Agenda de Bolsonaro é de ‘desconstrução ambiental’, diz diretor do WWF

Segundo o Inpe, os incêndios em agosto deste ano queimaram 29.944 km² da Amazônia

O território queimado na Amazônia em agosto deste ano é mais de quatro vezes maior do que o registrado no mesmo mês em 2018
Créditos: Mayke Toscano/Gcom-
O território queimado na Amazônia em agosto deste ano é mais de quatro vezes maior do que o registrado no mesmo mês em 2018

O governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), já durante a campanha eleitoral, se mostrou contrário às políticas ambientais criadas em outras gestões. Desde o início de seu mandato, ele tem dado declarações em que questiona a importância da agenda de conservação do meio ambiente e o trabalho das organizações não governamentais no país.

Nas últimas semanas, no entanto, as imagens das queimadas e a divulgação de dados sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, aliado ao cancelamento das verbas destinadas pela Alemanha e pela Noruega para a proteção do bioma, renderam inúmeras críticas ao atual chefe de Estado brasileiro.

Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais), os incêndios na Amazônia em agosto deste ano queimaram 29.944 km² do bioma. O território queimado é mais de quatro vezes maior do que o registrado em agosto de 2018, quando foram destruídos 6.048 km².

No total, a Amazônia tem 5,5 milhões de km², sendo 4,19 milhões de km² em nove estados brasileiros. A área queimada no último mês é a maior desde 2010, quando a região sofria com uma seca intensa e teve 43.187 km² queimados.

Para Raul Valle, diretor de Políticas Socioambientais da ONG WWF-Brasil, a questão do desmatamento na Amazônia é um dos maiores retrocessos da gestão até o momento, o que terá implicações ambientais, sociais e econômicas por muito tempo.

“O governo Bolsonaro tem um discurso muito agressivo contra regras de proteção ambiental, terras indígenas e áreas protegidas em geral. Então, com esse discurso quase que cotidiano, ele e as autoridades públicas passam uma mensagem de que o governo não está empenhado em fazer cumprir a lei da Amazônia, a lei que protege a floresta e os povos da floresta”, afirma.

Segundo o diretor do WWF-Brasil, embora a situação seja preocupante, não há qualquer diálogo com o governo a respeito das políticas socioambientais, mas sim uma desconstrução de todos os avanços implementados nos últimos anos. “Isso tinha em todos os governos democráticos. Este é o primeiro governo em que não há diálogo, pelo menos até o momento”, reitera.

Além de listar outros retrocessos do Ministério do Meio Ambiente, comandado por Ricardo Salles, Valle também comentou a repercussão do desmatamento na região amazônica entre a população no geral e no âmbito internacional.

Raul Valle, diretor de Políticas Socioambientais da ONG WWF-Brasil
Créditos: Divulgação WWF-Brasil
Raul Valle, diretor de Políticas Socioambientais da ONG WWF-Brasil

Confira a entrevista na íntegra:

Catraca Livre – Como o WWF-Brasil avalia até agora a atuação do presidente Jair Bolsonaro em relação ao meio ambiente?

Raul Valle – Infelizmente, é uma atuação contrária a tudo o que foi construído na política socioambiental brasileira dos últimos 30 anos. Não existe uma política clara de construção, uma agenda ambiental, ou socioambiental. Não existe programa, não existe nada. O que tem é uma agenda basicamente de desconstrução. Isso já foi falado explicitamente tanto pelo presidente quanto pelo próprio ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles]. Eles estão lá para desconstruir o que existe e não para construir algo novo e positivo para o país.

Quais são os maiores retrocessos do governo atual sobre o meio ambiente?

Para começar, a questão do desmatamento na Amazônia é um retrocesso muito grande, e que terá implicações ambientais, sociais e econômicas por muito tempo. O governo Bolsonaro tem um discurso muito agressivo contra regras de proteção ambiental, contra terras indígenas e contra áreas protegidas em geral. Então, com esse discurso quase que cotidiano, ele e as autoridades públicas passam uma mensagem de que o governo não está empenhado em fazer cumprir a lei da Amazônia, a lei que protege a floresta e os povos da floresta. Há vários eventos que confirmam essa ideia. Um exemplo é o discurso do presidente recriminando fiscais do Ibama que apreenderam madeira numa exploração ilegal de terra indígena e destruíram equipamentos que estavam sendo usados para cometer o crime.

