Obesidade e o constrangimento de receber vacina prioritária da covid
Constrangimento com relação ao próprio peso faz muitas pessoas renunciarem a seu direito por saúde
Estando próximo a completar a imunização de grupos etários prioritários, o Ministério da Saúde organiza para este mês a vacinação de pessoas com menos de 60 anos que possuem comorbidades consideradas de alto risco para casos de infecção pelo novo coronavírus. Entre essas comorbidades, a obesidade parece trazer os maiores desafios. Isso porque, para muitas pessoas que apresentam excesso de peso, o fato de terem direito à vacina não garante que elas estejam dispostas a exercer esse direito.
Uma das principais razões para pessoas com obesidade não quererem se vacinar está no profundo constrangimento que muitas delas têm sobre o seu próprio peso. Esse estigma, por sua vez, produz não só discriminação, como diferentes formas de violência física e simbólica.
Pessoas com obesidade são comumente estereotipadas como preguiçosas, como indivíduos que não têm força de vontade para emagrecer e, pior, na medida em que são colocadas como as principais – quando não as únicas – responsáveis pela condição em que se encontram, tendem até a serem vistas como indignas para receber vacinação prioritária.
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Como é possível, em pleno século XXI, que façamos pessoas terem que suportar a dor de renunciar a um direito que pode colocar a vida delas em risco devido a um preconceito relacionado ao peso corporal?
A resposta para essa pergunta está no profundo enraizamento social da gordofobia, ou seja, do preconceito e aversão ao corpo gordo, que se manifesta de várias formas, mas que se expressa, comumente, por esse entendimento gordofóbico de que todo corpo gordo não merece direitos básicos porque o próprio cidadão gordo seria responsável pela sua condição.
Fecham-se, com isso, desde o acesso à saúde ao corpo gordo – como o próprio direito à vacina prioritária, por exemplo – até o direto de ir e vir em espaços públicos, por meio de cerceamentos morais à presença de pessoas com obesidade em lugares como praias, parques, shoppings e bares.
Se, ao falarmos de gordofobia, você pensou em outras formas de preconceito que podem representar privação de direitos básicos a seres humanos, como a xenofobia, por exemplo, de fato há paralelos.
Se, de um lado, grupos ultranacionalistas entendem que estrangeiros não podem ter acesso a políticas sociais, como saúde, educação e auxílio desemprego, na medida em que não integrariam a nação (o “corpo nacional”); do outro, corpos gordos tendem a ser vistos em nossa sociedade como não merecedores de direitos básicos, já que não fazem parte do “corpo” socialmente aceito, isto é, do corpo magro.
A diferença principal entre esses dois preconceitos é que o primeiro tende a ser fortemente exteriorizado, representado por barreiras físicas contundentes – muro, cerca, passaporte, número de seguridade social -, fechando claramente direitos e oportunidades àqueles que não são nacionais.
O segundo, ao contrário, tende a ser menos explícito (mas não por isso menos violento e real para aqueles que o sofrem), e, exatamente por isso, acaba sendo reproduzido socialmente muito mais através de restrições autoimpostas – da vergonha de ir à praia ao constrangimento de receber vacina prioritária – do que por meio de segregação explícita.
As consequências da gordofobia são graves em quaisquer arenas sociais, mas nada se comparam às suas implicações na área da saúde. Sabemos, por exemplo, que profissionais da saúde dispendem menor tempo em consultas quando o paciente apresenta algum grau de obesidade.
Há casos também de profissionais que efetuam diagnósticos errados por estarem cegos pelo preconceito gordofóbico, já que, para muitos, o fato de um indivíduo estar acima do peso torna-se suficiente, por si só, para culpá-lo por sua condição de saúde.
Evidentemente, não são poucas as pessoas com obesidade que, devido a esse tratamento desrespeitoso e, em alguns casos, desumano, acabam desenvolvendo uma série de problemas de saúde mental, como sintomas depressivos e de ansiedade, baixa autoestima, isolamento social, e até transtornos alimentares, como transtorno de compulsão alimentar.
Como reverter esse quadro tão grave? Mais uma vez, a educação é alicerce para construirmos mudanças estruturais e de longo prazo na sociedade; conscientizar as pessoas sobre o estigma do peso é a chave para transformarmos preconceito em solidariedade, violência em empatia.
Além disso, é urgente focar na formação de profissionais da saúde a fim de torná-los empáticos e capacitados para tratar com dignidade a demanda de saúde dessa população. Vale destacar também a importância de canalizarmos mais recursos para pesquisa no tema, gerando maior engajamento e transformação social.
Enquanto essas modificações mais estruturais não ocorrem, é preciso que a informação sobre a vacinação seja espalhada aos quatro cantos: se você tem obesidade grave, ou seja, se seu índice de massa corpórea estiver acima de 40kg/m², procure um posto de saúde e garanta seu direito à vacinação. Por mais que possa ser difícil encarar o preconceito e a violência da discriminação cotidiana, sua vida vale mais do que qualquer outra coisa.
Texto escrito pela nutricionista Marcela Kotait.