‘O amor não está no DNA’, diz publicitária que recebeu óvulos doados para ser mãe, aos 45 anos

Em uma sociedade presa a tabus sobre sangue e herança genética, a ovodoação prova que o ato de maternar se constrói com vontade e amor

08/05/2025 13:28 / Atualizado em 09/05/2025 19:06

A ovodoação foi um caminho possível e real para maternidade tardia
A ovodoação foi um caminho possível e real para maternidade tardia - arquivo pessoal

Luciana Correia Vuyk tornou-se mãe aos 45 anos. Não por acaso, — pelo contrário — por escolha, ainda que tardia, muita vontade e resiliência. Após quase quatro anos de tentativas frustradas, enfrentando infertilidade pela idade, medos e silêncios, ela acolheu uma nova forma de gerar: a ovodoação. Um gesto anônimo e solidário que atravessa barreiras genéticas para plantar amor no lugar de incertezas.

Ela, que por muito tempo se dedicou à carreira de publicitária e não se imaginava mãe, anos mais tarde enfrentou a realidade da baixa reserva ovariana — que é a redução da quantidade e/ou qualidade dos óvulos disponíveis nos ovários, algo que tornava mais difícil uma gravidez natural.

Tentou todos os caminhos da reprodução assistida: coito programado, inseminação artificial e fertilização in vitro (FIV) com seus próprios óvulos. “Cheguei a achar que era um castigo de Deus, porque por muitos anos eu dizia que não queria ser mãe”, lembra. 

Mas foi ao reconhecer que maternidade é mais do que biologia que Luciana se libertou. E se permitiu amar. A doação anônima de óvulos se apresentou como uma porta aberta para a maternidade. Neste procedimento, uma mulher doa seus óvulos para outra que deseja engravidar, mas não pode usar seus próprios óvulos.

Para Luciana, ser mãe exigiu desconstruir certezas para reconstruir sonhos
Para Luciana, ser mãe exigiu desconstruir certezas para reconstruir sonhos - twosensephotography

Desconstrução de tabus para aceitar a ovodoação

O processo não foi nada fácil. Luciana enfrentou muitos medos: medo da reação das pessoas, medo de sofrer preconceito com o filho que ela teria. “Minha família é do Nordeste, onde há uma ligação muito forte com o sangue, com a árvore genealógicaEu temia que minha mãe e meus irmãos não amassem meus filhos como amam meus sobrinhos.”

Além desse medo, Luciana precisou enfrentar a sensação de solidão e a falta de informação. Ela não sabia absolutamente nada sobre ovodoação. Também não existiam redes de apoio na época, histórias parecidas com a dela, nem conteúdo acessível que a ajudasse a entender esse caminho.

“O tempo passou e eu precisei decidir entre deixar de lado o sonho de ser mãe gestando um filho e continuar acumulando frustrações ou abraçar a chance de conhecer o amor de uma nova forma. Eu escolhi gerar o amor.”

O momento decisivo veio depois de cruzar seu caminho com o de uma gata de rua: Mocha. Teimosa, persistente, inesperada, como o amor que muda tudo. Ao se ver cuidando daquele pequeno ser de origem desconhecida, Luciana compreendeu o essencial: “O amor não está no DNA”, como ela diz.

“Um dia, ela [Mocha] dormia no sofá, tomando antibiótico, e eu me sentei no chão ao lado dela, com medo de perdê-la. Coloquei o dedo no nariz dela para ver se estava respirando. Naquele momento, comecei a chorar. Abracei a Mocha e agradeci a Deus por tê-la colocado no meu caminho para me mostrar que o amor é construção. Pensei: ‘Como posso dizer que não vou amar um filho, mesmo sem meu DNA, se estou completamente apaixonada por uma gata que apareceu do nada, sem que eu soubesse sua origem?’ Foi nesse momento que eu disse sim à ovodoação”.

A ovodoção é um dos caminhos para quem tem o sonho de gestar um filho
A ovodoção é um dos caminhos para quem tem o sonho de gestar um filho - twosensephotography

Porto seguro para tentantes

Hoje, ela não é apenas mãe da Gabriella e Isabella, gêmeas de 7 anos, é também porto seguro para tantas outras pessoas que percorrem o mesmo caminho. Criadora da campanha Dia de Doar, com as causas: #DiaDeDoarÓvulos, #BoraCongelar, #DiaDeDoarSêmen e #DiaDeDoarEmbriões, ela se dedica a desmistificar a ovodoação, preservação da fertilidade, acolher tentantes e disseminar informação acessível. Luciana também escreveu livros infantis sobre doação de gametas — obras que explicam com leveza o que é ser gerado por amor, mesmo sem vínculo genético, e que trazem informações técnicas para os adultos.