Outra questão foi a visita do ministro do Meio Ambiente ao Espigão do Oeste (Rondônia), uma cidade onde aconteceu um ataque às equipes do Ibama — um caminhão-tanque que levava combustível pros aviões usados nas ações de fiscalização foi incendiado por criminosos. O ministro foi ao local do crime e se reuniu com os madeireiros para falar que eles eram trabalhadores de bem e queria modificar a lei para eles continuarem trabalhando. Espigão do Oeste foi um polo madeireiro, mas que não tem mais madeira porque exploraram tudo. O que sobrou na região é terra indígena, e eles estão adentrando essas áreas. Hoje, praticamente toda a exploração madeireira da cidade é ilegal e altamente insustentável, pois obviamente se esgotaram todos os recursos.

Essas são sinalizações mais do que explícitas de apoio a atividades irregulares na Amazônia que, junto com a efetiva diminuição no número de autuações ambientais – até o momento, ocorreram 30% menos autuações do Ibama na região –, fazem com que o desmatamento esteja explodindo. Nesse caso, a gente tem mensagens, narrativas e discursos que reforçam o descompromisso do governo em fazer cumprir a lei ambiental e fiscalizar e punir desmatadores. Isso é reforçado pela demissão do presidente do Inpe, quando houve claramente uma mensagem para a sociedade brasileira de que se os dados estão apontando para o aumento do desmatamento, o governo vai querer combater os dados e não o desmatamento.

São várias pequenas coisas, todas elas muito graves, que direcionam para um discurso e uma ação que têm a ver com a diminuição das autuações do Ibama e dão a impressão clara para os grileiros, invasores de terra indígena, madeireiros e garimpeiros de que eles têm que aproveitar essa oportunidade para desmatar e ocupar a terra agora porque isso pode acontecer sem perigo de ser preso. Isso se soma a um discurso agressivo do presidente desde a campanha contra as terras indígenas. No evento em que ele esteve com os governadores da Amazônia para tratar dos incêndios, em vez de falar sobre o assunto, ele saiu com um discurso político contrário às terras indígenas. Ele já falou que não vai demarcar mais terras indígenas e também que pretende rever as que existem.

O secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, está desde o começo do governo fazendo tour pelo Brasil anunciando que irá rever a demarcação das terras indígenas. Isso é uma sinalização muito clara para os grupos ilegais da Amazônia, que vivem de invasão de terra pública, de que há uma oportunidade antes não existente.

É importante ter claro que a demarcação de terras indígenas e a criação de áreas protegidas de conservação foram meios muito eficazes que o Brasil encontrou durante mais de uma década para paralisar o desmatamento. Por quê? Porque o desmatamento na Amazônia é sobretudo uma atividade especulativa, feita por alguém que quer conseguir uma terra de graça ou muito barata, com pretensão de lá para frente vender para o mercado agropecuário. Imediatamente essa pessoa vai, ocupa a terra desmatando, vende a madeira, coloca gás ali e espera que um dia alguém venha comprar essa terra. Isso acontece porque são muitas terras públicas, que não têm um dono estabelecido e o estado não assume isso.

Essa questão da insegurança fundiária é o que alimenta a indústria de grilagem. O Brasil conseguiu durante anos conter de alguma forma essa indústria justamente criando unidades de conservação e finalizando o processo de reconhecimento de terras indígenas porque, com isso, o estado passava a mensagem de que aquelas terras estariam definitivamente protegidas e passariam a fazer parte do patrimônio do país. Dessa forma, não adiantaria qualquer um ocupar a terra e derrubar uma floresta para vender mais pra frente, pois isso não funcionaria já que ali passou a ser uma área que o estado brasileiro tomou posse.

Essa sinalização do governo está atiçando esses grupos de criminosos da Amazônia, que estão invadindo as terras indígenas. Os números gerais de desmatamento são muito preocupantes. Nunca na história da mensuração desses dados os desmatamentos em áreas protegidas tiveram uma participação tão grande no total. Normalmente, os desmatamentos ocorrem ou em áreas particulares ou em áreas que não têm uma definição de uso, são terras devolutas. Nas áreas protegidas, terras indígenas e áreas de conservação têm muito menos, mas neste ano aumentou bastante.

No caso da terra indígena Trincheira/Bacajá, no Pará, hoje você tem uma situação de emergência. Mais de 300 invasores estão desmatando a um ritmo alucinado lá dentro, piqueteando a área com a intenção de abri-la para a produção de gado, com a clara intenção de que isso será vendido mais para frente. Essas pessoas estão com a ideia de que agora tudo pode. Mesmo sendo terra indígena não faz mais diferença porque o governo deu o aval.

