‘Já desisti de ir pra festa, socializar, viajar’: a realidade de quem vive com a doença de Crohn

Pessoas com DIIs enfrentam desafios invisíveis no cotidiano; neste Maio Roxo, conheça a história de uma enfermeira que tem a doença de Crohn e é ostomizada

Por Caroline Vale em parceria com Anna Luísa Barbosa (Médica - CRMGO 33271)
13/05/2025 19:51 / Atualizado em 26/05/2025 11:18

Neste Maio Roxo, mês de conscientização sobre as Doenças Inflamatórias Intestinais (DII), a Catraca Livre conversou com Manie de Andrade, enfermeira de Salvador (BA), que convive com a Doença de Crohn há mais de duas décadas e é ostomizada há quase 10 anos.

Manie de Andrade conversa com a Catraca Livre sobre Crohn, ostomia e desafios
Manie de Andrade conversa com a Catraca Livre sobre Crohn, ostomia e desafios - Acervo pessoal

Manie recebeu o diagnóstico de Crohn aos 17 anos, após sete meses de exames, sintomas intensos e visitas a diferentes especialistas.

Ela teve diarreias, náuseas, vômitos, febre, fadiga, falta de apetite e dor no abdome. Perdeu 20 quilos e dormia muito mal, pois ficava acordando para ir ao banheiro.

Chegava a ir no toalete 10-15 vezes ou mais no fim do dia. O diagnóstico veio como uma resposta, com certo alívio, por dar um nome. Mas, ao mesmo tempo, medo e interrogações”, relembra.

Complicações e ostomia

Nos anos seguintes, ela enfrentou complicações severas da doença. “Entre 2014 e 2015, os meus dias se resumiam a dores, depressão e pânico, estar deitada em cima de uma cama, usando fraldas. Saía de casa, basicamente, pra fazer exame, ir pra médico, tomar medicamentos. Nos dias bons, fiz algumas aulas e visitei minha amiga de infância“, conta sobre o período que a Crohn estava em atividade.

As complicações levaram à necessidade de uma ostomia — cirurgia que cria uma abertura no abdômen para eliminação das fezes. No entanto, a decisão de usar a bolsa não foi fácil, e Manie chegou a combinar com seu cirurgião que só aceitaria colocar no dia que fosse realmente essencial. Até que esse dia chegou.

Fui resistente. Não conseguia me enxergar com ela. Preferi usar a fralda e usei por meses. […] Eu estava muito, muito debilitada. Cheguei à emergência do hospital desnutrida, com 34 quilos, intestino perfurado, além de estreitamentos e inúmeros abscessos. […] Chegaram a informar que eu talvez não sobrevivesse à cirurgia. Então, digo que ganhei uma nova oportunidade de viver.”

A enfermeira teve complicações da Doença de Crohn
A enfermeira teve complicações da Doença de Crohn - Acervo pessoal

Hoje, mesmo com todos os desafios, ela avalia o impacto da ostomia como positivo. Em entrevista à Catraca Livre, o cirurgião digestivo Dr. Rodrigo Barbosa, CEO do Instituto Medicina em Foco, reforça que o uso pode recuperar a qualidade de vida.

Já vi pacientes que estavam há anos trancados em casa, com medo de sair, retomarem a vida com autonomia após a cirurgia. O enfrentamento começa com informação. Mostrar histórias reais, acolher sem julgamento e quebrar a ideia de que a bolsa é uma vergonha — quando, na verdade, é uma solução.”

Como pessoas com DII se preparam para sair de casa?

Segundo uma pesquisa recente da Crohn’s & Colitis Foundation, mais de 60% dos pacientes relatam que a doença de Crohn interfere diretamente na vida social e no planejamento das atividades do dia.

Mesmo com a remissão da doença, Manie ainda precisa se preparar antes de sair de casa — especialmente em viagens.

Tenho um equipamento [bolsa de ostomia] mais moderno, novos materiais que auxiliam no dia a dia. Geralmente carrego meu kit de troca (com algumas coisas extra, pois existem intercorrências) quando viajo”, conta.

