‘O preconceito muitas vezes é disfarçado de elogio’: a jornada de uma mãe atípica após o diagnóstico de autismo

O diagnóstico de autismo do filho exigiu de Daiane resiliência e muito estudo; conheça sua história e os cuidados indicados por uma psicóloga especializada

Por Wallace Leray em parceria com João Gabriel Braga (Médico - CRMGO 28223)
08/04/2025 17:02 / Atualizado em 25/04/2025 09:48

Daiane Gomes, 36 anos, nunca imaginou que a maternidade viria com tantas perguntas sem respostas. Quando Heitor de Freitas, 9 anos, nasceu, em Niterói, Rio de Janeiro, parecia apenas mais um começo cheio de promessas e sonhos. Mas, com 1 ano e 11 meses, o silêncio tomou espaço onde palavras deveriam florescer. O choro era a única linguagem que restava, e a alimentação se tornou um campo de batalha. Foi ali que Daiane soube: havia algo diferente no caminho de seu filho.

O diagnóstico de autismo veio quase um ano depois. E, junto com ele, um novo mundo se abriu — vasto, desconhecido e desafiador. Não foi fácil. “Choramos, ficamos muito mal, pois Heitor já nasceu com uma deficiência física e mais um tempo à frente já tivemos outro diagnóstico”, disse Daiane, em entrevista exclusiva à Catraca Livre, para o especial de Abril Azul, campanha em conscientização do autismo.

‘O preconceito muitas vezes é disfarçado de elogio’: a jornada de uma mãe atípica após o diagnóstico de autismo
‘O preconceito muitas vezes é disfarçado de elogio’: a jornada de uma mãe atípica após o diagnóstico de autismo - Arquivo pessoal

O desafio da busca por tratamento

A jornada para conseguir um diagnóstico e tratamento adequado foi uma luta constante. “Não conseguimos tratamento da forma que pensávamos, precisamos recorrer judicialmente para ter acesso. Mesmo assim, ficamos ano passado um bom tempo sem as terapias, que sem elas Heitor não consegue se desenvolver.” Cada passo exigiu força e determinação, enfrentando a burocracia e a demora do sistema de saúde, enquanto o tempo parecia escapar por entre os dedos.

O peso e a leveza de ser mãe

A maternidade sempre carrega desafios, mas para Daiane, eles se multiplicaram. A rotina mudou drasticamente. “A primeira mudança foi minha logo assim que Heitor nasceu, tive que sair do meu emprego e me dedicar integralmente ao meu filho, por conta de todo tratamento, mas não parei definitivamente. Comecei a estudar, fiz faculdade, pós-graduação na área, tudo para ajudar ele e outras crianças.”

Mesmo assim, a sensação de solidão às vezes a alcança. “Quase todos os momentos nos sentimos assim, pois a ajuda quase não vem de forma prática. As pessoas se distanciam, não compreendem a nossa nova vida, que não temos mais o mesmo tempo de antes, que o tratamento requer muita dedicação.”

O preconceito também se fez presente, muitas vezes mascarado de palavras que deveriam ser de apoio. “O preconceito muitas vezes é disfarçado de elogio, como me chamar de guerreira, ou dizendo que não aguentaria no meu lugar. Isso é uma forma de ofender os pais e também a criança. Infelizmente, temos que lidar com a falta de respeito e informação das pessoas, que levam ao preconceito. Eles podem muito mais do que imaginamos, só precisam das oportunidades certas e de pessoas que acreditam nesse processo.”

Daiane transformou a dor do diagnóstico em combustível para mudança e aprendizado contínuo
Daiane transformou a dor do diagnóstico em combustível para mudança e aprendizado contínuo - Arquivo pessoal

Pequenas vitórias, imensas conquistas

Cada palavra dita, cada olhar respondido, cada gesto compreendido: são essas as conquistas que fazem a caminhada valer a pena. “São muitos: o dia que ele pediu água pela primeira vez, aos quatro anos; quando me chamou de mamãe; quando, já aos sete anos, aprendeu a ler algumas palavras; quando consegui entender que estava chamando por ele e logo assim ele olhou. Quando aprendem, vira memória logo em seguida.”