Na terra indígena Yanomami, você tem 20 mil garimpeiros ilegalmente lá dentro, um número assombroso que só cresce, e não tem uma ação do estado brasileiro para retirá-los. Dessa mesma forma acontece em várias terras indígenas do Brasil e em algumas unidades de conservação. A floresta nacional do Jamanxim, por exemplo, está sendo rapidamente destruída dentro dessa lógica. É uma situação muito preocupante. Nós temos um problema de presença do estado de direito na Amazônia, algo que faz uns 40 anos que não víamos.

Há algum diálogo entre o governo atual e as ONGs a respeito das questões relacionadas ao clima?

O diálogo com o governo federal é totalmente interrompido por opção do próprio governo federal. É difícil, pois há uma visão ideológica do governo de que as ONGs são de esquerda. A fala do presidente [de que as ONGs que causaram as queimadas] foi totalmente leviana, mas reflete o pensamento dele, acusando as organizações de modo genérico, como se fossem inimigas de seu governo.

Chegou ao ponto de o ministro do Meio Ambiente paralisar o Fundo Amazônia, que é uma fonte importantíssima de recursos para o combate de desmatamento no Brasil e para a promoção de atividades sustentáveis da floresta, que é algo que a gente precisa fazer no médio e longo prazo para conseguir ter sucesso. Não adianta apenas punir, nós precisamos valorizar aquilo que mantém a floresta em pé.

O Fundo Amazônia é a principal fonte financiadora de projetos de estruturação de cadeias produtivas dos produtos da floresta, como castanha e açaí. O ministro conseguiu paralisar esse fundo e provavelmente ele será extinto, tudo isso com único objetivo: cessar as fontes de recursos para as ONGs. Claramente é uma tentativa de criar uma restrição financeira ao funcionamento das ONGs. As organizações acessavam a menor parte desses recursos, uma vez que 60% deles iam para estados, municípios e a União.

Ainda assim, as ONGs não dependem do Fundo Amazônia para sobreviver, como o WWF-Brasil. Temos uma parcela mínima de recursos do orçamento que vinha desse fundo. Eles não conseguirão, por essas vias, restringir atividades ou a voz política das organizações, mas conseguiram, sim, paralisar uma superimportante fonte de financiamento por uma razão puramente ideológica, o que vai contra a agenda ambiental construída nos últimos 30 anos no país. Tudo isso só demonstra que não há, por parte do governo Bolsonaro, uma disposição ao diálogo aberto e sincero.

Logo no início do governo atual, nós do WWF fomos conversar e nos apresentar ao ministro, como fazemos com qualquer ministro novo que chega ao cargo. No entanto, desde então, não houve mais nenhuma abertura para o diálogo por parte do Ministério do Meio Ambiente, que restringiu a participação da sociedade no Conselho Nacional de Meio Ambiente. Por meio de um decreto do presidente, foi alterada a composição e as formas de eleição e indicação das organizações da sociedade. Agora, as ONGs são sorteadas, o que é algo ridículo você ter uma representação por sorteio, isso não existe em nenhum lugar sério do mundo.

Como você analisa a declaração do presidente francês Emmanuel Macron de dar um “status internacional” à Amazônia?

É uma besteira, pois a Amazônia já é internacional, uma vez que não é só brasileira, outros países têm parte dela também. É sul-americana: cada país tem uma parcela de soberania sobre ela. O Brasil tem 60% e os outros 40% são dos países vizinhos. Além disso, não existe de fato nenhuma demanda real para que isso aconteça [dar um status internacional], e, mesmo se tivesse, não seria nenhuma solução.

O que precisamos é que nós mesmos saibamos cuidar daquilo que é nosso, isso que o WWF-Brasil defende. Se a Amazônia é tão importante como ela é, temos que cuidar bem, com responsabilidade, e não destruir. Esse patrimônio tem que ser deixado para as próximas gerações da maneira como a gente o encontrou, que já não é a maneira que as gerações passadas encontraram.

Tanto a Amazônia quanto o Cerrado, é importante falar dele também, estão rapidamente sendo desmatados, numa velocidade muito superior ao que aconteceu, por exemplo, com a Mata Atlântica, porque o nosso poder de destruição hoje é muito mais rápido. Nós temos no Brasil uma área equivalente a Minas Gerais de pastagens com baixíssimo uso e produtividade, o que daria para perfeitamente duplicar a produção de alimentos e mais do que triplicar a produção de carne no país sem desmatar mais nada.

