento o tempo todo e, de repente, quando eles são alvo do vazamento, eles têm problemas com os vazamentos.

Mas o que pode ter de ilegal na sua atividade financeira?

Nada, estou absolutamente tranquilo. O que eles estão tentando fazer, por exemplo, é que nós todos sabemos que o Flávio Bolsonaro é corrupto. Como posso falar isso, sendo que ele não foi condenado?

Porque tem um monte de evidências mostrando que ele recebeu na conta depósitos muito além da realidade.
Mas nada acontece, mesmo os procuradores do Ministério Público dizendo isso, sem deixar dúvida alguma que ele praticou um crime.

O que eles estão tentando fazer com o meu marido é incriminá-lo. Onde está a evidência? O David nunca recebeu um centavo por nada. Isso mostra o quanto há de corrupção dentro do Ministério Público e nossa reportagem revela isso.

Por que não vazou conversas de outros políticos?

Obviamente que nós podemos vazar, mas não podemos inventar. Tem um tipo de reportagem que estamos evitando. Essa que tem sido muito comum nos últimos cinco anos. Quando, por exemplo, um delator está acusando uma outra pessoa sem evidência, e depois os procuradores vazam essa delação premiada, que tal político recebeu caixa dois, propina, e em seguida essa pessoa é acusada publicamente de crime grave, destruindo a reputação dele, mas sem a oportunidade para se defender, porque não tem um processo jurídico legal.

Estão destruindo a reputação das pessoas assim. Eu não vou fazer esse tipo de reportagem.

Você tem medo de acontecer alguma coisa você, com seu marido ou com seus filhos?

Tenho, sem dúvidas, estou andando na rua sempre com segurança armado, carro blindado. Meus filhos também recebem ameaças o tempo todo. Nossa amiga [Marielle Franco] foi brutalmente assassinada há um ano e quatro meses. Tem violência política no Brasil. Tem uma parte do movimento do Bolsonaro que é violento, ameaçador.

Que tipo de ameaças você recebeu?

Quando Jean [Wyllys] saiu do país e muitas pessoas não entenderam o motivo, ele recebia ameaças muito mais detalhadas, com dados e informação privados, fotos da frente da casa do Jean, placa do carro da mãe do Jean, falando que iam estuprar sua mãe, cortar as pernas da mãe do Jean. Ele não conseguiu aguentar isso depois de 8 anos. Esse tipo de ameaça que estamos recebendo: vamos pegar seus filhos quando estiverem saindo da escola, e vamos levar eles no Jacarezinho, estuprar eles.

Você chegou a pensar em deixar seus filhos fora do Brasil?

Pensamos em deixá-los fora do país, mas por exemplo… o [deputado Marcelo] Freixo também é alvo de ameaças há tempos, e seu filho está morando fora do Brasil, mas já é adulto. É muito difícil fazer isso com dois meninos, que só falam português, e viver fora do país. Optamos por aumentar a segurança no dia a dia.

O Sergio Moro está te protegendo?

Não, absolutamente não. Por exemplo, o David denunciou para a Polícia Federal várias ameaças gráficas, detalhadas, grotescas, que recebemos, e ninguém fez nada para nos proteger. Eles encontram os supostos hackers que invadiram o celular do Moro muito rápido. Mas quando é sobre nós, ninguém encontra nada.

Ou seja, teoricamente, se acontecesse alguma coisa com você, o Sergio Moro e o governo brasileiro seriam responsáveis por não estar te protegendo.

É, mas obviamente não estão fazendo nada. Temos muita sorte de ter uma empresa bem financiada em NY, que está nos apoiando e fazendo o que Moro deveria fazer, proteger a nossa segurança.

Você está feliz ou angustiado? Ou feliz e angustiado? Você consegue dormir bem?

Eu estou muito orgulhoso com o trabalho que consegui fazer. Obviamente tem momentos de estresse. Mas eu entrei em jornalismo para fazer coisas assim.

Alunos de jornalismo me perguntam qual conselho posso dar. E digo: ‘Se você quer ser amado por todos e ter segurança total, jornalismo não é a opção pra você. Escolha outra profissão’. Jornalismo é para enfrentar poderosos, e o jornalismo é perigoso por motivos óbvios.