Os medos ainda existem. Como será o futuro? “As dúvidas e preocupações são gigantes logo assim que recebemos o diagnóstico: futuro, se vai falar, como vai ser na escola, se vai conseguir comer, tomar banho, se vestir sozinho… Medo do capacitismo, das pessoas que não entendem as dificuldades e querem logo julgar.”

Heitor, com seus beijos inesperados e seu sorriso que ilumina qualquer sombra, ensina a Daiane que a felicidade está nas pequenas coisas. “Damos muito carinho e queremos que isso seja sentido por muitas pessoas.”

Um conselho para outros pais

Se Daiane pudesse estender a mão a outros pais que estão recebendo agora a notícia que um dia abalou seu mundo, ela diria: “Eu diria para não desistir, mesmo que pareça tudo muito lento, difícil, sem respostas… Estudar sobre autismo o máximo que puderem, ajudar da melhor forma que conseguirem dentro da realidade que vivem. Principalmente, acredite e aceite o diagnóstico, isso vai mudar a vida de vocês. Não romantize, escolha conscientizar. Não esconda seus filhos, não ligue para quem não te ajuda, viva um dia de cada vez. Se precisar chorar, chore e desabafe. Não tente fazer tudo, porque isso ninguém consegue. Converse com outras mães, troque ideias. No mais, seja feliz! Vai dar tudo certo.”

Registro de uma caminhada compartilhada entre desafios e pequenas grandes conquistas
Registro de uma caminhada compartilhada entre desafios e pequenas grandes conquistas - Arquivo pessoal

Especialista explica os desafios após o diagnóstico de autismo

Receber o diagnóstico de autismo de um filho é, para muitas famílias, um momento de virada — repleto de dúvidas, sentimentos contraditórios e a urgência de encontrar caminhos para acolher a criança. Em entrevista exclusiva à Catraca Livre, a psicóloga Giovanna Nicolau, especialista e pesquisadora sobre neurodiversidade e autismo, explica que, na maioria dos casos, os primeiros sinais aparecem por meio de comparações inevitáveis com outras crianças.

“Geralmente existe alguma percepção de algum comportamento diferente do que a maioria das crianças deveriam apresentar”, explica. Os indícios podem surgir na forma de menor interação social, hiperfoco em objetos ou temas específicos, sensibilidade sensorial ou seletividade alimentar. No entanto, ela alerta que é preciso cuidado antes de concluir qualquer coisa. “É importante que considere o contexto, realidade e narrativa de cada criança e sua família, pois nem sempre esses comportamentos indicam autismo.”

O caminho até o diagnóstico

O processo diagnóstico pode seguir diferentes caminhos. Giovanna pontua que, além da tradicional avaliação médica, outras áreas como psicoterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia também podem identificar neurodivergências. Mas o acesso, especialmente pelo sistema público, costuma ser lento e exaustivo.

“Os caminhos até o diagnóstico costumam demorar e se gasta além de muito dinheiro, muita energia e saúde mental, gerando fadiga nas pessoas envolvidas”, afirma. Para ela, a principal dificuldade enfrentada pelas famílias é a sobrecarga emocional e a falta de orientação. “É um tempo muito grande de espera que pode levar anos e muitas vezes ficam sem suporte, orientação e acolhimento para como navegar nesse processo.”

A reação das famílias

Quando o diagnóstico chega, as reações são múltiplas. “Há pais e responsáveis que reagem de uma forma acolhedora, outros que reagem com negação, outros que demoram a aceitar, outros que buscam suporte”, relata. Segundo a psicóloga, ainda existe muito capacitismo envolvido nesse momento, principalmente pela quebra da expectativa da perfeição. “É um processo que precisa de cuidado, tanto a criança diagnosticada, quanto os responsáveis, para que possam compreender o autismo e não buscar curá-lo.”

