Varíola do macaco: transmissão sexual não pode estigmatizar homossexuais
Especialistas afirmam que a retórica estigmatizante pode alimentar ciclos de medo, que afastam pacientes e evitam diagnóstico e tratamento
No dia 27 de julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou uma reunião para anunciar o que se sabia e quais medidas de controle deveriam ser implementadas contra o surto mundial da varíola do macaco (monkeypox). Na ocasião, Tedros Adhanom, o diretor-geral da OMS, pediu para “homens que fazem sexo com homens” diminuírem o número de parceiros.
A declaração foi dada depois que a revista científica “New England Journal of Medicine” divulgou que 95% dos casos da doença foram transmitidos durante o sexo, segundo estudo realizado pela Queen Mary University of London.
Dos infectados, 98% eram homens gays ou bissexuais com idade média de 38 anos e 41% tinham HIV. Os cientistas avaliaram 528 pessoas em 16 países, entre 27 de abril e 24 de junho de 2022.
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Segundo Gerson Salvador, médico infectologista e especialista em saúde pública, o alerta foi dado por ainda se saber pouco sobre a doença. Por isso, fundamentado no estudo, homens que fazem sexo com homens (HSH) apareciam como a “população mais vulnerável”.
“A gente tem que evitar a estigmatização. Qualquer pessoa pode pegar em contato direto com as lesões”, disse Salvador em entrevista à Catraca Livre. “Quando a gente fala de vulnerabilidade, reconhece que essa população também precisa de mais cuidados e é para quem as medidas preventivas devem ser voltadas neste momento.”
Vale ressaltar que a varíola do macaco não é uma infecção sexualmente transmissível (IST), mas pode, como uma gripe, ser transmitida em uma relação sexual devido à proximidade e à troca de fluidos.
“Não há diferença da transmissão de monkeypox relacionado à prática sexual. O alerta dirige-se à população mais vulnerável”, disse Jamal Suleiman, médico infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. “A doença se transmite da mesma forma entre heterossexuais.”
“Temos ainda uma lacuna de conhecimento em relação à transmissão, mas é basicamente pelo contato com a pele”, explicou Rosana Richtmann, médica infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e diretora do comitê de imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Não que haja diferença em relação à forma de sexo entre homossexuais e heterossexuais”.
“Qualquer pessoa que tenha múltiplos parceiros, independentemente de ser homo ou hétero, está sob risco maior. Então, não tem relação com a prática, e sim com o fato de ter esse tempo mais prolongado de exposição durante a atividade sexual”, disse ela.
O teor da declaração da OMS foi recebido com surpresa na Europa. Para a ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), a fala de Adhanom “não faz sentido”. A presidente da associação, Ana Aresta, ressaltou que a comunicação feita pela OMS “não pode ser leviana”, já que trata de grupos sociais “historicamente estigmatizados”.
Um artigo da “Revista Brasileira de Enfermagem” (REBEn), publicado no dia 1º de agosto, criticou a postura discriminatória da OMS ao paciente contaminado, demonstrando preocupação com as possíveis consequências.
“O fato de relacionar a orientação sexual com o vírus monkeypox não faz qualquer sentido, já que existem opções de comunicação que se podem mostrar igualmente efetivas, como, por exemplo, focar na prática de relações sexuais entre indivíduos infectados, sem categorizar sexualidades ou práticas em específicos, assumindo uma posição globalizada das ações sanitárias e de controle epidemiológico.”
O risco da estigmatização do vírus monkeypox
Quando a pandemia da covid-19 chegou ao Brasil, os especialistas avaliaram que as populações que tinham mais chance de desenvolver um quadro grave do coronavírus eram a de idosos e a de pessoas com comorbidade.
Quem não estava nesse “grupo de risco” acabou se expondo mais, o que gerou mais casos, internações e óbitos. “Pode acontecer a mesma confusão”, afirmou Suleiman. “Por isso a importância da comunicação contínua e clara, porque a ciência se constrói com dados.”
“A gente tem que tirar o estigma de que o vírus é só para homens que fazem sexo com homens. Muito pelo contrário, qualquer um de nós está sob risco porque não temos imunidade”, explicou Richtmann. “Neste momento, temos maior circulação [no grupo HSH], mas é uma questão de tempo passar a outros grupos.”
A ILGA afirmou que a estigmatização reforça estereótipos homofóbicos, como ocorreu com a Aids nas décadas de 1980 e 1990, enquanto heterossexuais escondiam sintomas e evitavam procurar tratamento adequado por medo de serem rotulados de gays.
Os autores do artigo publicado na “Revista Brasileira de Enfermagem” recomendaram que o trabalho das equipes de enfermagem se fundamente na equidade de gênero, com a construção de abordagens não segregantes ou estigmatizadoras.