Antes da ostomia, o planejamento da enfermeira era ainda mais rigoroso.

Já desisti de ir pra festa, socializar com amigos e familiares, viajar, tranquei pós-graduação, terminei relacionamento… tanta coisa, por conta de evitar sair de casa. Vivi um período também onde tive crise de ansiedade, indo cerca de 20 vezes ao banheiro. Foram meses evitando sair de casa por medo de ter vontade e não encontrar um banheiro.”

Então, quando finalmente saia de casa, ela tinha toda uma estratégia: “quando chegava ao local, procurava logo o toalete e sentava próximo. Se o lugar não tivesse banheiro, não ia. Além de carregar o kit emergência e cheirinho para o ambiente.

A ostomia me deu muita liberdade neste sentido. Ainda preciso de um banheiro no local, mas não é mais necessário sentar estrategicamente. Por ter uma ileostomia, preciso usar o banheiro com maior frequência de quem tem uma colostomia”, comenta.

Para informação: a colostomia desvia o intestino grosso para a saída das fezes, enquanto a ileostomia desvia o intestino delgado.

O cirurgião digestivo pontua que o fácil acesso a banheiros públicos são questões centrais para quem convive com DII.

A constante urgência para evacuar afeta o sono, o apetite, o humor e até o rendimento no trabalho ou nos estudos. Muitos pacientes relatam que precisam mapear banheiros em locais públicos antes de sair de casa. Isso contribui para o isolamento social e até abandono dos estudos ou da carreira”, explica.

O profissional também comenta que, como os sintomas são invisíveis, muitas vezes os pacientes são vistos como frágeis, preguiçosos ou ansiosos: “existe uma grande falta de empatia e de preparo institucional — tanto em ambientes de trabalho quanto escolares — para lidar com a realidade de quem convive com crises imprevisíveis, dor crônica e urgência intestinal.”

Um olhar mais amplo sobre as doenças inflamatórias intestinais

As doenças inflamatórias intestinais, como a Doença de Crohn e a Retocolite Ulcerativa, são crônicas, autoimunes e afetam principalmente o sistema digestivo.

Os sintomas variam, mas incluem diarreia, sangramento, dores abdominais, perda de peso e fadiga extrema. O tratamento pode envolver medicamentos imunossupressores, biológicos, suplementos e, em casos mais graves, cirurgias como a ostomia.

De acordo com Manie, mesmo após anos de tratamento, um dos maiores desafios ainda é a incompreensão das pessoas.

Os julgamentos envolvendo a fadiga nunca deixaram de me acompanhar. ‘Preguiçosa!’ e ‘Tá cansada de não fazer nada?’ são algumas das falas que mais escutei em todos estes anos. […] Infelizmente muitas pessoas me rotulam somente como uma pessoa com doença e/ou uma bolsa de ostomia. ‘Tão bonita, nem parece’. Esse é um dos ‘elogios’ que mais recebi.”

No ambiente de trabalho não é diferente, mesmo ela atuando na área da saúde: “Já fui rotulada como ‘a que faz corpo mole’, ‘que inventa desculpas para fugir do trabalho’. Assim como em relações, relacionamentos – que por sinal nem foram adiante, porque eu acredito que mereço muito mais do que um rótulo e julgamentos.”

Segundo ela, outro impasse é o fato da ostomia ser uma deficiência considerada “invisível”: “Então, inúmeras vezes que estive usando meus direitos, fui desrespeitada.”

Manie também destaca o impacto emocional do diagnóstico e a importância do suporte psicológico. “Fiz anos de terapia. Receber um diagnóstico de doença crônica é viver um luto da nossa vida, sonhos e perspectivas. Foi preciso aprender a lidar com os altos e baixos, saber conviver, me adaptar, mudar o olhar até reescrever sonhos. O processo terapêutico foi primordial em muitos momentos e indico para todos.”

Manie é enfermeira com 22 anos de vivência com Crohn
Manie é enfermeira com 22 anos de vivência com Crohn - Acervo pessoal

Justamente por esses desafios que vão além do físico, o Dr. Rodrigo enfatiza a necessidade de mais políticas públicas, educação e empatia da sociedade.

