Por que estes comentários sobre as ocupações estão equivocados

Após a tragédia do prédio no centro de São Paulo, conversamos com o urbanista Kazuo Nakano para desmistificar afirmações que têm circulado sobre o tema

O prédio pegou fogo e desabou nesta terça-feira, dia 1º

edifício Wilton Paes de Almeida, antiga sede da Polícia Federal, no centro de São Paulo, pegou fogo e desabou na madrugada desta terça-feira, dia 1º. O prédio de 24 andares pertencia à União e estava ocupado pelo movimento LMD (Luta por Moradia Digna), por cerca de 169 famílias e 428 moradores, segundo informações da prefeitura.

Desde a noite da tragédia, algumas pessoas permanecem acampadas na região próxima, enquanto outras seguem sem ser encontradas. A Prefeitura de São Paulo tem o registro de quatro desaparecidos: Ricardo, que estava sendo resgatado por um bombeiro no momento do desabamento, e uma mulher chamada Selma, com seus filhos gêmeos.

O incêndio foi causado por um curto-circuito em uma tomada no quinto andar, de acordo com depoimento de uma sobrevivente à polícia. O Secretário de Segurança Pública, Mágino Alves, confirmou a versão de Walkiria Camargo dos Nascimento.

Incêndio em prédio de 24 andares no Largo do Paissandu
Créditos: Paulo Pinto
Incêndio em prédio de 24 andares no Largo do Paissandu

Para o urbanista Kazuo Nakano, doutor em Demografia pela Universidade de Campinas (Unicamp) e mestre em Estruturas Ambientais Urbanas pela Universidade de São Paulo (USP), a mobilização rápida dos movimentos sociais pode trazer desdobramentos importantes para a luta por moradia.

“Temos agora todo um contexto para acirrar as denúncias e mostrar a omissão do poder público em relação ao atendimento das necessidades habitacionais da população de baixa renda. São Paulo tem dois planos de habitação prontos e bons, que dimensionam todas as necessidades da cidade, mas eles permanecem no papel”, afirma o especialista.

A internet foi tomada por debates sobre o tema das ocupações. Muitos comentários, porém, perpetuam ideias equivocadas a respeito dos movimentos populares no Brasil, onde há quase 8 milhões de pessoas vivendo em moradias inadequadas (relatório da ONU para a Moradia Adequada).

Catraca Livre pediu para Nakano comentar e desmistificar algumas afirmações disseminadas nas redes sociais nos últimos dias. Confira abaixo:

“Por que essas pessoas não pagam aluguel e param de invadir prédios irregulares?”

Kazuo Nakano: A maioria dessas pessoas (não as lideranças, mas as pessoas que vivem nas ocupações) precisa de um lugar para morar na cidade, mais especificamente no centro, porque não tem renda para pagar aluguel. O valor do aluguel nessas áreas está muito caro. Inclusive, nas zonas periféricas, também é caro.

Famílias que ganham até três salários mínimos não conseguem arcar com aluguel, que é o maior dos gastos, além de comida, roupas e locomoção. Por isso elas precisam buscar outras alternativas para morar dentro da cidade, ou terão que ficar fora dela e talvez não conseguirão sobreviver na extrema periferia. Mas, nas ocupações centrais, elas seguem em situação de vulnerabilidade social.

“Essas pessoas que vivem em ocupações são vagabundas.”

Kazuo Nakano: Todos nessas ocupações trabalham. É só você ficar na portaria de qualquer um desses prédios pela manhã que verá todo mundo sair para trabalhar. Eles passam o dia inteiro trabalhando para voltar só pela noite. Essa frase mostra a estigmatização da pobreza em geral que a gente tem no Brasil: de que os pobres são bandidos, criminosos, marginais e delinquentes. Isso é preconceito contra a pobreza, proveniente de uma herança escravocrata.

“Movimentos de luta por moradia são facção criminosa.”

Kazuo Nakano: Isso é uma tendência muito perigosa que a gente está vivendo aqui no Brasil e em outros países do mundo de criminalizar a luta política. Isso acaba afetando os movimentos sociais e as lutas populares. Vemos no Brasil, com a Operação Lava Jato e as denúncias de corrupção, uma confusão entre as definições de ação política e ação criminosa. Isso acabou se misturando.

A gente precisa ter discernimento de que a luta por direitos e contra a desigualdade social é uma ação política e é absolutamente legítima, e não pode ser vista como ação criminosa. Essa tendência de criminalização do debate político é uma coisa que parte muito das visões fascistas, cada vez mais fortes no mundo, e tem como prerrogativa a eliminação do outro, daquele que é diferente. Isso daí é a falência da política. Quando você elimina o debate com o outro, você está eliminando a prática política.

“A culpa [do desabamento] é dos líderes dos movimentos, que colocam o povo lá e muitas vezes vão dormir na suas mansões.”

Kazuo Nakano: Primeiro de tudo, a responsabilidade é do poder público (com a falta de políticas públicas), que atua ali seguindo uma agenda referente à política urbana e habitacional a favor do mercado e da especulação imobiliária. Este é o ponto crítico.

Hoje, a gente não tem uma política urbana e habitacional de destinação de terra urbana adequada, de localização adequada e com condições de habitação adequadas para famílias de baixa renda. Não existe uma política que define lugares dignos para elas, dentro da cidade, perto de serviços e equipamentos, do emprego e do transporte público. O que a gente vê hoje é uma política habitacional que está priorizando a mercantilização da terra.

Ontem à noite, em meio a isso tudo que está acontecendo em São Paulo, a Câmara Municipal aprovou uma lei nova que aumenta para 1,7 milhão de metros quadrados o potencial construtivo do Complexo do Anhembi. A própria Câmara já aprovou a venda desse patrimônio público para a iniciativa privada. Este é um exemplo que pode ser somado a vários outros que fazem parte do problema de desestatização da cidade.

A política urbana habitacional, em vez de estar voltada para atender necessidades habitacionais das famílias de baixa renda de uma maneira adequada e com moradia digna, está sendo implementada para favorecer e aquecer as possibilidades do setor empresarial. Diante disso, a responsabilidade do incêndio não está nos moradores que vivem naquela precariedade. É muito pequeno reduzir o problema da falta de segurança que os moradores vivem ali culpando as lideranças.