Ela também vai lançar em junho a primeira temporada de seu poscast, o ÓvuCast, que é um espaço de escuta, acolhimento e informação sobre reprodução assistida. “Vamos falar sobre ciência, emoção e todas as formas possíveis de formar uma família”, adianta.

Seu trabalho nas redes sociais, com oLaços da Fertilidade“, alcança mulheres maduras, pacientes oncológicas, casais homoafetivos, pessoas que enfrentam menopausa precoce ou doenças genéticas. Luciana é a rede que ela mesma não teve. Seu lema é claro: ninguém deveria caminhar pela estrada da fertilidade sem apoio, sem voz ou sem esperança.

“Ter vivido esse processo me deu empatia real com quem está nesse lugar. Minha história é de sucesso, mas não foi sem dor”, enfatiza.

Óvulos de doadora anônima possibilitaram que Luciana gerasse suas duas filhas
Óvulos de doadora anônima possibilitaram que Luciana gerasse suas duas filhas - arquivo pessoal

O DNA pode iniciar histórias, mas é o afeto que as escreve

Sobre a maternidade que construiu, Luciana não a vê de outra forma senão como um lugar habitado de amor. “Hoje, eu não consigo me imaginar sem ser mãe. A ovodoação trouxe vidas para a minha vida, me transformou por inteiro”, afirma.

“Eu gostaria que a sociedade compreendesse que não é o DNA que define a maternidade. Ser mãe vai muito além disso. Quem doa óvulos não é mãe, assim como quem doa sêmen também não é pai. A doadora oferece um material genético que traz a possibilidade de alguém gerar seu filho ou filha, e isso é um gesto imenso de solidariedade, mas a maternidade está na construção diária, no vínculo, no amor.”

Conhecendo o caminho da ovodoação

Segundo o ginecologista Dr. Agnaldo Viana, especialista em Reprodução Humana da clínica do grupo IVI Salvador, a ovodoação é indicada quando a infertilidade está relacionada à quantidade ou à qualidade dos óvulos da paciente, como no caso de Luciana.

“Mulheres com idade acima de 40 anos comumente não tem mais quantidade de óvulos suficientes pra gerar um bom embrião. Mas não é exclusivo a mulheres mais velhas. Eu já acompanhei pacientes jovens que não tinham qualidade suficiente para formar bons embriões. A mais jovem que já utilizei esse tratamento com óvulos doados tinha 26 anos”, destaca.

A prática é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e envolve processos rigorosos. Uma vez que os óvulos doados são de boa qualidade, o foco se volta à receptora: a saúde do útero e o preparo endometrial tornam-se prioridade para acolher o embrião, formado a partir do óvulo doado e do sêmen do parceiro ou de banco genético.

Um ponto sensível, e também reconfortante, é a compatibilidade fenotípica. “Buscamos doadoras com características físicas semelhantes às da receptora. Usamos desde listagens até softwares de inteligência artificial para auxiliar nesse processo”, explica o médico.

Filhas de Luciana hoje têm sete anos
Filhas de Luciana hoje têm sete anos - twosensephotography

Para além da técnica, há também uma dimensão profundamente simbólica: a maternidade não se resume a uma única célula, e a gestação tem um papel inquestionável. “Eu gosto inclusive de definir e apresentar [a ovodoação] como um caminho alternativo. Mas um caminho alternativo que é fabuloso por conta do poder do útero em gerar e moldar aquele bebê no ventre da paciente”, explica o médico.

“A gestação é o grande trunfo. Aquele bebê gerado por aquela mulher é filho dela e de mais ninguém. Inclusive com características únicas por conta da Epigenética, influência do ambiente no despertar de seus genes. O útero faz a mulher continuar no local que sempre esteve, protagonista de todo processo.”

O médico explica ainda que a taxa de sucesso da ovodoação é de cerca de 70%, e pelo fato de as técnicas de reprodução humana serem extremamente complexas e tecnológicas, os custos são altos, desde a medicação a processos no laboratório. “Mas as clínicas buscam sempre meios de facilitar o acesso a paciente que não tem condições. Busque se informar”, orienta.

Ainda que a FIV — com ou sem doação — torne o pré-natal tecnicamente de alto risco, o médico frisa que, com o acompanhamento adequado, tudo tende a correr bem. E faz um apelo: falar sobre ovodoação é fundamental para combater o estigma e acolher novas formas de maternar.

“As pessoas precisam entender que filhos gerados por esse método são tão filhos quanto qualquer outro. Informação é o melhor caminho para entendermos tudo isso.”

Em uma sociedade ainda presa a mitos sobre sangue e herança genética, Luciana e tantas outras mães receptoras de óvulos doados plantam a semente da verdade: laços se constroem com tempo, com cuidado, com presença. O DNA pode carregar a origem, mas é o amor que escreve o destino da maternidade.