O impacto é profundo. Nunca saber como estará o intestino ao acordar cria um tipo de ansiedade que poucos conseguem entender“, ressalta o cirurgião.

Quais adaptações podem ajudar pessoas com DII?

No ambiente de trabalho e em escolas/universidades, o médico acredita que é possível acolher esses pacientes com medidas simples e de baixo custo. Isso inclui:

  • permitir saídas para o banheiro;
  • oferecer horários mais flexíveis;
  • respeitar atestados e laudos médicos;
  • evitar burocracias desnecessárias;
  • promover um ambiente sem julgamentos;
  • em escolas, liberar o aluno durante as aulas sem constrangimento já reduz muito a ansiedade associada à doença.

Como Manie está atualmente?

Em remissão, ela ainda precisa fazer o uso de medicamentos a cada dois meses, enquanto a suplementação de vitaminas e minerais é mais frequente, já que ela não tem o cólon.

Além do medicamento biológico e suplementos esporadicamente, tenho rotina com atividade física, alimentação mais equilibrada, gerenciamento de estresse, mantenho hobbies. O tratamento vai além do remédio – e é essencial saber e viver isso”, destaca.

Além disso, ela precisa passar no gastro a cada 3 meses para fazer exames de sangue, além de calprotectina fecal e ressonância, quando necessário.

Hoje, quando surgem desafios, meu foco fica em gerenciar, buscar resolução. No início eu choro (sim, dói do mesmo jeito, sou humana), passo alguns dias resolvendo comigo mesma. Me distraio com hobbies, converso com minhas amigas, admiro a natureza, faço contato com Deus, vou malhar, dançar. Depois de uns dias junto toda a força que tenho e sigo em frente.”

Manie compartilha sua experiência e rotina com a ostomia
Manie compartilha sua experiência e rotina com a ostomia - Acervo pessoal

Visibilidade e mudanças urgentes

Embora o conhecimento sobre as DII tenha avançado, Manie acredita que ainda falta muito: “São cerca de 100 pessoas afetadas a cada 100 mil brasileiros. Não somos raros. Mesmo assim, as DII não possuem portarias, normativas ou qualquer legislação própria”, lamenta.

Segundo ela, o atendimento e o mercado de trabalho precisam evoluir. “Pacientes ficam sem tratamento, sem assistência, auxílios são negados, concursos os excluem, governantes não nos conhecem. Nem consideram
como PCD, nem vistos como uma pessoa ‘normal’ porque existe um diagnóstico.”

Para fazer parte da mudança, a enfermeira criou o perfil @descrohnplicando no Instagram, uma página voltada a desmistificar informações sobre as doenças inflamatórias intestinais.

Por lá, ela mostra seu cotidiano com a doença de Crohn em remissão e serve de apoio e inspiração para muita gente: “conhecer pessoas com o mesmo diagnóstico ajuda muito.”

Para Manie, campanhas como o Maio Roxo são importantes para visibilizar o tema e abrir caminhos. Mas ela reforça: é preciso ir além.

A sociedade é composta por pessoas e parte delas não entende que o mundo é plural. Que corpos com cicatrizes, assim como diagnósticos e deficiências, são detalhes que não nos fazem menos humanos ou menos capazes. Logicamente, com a doença em atividade teremos momentos onde cuidados serão necessários. Mas viver com medo de perder seu emprego por comunicar seu quadro e solicitar alguns dias, não ajuda em nada. Ninguém entrou na fila pra ganhar um diagnóstico. Ao mesmo tempo, viver num ambiente saudável contribui muito na saúde emocional – e física. O intestino é nosso segundo cérebro“, finaliza.

Maio Roxo

Neste mês dedicado à conscientização sobre as doenças inflamatórias intestinais (DII) que impactam a qualidade de vida de milhões de pessoas, a Catraca Livre prepara uma série de reportagens para informar seus leitores. Clique aqui para acessar.