A psicóloga Giovanna Nicolau reforça a importância do acolhimento emocional e da construção de redes de apoio após o diagnóstico de autismo
A psicóloga Giovanna Nicolau reforça a importância do acolhimento emocional e da construção de redes de apoio após o diagnóstico de autismo - iStock/nambitomo

Convivência e desconstrução

Para lidar com o impacto emocional inicial, Giovanna recomenda que os pais se aproximem de autistas adultos e comunidades voltadas à neurodiversidade. “Comento isso para que autistas adultos possam desmistificar os estereótipos, mitos e tabus sobre o autismo”, diz. Ela reforça que o cuidado precisa ser coletivo, e não individualizado: “Muito menos colocar a criança como responsável para se adaptar ao ambiente e ser mais aceita socialmente.”

Adaptações e primeiros passos

Além do acolhimento emocional, atitudes práticas fazem diferença no dia a dia. “Identificar o quê nos ambientes regula e desregula a criança, identificar suas sensibilidades e adquirir ferramentas de inclusão (fones antirruído, por exemplo), identificar as comidas da seletividade alimentar, dar previsibilidade, organizar uma rotina que regule a criança assim como a família”, orienta Giovanna. Ela também ressalta a importância de momentos de descanso, psicoterapia para os pais e construção de uma rede de apoio.

Falando sobre o diagnóstico com a rede de apoio

Na hora de comunicar o diagnóstico para familiares e amigos, a dica é começar por quem demonstra abertura e acolhimento. “A partir do momento que essas pessoas recebem, podem dar mais segurança e suporte para contar às demais pessoas”, sugere. Giovanna reconhece que o capacitismo pode aparecer, mas defende a importância do letramento da rede de apoio. “É importante sabermos nossos direitos e reivindicá-los e, quando for o caso, acionar os serviços de proteção ao cidadão.”

Ela ainda recomenda um material gratuito e acessível: Como educar crianças anticapacitistas, escrito por Karla Garcia Luiz e Mariana Rosa.

O acompanhamento psicológico dos pais é fundamental — desde que respeite o olhar da neurodiversidade. “Acredito que [os pais devem ter] um espaço onde possam se expressar e serem acolhidos”, afirma. “Para que não entendam as neurodivergências e deficiências como um fardo, um problema, uma doença a ser curada ou eliminada.”

Evitando armadilhas emocionais

Entre os erros mais comuns está a expectativa de “normalidade”. “Às vezes podem se perceber querendo que a criança seja ‘normal’”, diz Giovanna. “É uma das formas mais estruturais de capacitismo.” Para ela, é preciso mudar o foco: não exigir que a criança se adapte ao mundo, mas transformar o ambiente para acolher todas as formas de existência. “Você cobraria uma pessoa com deficiência física que usa cadeira de rodas para subir uma escada?”.

Especialista em Educação Social e Cidadania, Giovanna orienta famílias sobre como lidar com o capacitismo e criar ambientes mais inclusivos para crianças autistas
Especialista em Educação Social e Cidadania, Giovanna orienta famílias sobre como lidar com o capacitismo e criar ambientes mais inclusivos para crianças autistas - iStock/mohd izzuan

O desafio do autocuidado

Conciliar o cuidado da criança com o próprio bem-estar não é simples — e Giovanna reconhece isso. “É difícil considerarmos o autocuidado enquanto temos inúmeras responsabilidades e, na maioria das vezes, precisamos cuidar sozinhas das diversas demandas.” A saída, segundo ela, é fazer o que for possível dentro das condições reais. “Identificar as demandas prioritárias e/ou urgentes e realizá-las e realizar as demais conforme consegue.”

Uma mensagem de esperança

Para as famílias que acabaram de receber o diagnóstico e se sentem perdidas, a psicóloga deixa um recado importante: “Não deixem de acreditar que é possível construir uma sociedade anticapacitista.” Ela defende que é preciso romper com a ideia médica tradicional sobre deficiência e imaginar um futuro onde mentes neurodivergentes sejam celebradas. “É um processo difícil, e terão muitos dias desafiadores, mas não estamos sozinhas e é possível encontrarmos formas de suporte e cuidado com pessoas que estão passando, já passaram por isso.”