A gente poderia garantir, pelos próximos 40 anos, alimentar o Brasil e o mundo apenas usando o conhecimento e a tecnologia que já temos em áreas que estão disponíveis e já foram desmatadas, e que poderiam ser, inclusive, restauradas para assegurar as fontes de água.

Ao invés disso, nós continuamos avançando sobre o Cerrado, que é a nossa caixa d’água, e sobre a Amazônia, que é a nossa mangueira. E assim estamos aos poucos destruindo o nosso futuro. Por isso que não podemos nos conformar com o que está acontecendo. Mas isso significa que o Brasil é soberano sobre a Amazônia e que nós temos que resolver nosso problema por aqui mesmo.

Qual sua análise sobre a mobilização das pessoas após a divulgação das imagens das queimadas e dos dados sobre desmatamento na Amazônia?

Eu acho que foi muito positiva essa reação porque ela confirma uma pesquisa que saiu há pouco tempo sobre o que as pessoas acham sobre a Amazônia. A imensa maioria da população brasileira (93%) respondeu que sim, que preservar a Amazônia é importante e que não se deveria afrouxar as regras e ações de proteção. Essa sentimento resultou nas manifestações de rua.

Acho que o brasileiro médio tem noção da importância que a Amazônia tem para o país, já que ela é basicamente a grande fonte de água para toda a agricultura brasileira e para a indústria de São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e demais cidades. Sem ela, nada disso seria possível. A população sabe, ainda, de sua rica biodiversidade e que nós estamos desperdiçando um recurso incrível que ganhamos de presente da natureza, sem nenhum esforço.

Infelizmente, estamos trocando algo riquíssimo por usos totalmente inadequados. As manifestações mostram que a população não está de acordo com o que está acontecendo e com a instauração de uma noção de terra sem lei na Amazônia, que o governo federal vem causando.

Quais as articulações que as ONGs estão pensando a partir de agora?

Continuamos articulados entre nós organizações, temos contato permanente, então não teve nenhuma mudança substancial ou algo específico a partir de agora. A única mudança é que não há mais um diálogo histórico, que sempre houve com o governo federal na área ambiental, com críticas, sugestões e reconhecimento daquilo que era positivo. É o papel da sociedade civil. Isso tinha em todos os governos democráticos. Este é o primeiro governo em que não há esse diálogo, pelo menos até o momento.

O governo rompeu o diálogo com a sociedade e está governando não só sem apoio da população, mas posso dizer que, do ponto de vista do próprio Ministério do Meio Ambiente, não há apoio dos servidores públicos contratados. Esse é um outro desmonte importante que vem sendo feito, mais reversível, pois talvez passado o governo isso possa retornar, diferentemente do que foi desmatado, que tem um impacto que vai demorar muitos anos, senão uma eternidade, para ser recuperado.

Há uma hipercentralização de decisões e atuações no âmbito do ministério e dos órgãos subordinados. Quem vem tomando decisões são pessoas de fora da casa e às vezes os próprios servidores estão totalmente fora dos processos. Não há políticas em andamento e nada acontecendo porque há um clima de segredo e desconfiança, inclusive com perseguição a funcionários públicos. Nós nunca vimos exonerarem funcionários sem nenhuma justificativa plausível, simplesmente porque eles se posicionaram contra uma decisão ou um posicionamento.

Isso fez com que várias políticas do Ministério do Meio Ambiente tenham sido paralisadas, como a de combate ao desmatamento. Existia um grupo de trabalho que reunia vários órgãos. Existia, ou melhor, existe um plano de ação, que já está na sua quarta versão, e foi responsável nos últimos 15 anos por fazer com que o desmatamento no país diminuísse durante vários anos ao integrar ações de fiscalização e fomento de vários órgãos.

Esse plano existe, foi aprovado no governo passado, essa comissão existia, mas neste ano não se reuniu nenhuma vez e foi extinta pelo governo. O plano foi jogado no lixo, e os funcionários públicos que trabalhavam nisso também estão sem ter o que fazer, assim como funcionários de quase todas áreas da pasta. Passados 8 meses, o governo ainda não conseguiu preencher cargos chaves do funcionamento. O ministério está totalmente paralisado, funciona praticamente só no gabinete do ministro e em algumas outras secretarias com pessoas que ele confia mais pessoalmente. Mas, no trabalho normal de Ministério, numa estrutura administrativa, ele foi praticamente paralisado.